Nossa amiga ISES enviou esta crônica que foi publicada no Jornal da USP. em 02/06/2017
Aventuras
e desventuras de ser (ou não ser) lido
Jurandir Renovato
Italo
Calvino, em Se um viajante numa noite de inverno, converte o leitor em
protagonista de seu romance mais famoso e original. Assim, o personagem que
estabelece o enredo e a condução da narrativa é o mesmo que, do outro lado, mas
não de modo passivo, usufrui dela em sua leitura. Como isso é possível?
Primeiro,
devido à maestria e genialidade de Italo Calvino; segundo, porque ele leva às
últimas consequências os recursos da metaliteratura, daquilo que Roland Barthes
chamou de máscara que se aponta com o dedo; e, por último, porque ele adota uma
postura de extremo respeito àquele que é a razão primeira de ser de qualquer
texto escrito.
Talvez
esse livro de Calvino, a sua obra-prima, seja a maior homenagem já prestada
pela literatura à figura do leitor. Calvino deu um rosto e uma voz a ele,
perscrutou-o intimamente no silêncio de seu ato de ler – o que certamente é o
sonho de todo aquele que escreve, seja romancista, poeta, blogueiro ou
resenhista.
Flagrar
o leitor (o seu leitor) no momento mesmo de sua inadvertida leitura é de
fato coisa rara de acontecer. Mas não impossível. Em proporções bem mais
modestas – fique claro – tal se passou comigo em meados dos anos 90.
Eu
estava dentro de um ônibus saindo da Cidade Universitária em direção a
Pinheiros quando uma mulher, sentada ao meu lado, pôs os óculos e abriu a
bolsa, de onde tirou uma desgastada folha de jornal. Após desdobrá-la
cuidadosamente, eis que vejo brotar entre seus dedos um artigo que eu havia
publicado duas semanas antes neste mesmo Jornal da USP, ainda nos tempos
de sua exclusiva versão impressa.
(Era
uma resenha do livro do Fernando Sabino sobre a Zélia Cardoso de Mello,
ex-ministra da Fazenda do governo Collor. Um livro que, na época, causou
bastante polêmica, até mais do que deveria. No artigo eu refletia em tom bem-humorado
sobre as motivações do escritor mineiro para escrever tal livro, e usava para
isso a correspondência que ele mantivera durante muitos anos com o modernista
Mário de Andrade.)
Flagrar
o leitor (o seu leitor) no momento mesmo de sua inadvertida leitura é de
fato coisa rara de acontecer. Mas não impossível. Em proporções bem mais
modestas – fique claro – tal se passou comigo em meados dos anos 90.
Pois
bem. Para não chamar a atenção nem ser inconveniente com minha vizinha de
banco, fiquei observando-a furtivamente pelo reflexo do vidro da janela,
naquele sutil interstício entre a luz e a sombra, na confluência das imagens de
dentro e de fora que quase se confundem numa coisa só; sorrateiramente
espreitando as suas expressões, como se olhasse a rua.
Na
mesma medida em que ela parecia estar gostando do texto, o que podia ser
confirmado pelos risinhos e sinais de concordância com a cabeça, eu sentia
aumentar em mim a vontade de me apresentar. Mas me contive. Esperei-a parar de
ler, guardar a folha de volta na bolsa – agora de forma não tão cuidadosa –,
levantar e sair do ônibus.
Até
hoje fico imaginando que talvez ela tenha descido alguns pontos além do seu
destino só para terminar a leitura do meu texto. Porém isso é pouco provável e
de qualquer forma eu nunca vou saber. O certo é que eu, sim, fiz isso,
atrasando dois ou três quarteirões, até vê-la desaparecer no torvelinho das
seis da tarde da Teodoro Sampaio.
Sem
dúvida, foi uma das maiores experiências da minha vida. Mas como tudo que é
sólido se desmancha no ar, como diz o outro, não demorou muito para voltar à
nua e crua realidade. E justamente quando julgava estar indo em direção ao
melhor dos mundos possíveis.
O
fato é que meu amigo Valter José, na época doutorando em filosofia na FFLCH,
havia me alertado sobre sempre ter um texto meu fixado no mural da
pós-graduação das Letras. “Parece que você tá formando um fã-clube, hein,
Renovato?!”, ele me provocava naquele seu jeito entre brincalhão e malicioso. E
antes que eu começasse a vislumbrar um grupo de jovens estudantes histéricas
empunhando cartazes com minha foto e cadernos para colher o meu autógrafo –
antes disso, esbocei o que seria um gesto blasé e mudei de assunto.
Algum
tempo depois, tendo ido fazer uma pesquisa iconográfica na biblioteca da Faculdade
de Letras para uma das edições da Revista USP, reparei num senhor calvo
e com um rosto estranhamente familiar sentado numa das mesas. Enquanto
conversava com a bibliotecária, esse sujeito levantou-se e veio na minha
direção. Reconheci-o de imediato. Era o seu Carlos, meu professor de português
da oitava série!
Ele
contou que após se aposentar resolvera fazer mestrado. Disse também que
costumava ler as coisas que eu escrevia no jornal; e pareceu bastante orgulhoso
disso. Matei a charada na hora: ali estava o “meu fã-clube” bem diante do meu
nariz!
Não
obstante a alegria de rever um antigo e querido mestre, um pensamento de certo
modo mesquinho me impedia de desfrutar completamente daquele agradável momento
de reencontro. Eu me sentia desapontado, essa é a verdade. Afinal, o entusiasmo
em relação a um texto nosso vindo da parte de um ex-professor de português
equivalia, em termos de credibilidade e isenção, à opinião da mãe da gente
sobre o quanto somos lindos e inteligentes.
O
fato é que meu amigo Valter José, na época doutorando em filosofia na FFLCH,
havia me alertado sobre sempre ter um texto meu fixado no mural da
pós-graduação das Letras.
Aquilo
foi um golpe daqueles, confesso, na minha pretensa vaidade de resenhista superstar.
Mas nada comparado ao que ainda estava por vir, quando certa vez, após ter
acabado de chegar ao antigo prédio da Coordenadoria de Atividades Culturais da
USP, precisei, antes de subir até a sala da redação, dar uma passadinha no
banheiro, que ficava estrategicamente atrás do elevador do térreo.
Foi
um péssimo negócio. Mal atravessei a porta pude ver, no cesto ao lado do vaso
sanitário, uma folha de jornal amarrotada e “usada”, de onde distinguia-se
parcialmente o título de uma resenha minha sobre o Estorvo, do Chico
Buarque, cuja foto, diga-se, também se encontrava bastante prejudicada.
Será
que o usuário do banheiro, fã do cantor então recém-estreado nas letras, se
revoltara com as ressalvas que eu fazia ao primeiro romance do seu ídolo? Ou
quem sabe pegara o jornal – disponível na época num escaninho junto ao elevador
– já mal-intencionado e, nesse caso, nem se dera conta do que levava, muito
menos o trabalho de escolher o conteúdo da matéria para a sua necessidade.
Esta
última hipótese, mais plausível no contexto de um leitor, para todos os
efeitos, tão pouco exigente, deu-me certo alento diante daquela situação. E
enquanto eu permanecia lá, vertendo a água atrigada dos joelhos e contemplando
horrorizado a degradação escatológica do meu artigo – que de fato nem era lá
aquelas coisas –, imaginei um tempo futuro, igual a este atual, em que os
textos eletrônicos, mesmo sendo despretensiosas resenhas, jamais teriam tão
ignóbil e triste fim.
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