Cobra-Cega
José
Vicente J. de Camargo
Há
mais de um mês estava ele na casinha de três cômodos que alugara. Escolhera a
dedo. Queria um lugar alto, com vista para o mar e a brisa arrepiando as copas
das arvores, vergando as touceiras de bambus e as folhas das palmeiras. Tinha
de sobra as premissas naturais, mas faltava as de conforto. A água, salubre e
barrenta, tinha de ser içada com balde do poço raso. Potável, só no poço artesiano
do Dr. Joaquim, latifundiário da região, mas para tanto tinha uma caminhada de alguns
quilômetros. A luz era a querosene. Celular sem utilidade pela falta de sinal. As
necessidades físicas, e o banho frio se davam entre quadro paredes de pau a
pique afastadas da casa.
Todos
estes “senões de desconforto” não o perturbavam. Ao contrário, o estimulavam a
alcançar o objetivo a que viera, pois lhe recordavam as boas ferias a beira mar
que passara na infância com os pais e irmãos numa praia erma onde o conforto
também passava longe. Procurava, nessas lembranças e na semelhança das
paisagens, subsídios para a inspiração.
Inspiração!
Para isso viera. Trocar a mente exaurida de sensações, por outra que o
motivasse a arrancar de si, o fio da meada para iniciar a escrita do romance pretendido.
Mas qual! Até agora não a encontrara, apesar do olhar atento aos detalhes do
ambiente esplendoroso, do viver das pessoas − com costume e cultura típica
− que poderiam
aguçar a imaginação de qualquer escritor.
No
rodamoinho desse devaneio, não se deu conta que seu estoque de água acabara. Abraçou
os vasilhames e se pôs a caminho do poço artesiano. A fila de espera estava grande.
Se distraiu observando um grupo de crianças que brincavam. No meio da
algazarra, de olhos vendados, uma criança era rodopiada pelas demais até ficar
tonta. Vacilante, apalpava o ar procurando agarrar outra criança que a substituísse,
que a salvasse daquela escuridão estonteante. Se desanimada da procura, tentava
desistir, era persuadida pelas demais a ficar com apupos de “fica medrosa”. Era
um rodízio de estar mal no “escuro” ou bem no “claro”.
Na
volta à casinha, ele pega carona num carro de boi. Vai percebendo que a
paisagem está mais nítida, da qual emergem detalhes antes não percebidos. Do ar
capta odores de algas e sais marinhos mais acentuados. A luz está mais brilhante,
as nuvens mais brincalhonas. Observa a pele queimada do carroceiro, seu cigarro
de palha mirando o andar molengo dos bois. Se sente como participando de um
jogo de cobra–cega. Até há pouco, era a própria. Agora, de repente, sem desconfiar,
encontrou a salvação. Saiu do estado sonambulo para o de observador. Cansou,
mas não desistiu. Permaneceu no jogo.
Na jogada da vida...
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