HIROITO DE NOVO - Oswaldo U. Lopes


HIROITO DE NOVO
Oswaldo U. Lopes

            Lá estava Hiroito de novo no ônibus. Só que desta vez a viagem era mais curta. Agora, além de japonês da estadual também era chamado de japonês remanescente ou “japa que sobro”, depois do que acontecera com seu colega da federal.

Recostado no banco pensava ao acaso e em diferentes coisas. Por exemplo, no fatídico ônibus dos estudantes na Mogi-Bertioga. Não podia disfarçar o alivio que sentia em viajar num ônibus de carreira e numa estrada de duas pistas, bem larga e num veículo o qual, tinha certeza, possuía tacógrafo e motorista habilitado e preparado.

            O outro pensamento ia para a palavra que o chefe usara quando o designara para a missão: pareidolia. Nela o bravo e perspicaz Hiroito tinha empacado e necessitara do dicionário. O Dr. Fabricio tinha dito apenas que as pessoas da cidade tinham visto no vidro novo da Igreja uma imagem que curiosamente, não tinha sido de Santos nem de Nossa Senhora ou similar:

- Um caso típico de pareidolia, arrematara o delegado.

            Hiroito entendera, mas como gostava de fazer nessas ocasiões, fora mais fundo na procura do significado:

“Fenômeno psicológico pelo qual as pessoas associam determinada imagem formada ao acaso (nuvens, por exemplo) com imagens visuais.”

Às vezes a associação se faz com sons. Enfim a raiz grega estava lá e grego, era com ele. Não que falasse grego, mas ia fundo na origem das palavras e muitas vinham do grego passando pelo latim. Para= ao lado, eidolia = imagem. Tai! - pensou ele - Semelhante a uma imagem que já existe na nossa memória. Como é que os antropólogos gostavam de classificar os homens: primatas visuais. Muitas coisas explicavam a primazia do homem no reino animal, mas a visão e o fogo eram muito bem colocados.

E assim ele seguiu para a Comarca de Descalvado município antigo do Estado, cheio de história, mas meio curto de progresso.

Por que raios, a polícia local não conseguira avanços na investigação do crime? Está certo que assassinato misterioso não era parte do dia a dia de Descalvado. Os poucos, havidos eram sempre de arma na mão. Podão, garrucha ou tresoitão. Os motivos, os de sempre: passionais, negócios e recentemente tráfico.

Pelo pouco que contara o Dr. Fabricio, o pessoal de Descalvado começou a ver num vidro novo da lateral da Igreja um desenho que associavam a um barrete. Como o vidro estava bem em cima da 12ª Estação – Jesus Morre na Cruz – todo mundo começou a falar que um padre ia morrer.

Deu muita confusão nas paróquias, em vez de refutar a crendice teve vigário que passou a trancar a Igreja mais cedo, e a si próprio também. Na rodoviária de Descalvado, até que Hiroito foi bem recebido. A necessidade às vezes faz a gentileza. Vai que esse japonês resolve o caso e o povo para de falar em mistério, incompetência da policia etc.

De fato quem morrera fora um advogado, Dr. Salomão Andrade, causídico antigo, dono de um escritório de advocacia conhecido e respeitado. Desses que atende de tudo: civil, criminal, tributário e trabalhista. Além do Dr. Andrade, outros quatro mais jovens trabalhavam com ele. Cada um responsável por uma área, sem, no entanto haver uma especialização especifica.

Tudo isso Abel, o investigador local ia contando enquanto caminhavam até a Igreja. O escritório do Dr. Andrade ficava numa ampla casa térrea e ele era sempre o ultimo a sair. Curiosamente sua sala era a única que tinha uma fechadura dessas tipo Yale. Embora arrombada, a porta não tinha sinais de extrema violência. O primeiro tiro fora dado dali da própria porta e o segundo com o Dr. Andrade já morto, fora dado à queima-roupa no corpo já debruçado sobre a mesa.

Foram dois tiros, mas a vizinhança referia apenas um. O fato de o escritório ficar no centro, limitava o número de ouvintes e a época do ano – junho – misturava o barulho dos disparos com o dos fogos de artificio.

Um fato curioso foi que haviam encontrado pedaços de pano queimados na mesa que não provinham das roupas do Dr. Andrade e falavam do emprego de um pano para abafar o tiro. Dois fatos curiosos pensou Heroito: esse pessoal do interior estava muito mais esperto e procurando coisas que só a policia cientifica perseguia.

Chegaram à Igreja e no tal vidro da pareidolia. Se o tal desenho lembrava alguma coisa observou Hiroito, era um capelo e não um barrete. Quem quisesse fazer ilações deveria ter pensado num diplomado e não num padre.

Dali foram para o escritório que permanecia fechado desde o assassinato. No escritório do Dr. Andrade, Hiroito observou a fechadura do tipo redondo, rara nos dias de hoje. O Tambor girava solto em qualquer direção. Neste, pequenas marca escuras e leves vestígios de arranhaduras, cuja idade era difícil de estimar, mas pareciam recentes.

Dos hábitos de cada um dos membros do escritório, nada de muito especial. A porta da frente era trancada pelo vigia religiosamente as nove da noite e ele também fazia a conferência e fechamento das janelas. O pessoal, funcionários inclusive, saia entre 18 e 19 horas. Quando o Dr. Andrade estava só ele trancava a porta do seu escritório por dentro.

Abel passou-lhe várias fotos do corpo sobre a mesa e do ambiente como fora encontrado, também lhe mostrou uma foto de uma lâmina onde se via um fragmento de tecido escuro chamuscado.

Por aquela tarde estava de bom tamanho. Hiroito agradeceu a Abel e pediu que o deixasse no hotel onde iria pernoitar. Recusou um convite para jantar e pediu um lanche no próprio hotel e recolheu-se para pensar.

Matar advogado que não se saia bem nas causas, estava ficando comum, sobretudo na área criminal, tinha até escritório fazendo com seguradoras, cobertura especifica para essa possibilidade e colocando detector de metais na entrada. É o seguro morrera de velho e não com o corpo cheio de balas.

O assassino conhecia bem os hábitos do escritório. Devia ser frequentador assíduo. Na motivação havia raiva. Um assassino profissional se daria por satisfeito com o primeiro tiro e não arriscaria o segundo.

Dormiu pensando num possível cliente, frustrado com o trabalho dos advogados e com raiva, muita raiva. Por outro lado pensou num assassino cuidadoso e premeditado que chegara no horário apropriado, vencera a fechadura sem muito alarde e se evadira sem deixar rastros. Ou numa assassina porque não? A arma do crime, ainda não encontrada, era uma pistola e, portanto mais fácil de disparar, podendo muito bem ter sido disparada por uma mulher.

Hiroito acordou cedo, tomou café sossegado e lá na portaria do hotel perguntou onde acharia uma loja de ferragens. Informaram que havia duas, de muito boa qualidade. Teve sorte, já na primeira apresentou seu distintivo e perguntou sobre a compra de um grifo por alguém da cidade. Para sua surpresa o vendedor lembrava muito bem. Uma ferramenta especifica de encanador, comprada por quem não o era, em cidade pequena, não era negócio de todo dia. Seu Aprígio havia comprado um, de tamanho pequeno há pouco tempo e, curiosidade, levara junto uma fita dessas que o pessoal passa na pega de raquete ou até em cabo de enxada.

Preferiu obter a ficha de Seu Aprígio com Abel.

- Claro conhecia sim. Fazendeiro de posses, não tinha muitos empregados, descendente de italianos, trabalhava duro na lavoura junto com os filhos. Tivera há pouco uma desgraça. Idalino o filho mais velho se metera com drogas e do lado errado do jogo. Fora preso como traficante e pegara dez anos transitados em julgado. Falava-se muito de um erro primário de advogado que perdera o prazo num recurso que certamente cortaria a pena para um quarto ou menos.

Enquanto falava Abel foi fazendo cara de iluminado, percebendo que Hiroito matara a charada.

O resto Hiroito deixou por conta de Abel como, alias, era de seu feitio. Preso Seu Aprígio confessou tudo. Como conhecia bem o escritório do Dr. Andrade, sabia de seus hábitos e da fechadura redonda. Seus pais contavam muitas histórias de um ladrão italiano Meneghetti que ficara famoso, entre outras coisas, pelo uso do grifo em fechaduras redondas. O grifo as estourava silenciosamente. Devia-se a ele o aparecimento dos tambores de fechadura ovalados que não mais giravam com o uso de um grifo. Usara a faixa para não deixar marcas e abafar o ruído. Entrara rapidamente no escritório do Dr. Andrade que, no entanto ouvira o pequeno estalido e se levantara, mas não rápido o suficiente para se defender do primeiro tiro.

O segundo, não fora de misericórdia, mas de raiva, pelo filho que estava preso em regime fechado, por culpa daquele advogado de meia tigela que perdera o prazo, mas cobrara muito no decorrer do processo.

Jogara a pistola, o grifo e a faixa no Rio Moji Guaçu do alto de uma ponte perto de Porto Ferreira. Não seria difícil encontra-los pelo peso. Enriqueceriam, em muito, o processo criminal. Se Seu Aprígio conseguisse um advogado que o defendesse, era certo que faria um trabalho limpo e não perderia prazos.


Foi pensando nisso que Hiroito embarcou no ônibus levando um carinhoso e agradecido abraço de Abel e pensando em como trabalhar em São Paulo tinha vantagens. A mistura de gente mais jovem, como ele, com gente muito mais velha e experiente, resultava na hora do café, num relato de casos ou curiosos ou antigos ou até, melhor, em casos fusão dos dois aos quais ele por dever de oficio e raça prestava muita atenção. Nunca se sabe quando coisas do passado vão reaparecer no presente.

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