Dois
diários
Roberto Pompeu de Toledo
No dia 3 de outubro de 1930,
o chefe revolucionário Getúlio Vargas tomou de um caderno pequeno com
capa de couro marrom, na qual estava escrito em ouro, no estilo dos
velhos almanaques, “1928 ─ O Rio Grande do Sul em revista”, e escreveu:
“Se todas as pessoas anotassem
diariamente num caderno seus juízos, pensamentos, motivos de ação e
as principais ocorrências de que foram parte, muitos, a quem um
destino singular impeliu, poderiam igualar as maravilhosas fantasias descritas
nos livros de aventuras dos escritores da mais rica fantasia
imaginativa. O aparente prosaísmo da vida real é bem mais interessante do que
parece. Lembrei-me que, se anotasse diariamente, com lealdade e
sinceridade, os fatos da minha vida como quem escreve para si mesmo, e não para
o público, teria aí um largo repositório de fatos a examinar e uma
lição contínua da experiência a consultar”.
Os diários de Getúlio,
iniciados naquele dia em que explodiu no Rio Grande o movimento que o levaria
ao poder, fazem eco aos diários de Fernando Henrique Cardoso que
agora são publicados. O próprio Fernando Henrique, no primeiro de seus
registros, invoca os diários de Getúlio. Por coincidência, os
diários de Getúlio foram publicados ─ primeiro em excertos, em VEJA,
depois em dois nutridos volumes ─ naquele mesmo ano de 1995 em que
Fernando Henrique cumpria o primeiro ano de seu mandato. São dois
presidentes conversando consigo mesmos e com a história.
Várias vezes, FHC citará GV. “No
avião, li na VEJA fragmentos do diário de Getúlio”, escreve Fernando
Henrique, em dezembro daquele ano. “É admirável, ele era distante, frio, não
registrava os principais acontecimentos, registrava coisas de ordem
pessoal (…) Fora disso, algumas observações duras, cruéis, sobre o ser humano.
Ele era muito cético, sobretudo com Oswaldo Aranha, que era seu grande amigo e,
ao mesmo tempo, sua grande sombra.”
Getúlio escrevia, Fernando Henrique
ditava ao gravador ─ sinal dos tempos, mais vagarosos no primeiro caso,
atropelados no segundo. É surpreendente como Getúlio conseguiu perpetrar treze
longos parágrafos naquele primeiro dia, enquanto as coisas pegavam fogo ao seu
redor. Getúlio capricha na linguagem. FHC vai aos trambolhões. Getúlio anota,
no dia 27 de maio de 1934: “O Oswaldo convidou-me para
conspirar no sentido de uma revolução para outorgar uma nova
Constituição ao país, pela dissolução da Constituinte e outro processo que a
substituísse” ─ e em seguida muda de assunto.
FHC, num assunto dessa gravidade,
explodiria em perplexidade, indagações, indignações. Tanto quanto um é seco e
preciso, o outro é emotivo e esparramado. A certa altura FHC registrou em seu
gravador: “Interessante, o Getúlio montou o sistema que eu estou tendo que
desmontar, porque a história é outra hoje, mas temos que desmontar usando
métodos não muito diferentes daqueles de Getúlio, ou seja, tendo um
arco muito abrangente de alianças para poder governar, jogando com
uns e outros, não abrindo o jogo com ninguém, ficando no isolamento das minhas
decisões (…) e fazendo com que, de alguma maneira, o jogo escoe
naturalmente para o lado que eu quero”.
Os dois registram banalidades.
Getúlio escreve, no dia 5 novembro de 1930: “Pela manhã leio os
jornais nos aposentos, faço ‘toilette’ e dirijo-me a um gabinete particular no
mesmo andar do dormitório, para despachar a correspondência”. E no dia 26 de agosto de 1933:
“Não havia água para banho em palácio. Pela manhã, fui para o Jaceguai cortar
cabelo, tomar banho e mudar de roupa”. FHC registra fielmente o
hábito matinal da natação e especifica com frequência os cortes de cabelo.
“Hoje vou cortar o cabelo e fazer a unha do pé”, registrou no dia 2 de abril de 1996.
Cortou o cabelo também em 8 de novembro e, de novo, no dia
21 do mesmo mês.
De forma mais pesada, a
sombra de Getúlio será invocada por FHC em dois momentos de dificuldades.
O primeiro foi durante uma brigalhada entre os assessores mais próximos ─ “Com
o Getúlio também foi assim, alguém quis protegê-lo, o Gregório tentou matar o
Lacerda, isso não dá” ─ e o segundo numa hora de cansaço pessoal e
“hesitação” no governo: “Há momentos em que a gente pensa: já fiz tanta coisa,
será que não dá para parar? É como se houvesse um começo de sentimento de morte,
que eu nunca tive. O Getúlio, entretanto, li em seu diário, fala sempre em
suicídio. Sempre fui o oposto, não penso em nada disso, penso em quanto a
morte, no passado, era encarada por mim como uma coisa terrível e agora, pouco
a pouco, vai me parecendo natural”. De certa maneira, para parodiar o
livro famoso de Zuenir Ventura, o 24 de agosto de 1954
é um dia que não terminou.
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