Baú da titia
José
Vicente Jardim de Camargo
De
início só revelei à Ângela, minha noiva. Pensei em contar às minhas irmãs, mas achei
melhor guardar como se fosse um segredo entre tia Josefa e eu. Creio que posso
chamá-lo assim, pois tia Josefa me pediu no seu leito de morte, balbuciando
baixinho no meu ouvido, para surpresa da parentada se acotovelando ao redor da
cama, querendo se mostrar inconformada, como se ela pudesse, naquela altura,
mudar seu testamento de viúva rica e sem filhos.
No
velório, não sobrou um que não viesse me perguntar, o que a tia me soprara no
ouvido, pois, se sussurrou só a mim, deveria ser algo importante que talvez
dissesse respeito aos demais herdeiros também. Mediante minha resposta de “nada importante, que me casasse logo e tivesse muitos filhos”, me
olhavam desconfiados – pulga atrás da orelha – como se estivesse ocultando
algo, querendo passar a perna neles.
Sempre
tive uma admiração pela tia, seu porte esbelto e elegante, pele bem tratada,
maquiagem atraente sem exageros, cabelo aparado na moda, perfume suave de deixar
as narinas a sensação de querer mais. Enfim, tinha tudo que gostaria que
tivesse minha mãe, sua irmã mais velha. Só que esta, com cinco filhos, não
tinha tempo nem dinheiro – Ângela deve telefonar informando se a oficina
conseguiu abrir – para pensar em outras coisas que não fosse no cuidar da prole
e dos afazeres da casa. Meu pai, ao contrário de meu tio, era funcionário
público do terceiro escalão, economizando no que desse e pudesse, enquanto
aquele era dono de transportadora de cargas, com bons relacionamentos
empresariais e políticos. Quando faleceu, de enfarto agudo, na meia idade,
deixou um espólio considerável em investimentos, mas também um profundo vazio para
a esposa, o de não querer adotar uma criança, de preferência menino, que era o
grande desejo dela, já que contraiu uma doença na adolescência que a deixara infértil.
Talvez por esse motivo, Tia Josefa tinha por mim especial carinho, já que eu
era o único sobrinho varão. Percebendo isso, e juntando a feminilidade dela que
me atraía, a enchia de atenções visitando-a frequentemente.
Foi
numa dessas visitas que me contou que no quintal do casarão que morava,
construído pelo bisavô do marido, tinha sido enterrado, durante a construção,
um baú com segredos importantes da família. Curiosa por saber o que poderia
ser, já que o marido, muito céptico, achava que coisas do passado a ele
pertencem e não devem ser remexidas com o risco de trazer azar, procurou várias
vezes, por conta própria, encontrá-lo, pedindo ao jardineiro enterrar e
desenterrar plantas e árvores. Nada encontrou e, desestimulada pelo desinteresse
do esposo, desistiu de procurá-lo:
“Mas se tivesse a sua idade, continuaria essa
busca. Tenho um pressentimento de que algo valioso está escondido nele”, me
disse várias vezes em visitas posteriores, quando eu tocava no assunto, pois passei
a me interessar e mais ainda, quando li artigos sobre “cápsulas do tempo” – a
essa altura Ângela já deve saber – algo que voltou à moda como um estímulo às
gerações futuras.
Ao
conhecer Ângela, contei-lhe a história do baú, como sendo a “cápsula do tempo” da
titia e meu interesse em descobri-la.
Tudo
foi se tornando realidade, quando recebi um telefonema de uma das minhas irmãs,
informando que tia Josefa fora hospitalizada às pressas em estado de coma. Foi
então que, ao visitá-la, me chamou para si balbuciando a frase de não se
esquecer do baú.
Na
leitura do testamento eu e minhas irmãs ficamos com o casarão. Para melhor
dividir a herança, concordamos em vendê-lo. Foi aí que resolvi contar a elas a
história do baú e pedir que me deixassem vasculhar o quintal a procura, em
consideração a tia Josefa que por tantas décadas se contorceu na curiosidade de
saber o segredo nele contido.
Para
tanto contratei uma firma especializada em encontrar objetos escondidos debaixo
da terra ou do mar e, dado as minhas ausências devido ao negócio de exportação
que abri, com a parte da herança que recebi, Ângela ficaria encarregada de
acompanhar as buscas.
O
telefone tocou, ao ver que era ela, atendo ansioso:
—
Alô! Conseguiram abrir? O que tem?
—
Calma, me diz ela. É melhor você vir, vai se surpreender...
Desmarquei
às pressas os compromissos e embarquei no
primeiro voo. Ao chegar, me deparei com a pequena arca de couro cru, do tipo
que se vê em filmes antigos, em bom estado de conservação. Ao lado, Ângela e o
gerente me aguardavam:
−
Estávamos esperando você chegar para analisar melhor os objetos encontrados. A
princípio nada de especial a não ser esta caixinha bem fechada e este envelope
lacrado.
Decepcionado
com o conteúdo – não valeu o investimento – abri com cuidado a caixinha, e
nela, minuciosamente embrulhado com papel e fitas de seda, envolto em um pó
amarelo, que o gerente diz ser um conservante contra fungos e umidade, está um
bolinho recheado de aparência requintada. Dentro do envelope, em papel de carta
em letras femininas, o título:
“ Bolinhos Bem Casados”
e abaixo, a receita do mesmo, finalizando:
“Como lembrança do meu 25º aniversário
de feliz casamento com meu eterno amor Joaquim dos Anjos”.
Assinado:
Conceição dos Anjos, São Paulo 20/07/1900.
Minha
total decepção virou um raio de esperança, quando Ângela me disse:
Ótima
ideia! Vou fazer em casa para vender, pois a receita é daquelas bem antigas,
que hoje em dia é o pulo do gato para o sucesso nesse ramo gastronômico.
E
assim nasceu o prestigiado negócio de doces “Tia Josefa” com inúmeras
franquias, inclusive na Argentina, onde compete em pé de igualdade com os
renomados “alfajores”, orgulho dos hermanos...
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