A PANELA DE ÁGATA
Oswaldo
U. Lopes
Numa boa família italiana a
transmissão de bens culturais, gastronômicos e até instrumentais de cozinha se
faz sempre pela linha mãe-filha, sobretudo se for no sul. Parece até que o
costume romano de alinhar a família pela figura materna se materializou no sul
e não no norte. Embora desenvolvido e rico, o norte tem para muitos, um
terrível acento austríaco e cheiro de salvia e burro.
Naquela família calabresa não fora
diferente. As receitas, os modos de fazer o ser, enfim, a própria essência, passava de mãe à
filha, excluindo as noras.
Todos os pratos típicos e deliciosos
que incluíam ovinos e caprinos, bem como os peixes e outros frutos do mar eram
saboreados pelo conjunto familiar sem distinções! O nó era o preparo, aquilo só
não morria porque havia sempre mãe, filha e neta e mais segredo e tradição e
nem morta essa receita vai parar na cozinha daquela “farabutta” que levou o meu
filho.
De muito especial havia ainda os
doces de Natal e suas deliciosas histórias. Todos eles, depois de prontos, eram
passados no mel quente utilizando-se para isso uma panela de ágata vermelha
escura com cabo longo, cujo conteúdo arrastava flutuando qualquer um da espécie
humana que não fosse desprovido de olfato.
Ah! Sim falávamos das histórias, as
suculentas histórias que os acompanhavam. Este qui, o “struffoli” era o doce
dos pobres porque era possível fazê-lo apenas com farinha, azeite, vinho e uma
pitada de sal, que nunca faltariam numa casa italiana por mais simples que
fosse.
Por que herdara a panela e junto a
receita, se era filho varão, embora caçula? Sua irmã mais velha abominava
doces, sua mulher jurara por todos os santos italianos ou brasileiros nunca
competir com a sogra nem repetir-lhe os pratos. Juramento em cruz onde só
faltou uma gota de sangue.
Na verdade o juramento solene fora
sacramentado no famoso episódio do atum. O irmão do meio casara-se, em segundas
núpcias, com uma moça muito mais jovem, tinha a metade da idade dele. Inexperiente
resolvera fazer para o marido as famosas comidas das quais ele falava com ar melancólico
e saudoso.
Resolvera começar pelo atum cujo
preparo demandava horas de exaustivo trabalho, desde água correndo por horas a
fio até pedra (um mini paralelepípedo) comprimindo.
Estavam
todos reunidos na sala do apartamento no segundo andar quando a destemida jovem
chegou com o atum coberto com pano e cheirando até de modo interessante. O
caçula estava perto da janela e distraído olhava ao redor, ouvindo as palavras,
mas não vendo a ação.
—
Dona Francisca, eu trouxe o atum para a senhora experimentar.
Louve-se
a coragem, entre genros, noras netos e agregados havia na sala, pelo menos umas
quinze pessoas. Dona Francisca levou o garfo à boca e experimentou, e ai fulminou a frase fatal:
—
Ela ainda é jovem!
O
caçula quase se jogou da janela para que não o visem rindo de doer as costas.
Outros começaram a entoar uma música já que era próximo do Natal, houve quem
corresse a preparar o vermute e o vinho do porto e conseguiu-se criar uma
confusão generalizada que abafou risos e disfarçou olhares maliciosos.
Em
casa a nora, mulher do caçula, aquela do juramento, foi dizendo, com pena da
infeliz:
—
Sua mãe é uma víbora!
Ao
que ele pensou, mas não disse – ela acha
a recíproca verdadeira.
—
Por isso é que eu jurei não fazer nenhuma comida que ela faça.
Sábios pensamentos
e decisões, ele continuou pensando em silêncio.
Sobrara
ele, o filho mais novo, que procurava um parceiro urgente para tão sacrossanta
tarefa. Descendentes, tinha dois, uma menina e um rapaz. Ela vivia perdida no
mundo da ciência e não estava nem ai para doces de Natal a não ser, é claro na
hora de comer, restara o filho mais novo que tinha até passaporte italiano
embora não falasse do italiano nessuna parole, este achava engraçado todas as
tradições e participava com gosto da festa. Fora dele a ideia de introduzir a
máquina de macarrão com a qual conseguiam uma produção bem maior e com muito
menos esforço.
Ele
lembrava a mãe esticando e afinando a massa que depois era cortada em longas tiras
que eram por sua vez trançadas três a três. O efeito final era bonito, e a
forma valera para os doces o nome de tranças de Natal substituindo e apagando o
original italiano.
A
máquina, alimentada com farinha, ovos, manteiga e açúcar fornecia já prontas,
longas tiras de doce que eram trançadas fritadas e passadas no mel na famosa
panela de ágata.
Assim
o circulo se fechara. Tempos modernos! Gêneros misturados e combinados. A
receita e o preparo viajando de mão em mão, não importando de quem elas eram e
que ascendência tinham.
O
que pensaria disso a nona calabresa? Tempi moderne, sono sempre altri tempi.
Contemplaria feliz e resignada ou amaldiçoaria esses modos, essas roturas,
esses padres, essas moças, esse Papa, esses mascalzone e tutti quanti.
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