Gordo não entra
José
Vicente J.de Camargo
Naquela
manhã Frei Antero não conseguia meditar como gostava, pausadamente, absorvendo
o significado e o sentido de cada palavra, procurando como melhor empregá-la na
vida cotidiana para o bem do Senhor e assim cumprir seu compromisso jurado ao
pé da cruz, quando recebeu do Abade Superior os votos do sacerdócio.
Seus
pensamentos não se fixavam na leitura do breviário do dia. Iam do silêncio do
claustro onde caminhava cabisbaixo, ao encontro do vozerio que vinha do
refeitório do mosteiro, onde algo inusitado acontecia. É que o frei Superior, acatando
ordens de aumentar as penitências dos monges, como compensação pelo crescimento
dos pecados de uma sociedade cada vez mais distante de Cristo, mandou instalar
a porta “barra gordo” na entrada do
refeitório.
É
uma porta que permite a passagem dos monges que obedecem ao jejum imposto de
pão e água duas vezes por semana. Os mais obesos, que têm o perfil bariátrico superior
à passagem, têm de jejuar mais vezes até se adequarem à largura da porta. Esta
penitência é mais uma prova de amor e devoção ao Senhor.
Frei
Antero, que prefere demonstrar seu louvor ao Pai nas orações à vista de uma farta
mesa, concentra-se em captar do ar as palavras vindas do vozerio do refeitório,
principalmente as que definem a largura da tal porta, agora já considerada por
ele como “coisa do demônio” para tirar a paz dos agraciados com o dom do bom
garfo.
Sua
curiosidade é satisfeita, ao deparar-se, no anda-anda da clausura, com Frei Amaro,
bonachão como ele e seu confidente nas críticas e elogios à cozinha monástica e
nas sugestões de pratos para os almoços de domingo e dias santos, quando Frei
Superior permite palpite dos subalternos:
−
Que Deus nos dê forças! Diz Frei Amaro. Venho do refeitório e estamos na lista
dos barrados pela porta. E, não tendo acesso ao refeitório, tampouco temos à
cozinha, que é contígua. Justo agora neste mês de junho, das canjicas e dos arrozes-doces
nas festas de São João e São Pedro.
Frei
Antero esboça um sorriso angelical e retruca:
−
Já estava a pedir a ajuda divina na eventualidade de tal acontecer, e eis que
ela me surge como um salmo de louvor:
“Se não posso ir à mesa, que ela venha até mim...”
−
Como? - Exclama Frei Amaro esfregando as mãos na esperança de que o sorriso
angelical do colega, se traduza na salvação de sua alma, ou melhor, de seu
apetite.
−
Vamos até a horta e o pomar falar com frei José jardineiro que, como sempre,
deve estar cuidando de seu reino na terra e é, pela vistosa pança, mais um dos “impedidos
pela porta”.
Lá,
comunicam a ele a decisão da largura da porta – frei Superior deveria ao menos
ter consultado a opinião dos envolvidos ou dado alguns centímetros a mais − e o
convidam a participar do plano dos “bem-aventurados”. Para tanto pedem que
separe, doravante para o almoço, parte das verduras e frutas, assim como,
azeite e temperos enviados à cozinha.
A
entrada da nova “instalação” no refeitório se deu em seguida. Após o
“desconforto” dos primeiros dias para os monges ‘barrados” – os demais, apesar
de curiosos, fingiram não perceberem o vexame da obesidade alheia − e a rotina
retornou a entoar os cantos gregorianos e a meditar no claustro do convento.
Assim,
como sempre, o sino badala chamando a todos para o almoço. Ao término das
orações de agradecimento, Frei Superior nota a ausência cada vez maior de
irmãos à mesa e pergunta ao monge ao lado:
−
O pecado da gula vem roubando nossos irmãos do refeitório. Não estão conseguindo
passar pela porta?
−
Não! Retruca o monge. Eles estão fazendo o jejum mediterrâneo iniciado pelos
primeiros irmãos “excluídos”. Todos dizem que é digno de “chef de cuisine”.
Inclusive vou iniciar também. É na horta, junto à gruta do “Cordeiro de Deus”...
Sob
o som da água vertendo pelas paredes da gruta, o grupo dos “adeptos do
mediterrâneo” termina seu canto de louvor pela dádiva de mais um almoço na
visão harmoniosa de várias cores de verduras e frutas regadas a molhos singelos
e de puro azeite de oliva. Acompanha crocante pão caseiro e água fresca e benta
tomada “in loco”. Carnes? Só a da visão do Cordeiro ensopado na gruta...
Frei
Antero anuncia que a partir do almoço de amanhã, mais uma mesa será anexada para
abrigar novos adeptos do grupo e anuncia que a porta “barra gordo” já virou
história, pois o último dos “excluídos” já a pode transpô-la sem problemas. Mas
serviu, entre outros benefícios, para a inauguração na entrada da gruta, do
Salmo talhado em madeira – que não foi devidamente considerado pelo frei
Superior:
“Vinde a mim os que têm fome,
pois deles será o reino do céu”
Lógico,
como desvantagem, a porta condenou a extinção das charmosas panças
monásticas...
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