Rambo às Avessas
José Vicente J. de Camargo
Dona Elvira entra apressada no hall de
entrada do prédio onde mora, abraçando as compras que acabara de fazer no
mercadinho da esquina. Responde o “boa
noite” do Juvenal, porteiro de há mais de 20 anos de bons serviços e
dirige-se ao elevador torcendo para que o mesmo esteja estacionado no térreo e
não naqueles andares que o pessoal, mal educado, têm mania de segurar a porta
na espera de alguém atrasado chegar. Todos já haviam sido advertidos pelo
sindico, mas sem nenhum efeito prático. Inclusive foi dela a ideia de colocar
as placas de advertência em todos os andares, solicitando que este ato de falta
de respeito aos demais moradores não fosse praticado, já que, sendo o prédio
antigo, só contava com um elevador.
— Que sorte, diz a si mesma ao ver a luz
acesa na fresta da porta. Entra, aperta o botão do 5º já com a musiquinha da
novela na cabeça.
— Ainda
bem que tem o tempo de propaganda, guardo as coisas rapidinho, coloco a água e
as batatas para ferver e pronto, hoje o capítulo vai ser dos bons! O coitado do
João Teodoro vai saber que Amélia, sua amada, é sua irmã.
De repente um movimento brusco, faz a porta
do elevador se abrir novamente. Um corpanzil avantajado, descabelado, de cara
amarada, adentra no cubículo e, sem palavras, aperta o botão do sexto.
-“Essa não, minha Sta Terezinha, justo esse
bruta monte!” palavreia consigo Dona Elvira se espremendo para o canto oposto.
Era nada menos que o Rambo, figura mal
vista por todos os moradores, dado ao seu caráter briguento, nunca concordando
com nada que fosse aprovado nas reuniões dos condôminos e ameaçando a todos que
dele discordassem. O pobre síndico já tinha as orelhas quentes de tantos
palavrões recebidos. O pior é que devia meses de taxa de condomínio e, em voz
alta gritava que por não concordar com as medidas adotadas, não pagava e
receberia com murros quem ousasse bater em sua porta. O assunto já estava na
justiça, mas o sujeito, por ter sido investigador de policia, tinha “costa quente”
com a mesma e o assunto era sempre postergado.
Na altura do 3º andar entra em ação o
destino: ouve-se um estampido, qual ruído de raio, seguindo-se um trepidar e
uma freada brusca do elevador já em plena escuridão ihmmmm.
Dona Elvira é jogada para a frente e,
cambaleando, volta para trás. O saco de compras bamboleia e cai, ouve-se o
ruído de batatas rolando, o baque de uma garrafa de vidro contra o chão e um grito
assustado – Sta Terezinha, que foi isso!.
Rambo solta um palavrão, esmurra a porta e
aperta violentamente os botões existentes no painel.
— Merda de elevador e esse síndico fdp que
não faz manutenção nessa porcaria - diz.
Num lampejo de lucidez Dona Elvira exclama:
— Já sei, é um apagão! - lembrando as
manchetes dos jornais que acabara de ler na banca do Seu Domingos. Ontem já
teve no Tatuapé, demorou varias horas! É a falta de chuva... E percebe, pelo
vulto, que o corpanzil de Rambo vai escorregando pela parede até o chão, gesticulando, apalpando o escuro na tentativa
de se agarrar em algo. Com
voz embargada, tremula, quase soluçando vai, entre os dentes, murmurando:
— Não aguento, não consigo, me ajude...
O coração de Dona Elvira acelera, de
repente lembra-se do que aprendeu num curso para 3ª idade sobre claustrofobia, que
muitas pessoas passam mal, com falta de ar, em recintos fechados e pequenos,
piorando com a escuridão.
Tateando, procura as mãos do contorcido estendido,
as encontra frias, suadas e as esfrega contra as suas com todas suas forças
enquanto, com voz calma, vai lhe falando para respirar fundo, pausadamente e
que não ouça as vozes em turbilhão da sua mente, mas sim a dela, que está ali,
que lhe iria contar a vida de Sta Terezinha e que logo a luz voltaria...
Juvenal e o sindico arregalam os olhos não
acreditando na cena com que se deparam quando, afoitos e nervosos, abrem a
porta do elevador após a volta da energia:
No meio de batatas, cebolas, garrafas de
leite e óleo, sentada ao chão Dona Elvira tendo ao colo Rambo, tal qual o
quadro da Virgem Pietá exposto no altar mor da igreja do bairro.
Desse dia em diante o cotidiano do prédio
mudou. Qualquer conduta fora da norma era prontamente restabelecida com a
intervenção do Rambo que, solícito e educado, dizia estar seguindo orientações
de Dona Elvira, nova sindica.
As contas estavam em dia e a inadimplência
zerada, inclusive as do Rambo, que pessoalmente pagava a Dona Elvira que o
esperava com café e bolo e a leitura de um novo capítulo do livro sobre a vida
e os milagres de Sta Terezinha...
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