O BUSTO DO VASCONCELOS - Oswaldo U. Lopes


O BUSTO DO VASCONCELOS
Oswaldo U. Lopes

        Dizem que um renomado médico paulista foi o criador do Jet-Sky, exagero! Ele apenas colocou um motor marítimo de 40cv numa prancha oca especialmente construída e saiu mar adentro. Causou sensação não só pela velocidade que o artefato desenvolvia como pela formidável esteira de água que erguia atrás de si. É claro que depois de diversas demonstrações acabou quebrando o pé.

        Profissional conceituadíssimo, especialista de renome. Filho de médico teve seis filhos, só um seguiu sua vocação profissional. Mas em termos de aprontar coisas impensáveis todos se revelaram dignos dele. Teve de tudo, desde pilotos misteriosos que desceram com um avião paulistinha emprestado do Aeroclube na Pça. Charles Muller (Pacaembu), até caça de chapéus de ilustres damas sentadas no andar térreo, por meio de anzóis baixados do andar de cima. Devia ter escrito pesca. A sensação de ter o chapéu erguido sem entender como, é incrível, fato reportado por uma das vitimas.

        Pois essa fabulosa gangue (os seis) resolveu atacar de novo. A vítima: o busto do Vasconcelos.

        Como descobri anos depois de formado, todos os poderosos professores da cirurgia tinham o seu busto em algum lugar. Discretamente na própria sala, na biblioteca da clínica ou até em casa conforme o tamanho da modéstia. O do Vasconcelos estava no anfiteatro que ele usava para dar aulas. E, que anfiteatro!

        Dizer que parecia igreja é pouco.  Tinha todos os elementos eclesiásticos. De um lado a nave, destinada ao povo, nós os alunos, assentos de anfiteatro, ordenados por altura de modo a garantir visibilidade para todos os fieis.

        De outro o presbitério e o altar mor onde o Sumo Sacerdote, ele Vasconcelos, pontificava e perorava.  Separando-nos a mesa da comunhão que segundo se apregoava viera de uma igreja barroca baiana e era de talha preciosa. No que seria equivalente ao transepto ficava o famoso busto em cima de um pedestal.

        A presença dos assistentes (demais professores da clínica) no presbitério reforçava a inevitável comparação com uma igreja. Era frequente que um auxiliar se encostasse ao pedestal do busto, sendo de imediato reprendido:
— Desencosta de mim!

        Estava criado o mito e o busto como objeto de desejo estudantil. Os tempos eram mais respeitosos e temerosos. Uma vez, no Show Medicina resolveu-se fazer a conversa dos bustos. Não houve coragem para retirar de seus lugares o busto do Arnaldo nem o do Bovero. Arnaldo o fundador da Faculdade, Bovero o famoso professor de Anatomia. Foram feitas cópias muito boas em gesso, mas os originais permaneceram intocados.

        Foi ai que a fabulosa gangue resolveu se aventurar. Não fizeram nada sem planejamento, e nisso eram muito bons. Estamos falando dos anos setenta, não de fantásticas séries de televisão. Bolaram tudo até os detalhes.

        Abrir o anfiteatro era coisa de criança, um clipe de papel resolveu. Já tinham preparada uma maca com lençóis e peças mais volumosas. O busto foi colocado na maca e coberto com lençóis, as peças volumosas ajudaram a montar um pseudocorpo de um doente falecido.

        Existia e creio que ainda existe um túnel que ligava o complexo hospitalar à Faculdade de Medicina, em particular, ao Departamento de Patologia. Passava debaixo da rua (Av. Enéas Carvalho de Aguiar) e era muito conveniente para transportar os defuntos sem chamar a atenção das numerosas pessoas que por ali transitam.

        Era também usado no trote dos calouros, passar por ali não era para almas frágeis. Embora amplo, ao longo do trajeto viam-se numerosos caixões destinados a enterro dos mais simples. A entrada do túnel pelo lado do Hospital era fácil,  a saída na patológica é que costumava ficar fechada. O planejamento previu tudo. Havia bueiros para ventilação no túnel.

        A equipe se dividiu, uns conduziam a maca pelo túnel, outros se postaram ao lado do bueiro. No momento preciso a tampa foi erguida, cordas foram baixadas, o busto foi erguido e colocado num carro que partiu com rumo ignorado.

        Ignorado por muitos, inclusive o Vasconcelos, de pleno conhecimento dos fabulosos, foi em direção ao bairro de Perdizes. Lá na residência do conhecido especialista ele permaneceu por dois longos anos. Vasconcelos fez de tudo, não conseguiu nenhuma pista nem paradeiro.

        Passado tanto tempo o nosso especialista resolve convidar o Vasconcelos para um jantar regado a vinhos que só ele tinha e comidas dignas dos vinhos. Chega a hora do Porto:

— Vasconcelos e essa história do busto. Que coisa triste não?

— Pois é respondeu Vasconcelos. Você não imagina como isso me aborreceu e abateu. Notifiquei a polícia, contratei investigador, mas não conseguiram nenhuma pista do meu precioso busto.

— Eu tenho uma proposta. Você promete não fazer nenhuma retaliação, nem processo e eu vou ver o que posso fazer.

        Vasconcelos topou na hora, ao que, o anfitrião pediu a um de seus filhos, ilustre membro da gangue que fosse buscar o busto no andar de cima da casa.

        Minha história termina aqui. O busto voltou ao seu lugar habitual. A fechadura foi substituída por uma trava de altíssima segurança e eu gostaria muito de saber, passados tantos anos, onde o busto foi parar.

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