OS OLHOS DE BUDA
Suzana da Cunha Lima
Eu estava num momento nebuloso da vida. Embora
gozasse de boa saúde, não tivesse preocupações financeiras, e fosse uma moça
até atraente, minhas aspirações ao reconhecimento se perdiam no nevoeiro da
mesmice e do anonimato.
Eu me sentia uma pessoa que, se desaparecesse
naquele momento, ninguém notaria, muito
menos sentir falta.
Faltava-me algum talento especial, visível aos
outros: cantar, tocar algum instrumento musical, dançar, compor, escrever,
esculpir, pintar, qualquer coisa que me distinguisse da multidão e me incluísse
na sociedade dos vitoriosos. E com todas essas bobagens na cabeça seguia minha
vida com certo azedume e uma pitada de revolta.
Um dia, num domingo de sol, uma amiga me
convidou para conhecer o Templo
Zu-Lai. Religião era a última das coisas
em minha lista de prioridades e em se tratando de crenças orientais, então, nem
entrava em minhas cogitações. Mas ela me convenceu, dizendo que o budismo não
era religião, era uma filosofia de vida e nós não íamos a nenhum culto. Ela
queria conversar comigo com calma, e o lugar era mais do que propicio a isso.
Amplo, cheio de verde e flores e poderíamos, inclusive, almoçar por lá.
E, eu tinha algum outro programa melhor para
fazer?
Não, eu
não tinha, porque cinema ou teatro já estavam me aborrecendo. No meu entender, o mundo atual sofre de uma
epidemia de mediocridade única: era difícil achar um filme realmente bom ou uma
peça teatral que acrescentasse alguma coisa à minha vidinha tão sem graça.
Então, aceitei, e lá fomos nós para o Templo Zu-Lai.
Tomamos a rodovia Raposo Tavares e depois a
estrada Fernando Nobre e em pouco tempo estávamos lá. Ao chegar, a visão da
imponência do templo já me deslumbrou. O sol dourava sua fachada reluzente, a
brisa sussurrava suave pelas folhagens. Todos ali falavam em voz baixa,
caminhavam sem pressa, pareciam pertencer àquele lugar. Sorriam e pareciam
felizes.
Entramos no templo, acendemos uma vela com
incenso e o perfume me inebriou.
Foi quando olhei para a magnífica estátua de
Buda no altar, e, assim do nada, senti uma nuvem de conforto e paz a me
abraçar. Uma sensação de pertencimento que eu não sentia há muito tempo...
Fiquei tão agradecida que resolvi rezar. Ave
Maria... Já não lembro mais. Que estátua tão bela, parece que possui vida nos
olhos. E acho que quer que eu conte minhas aflições. Bom, para isso servem os
templos, mas minhas aflições ou desejos são tão descabidos... Conte assim mesmo, eu lhe escuto. A estátua falou! Estou maluca? Meu coração
quer sair pela boca. Não sei mais rezar, Buda.
Mas se é você mesmo que está me escutando, sabe o que eu quero. Algum
reconhecimento... Por algo que somente
eu tenha feito, algo único. E por isso ser
reconhecido na rua, como um
artista da Globo. Quero uma
estátua na praça, as mãos na calçada da fama, ser capa de revista, ganhar o
prêmio Nobel, qualquer coisa assim. Quero pelo menos, meus cinco minutos de
glória. Para quê? Ora, para que alguém
me olhe e diga: aquela lá ganhou uma medalha na Olimpíada, algo que me destaque
dos demais. Meus Deus, que pedido tão frívolo! Puxa vida, esta estátua parece
ter vida. Buda, olhe, quem sabe se eu fizer algo heroico, salvar uma criança
que está se afogando, por exemplo, eu mereça sair no jornal e ficar famosa. Sei
lá... a moça do Xerox lá do trabalho já
ganhou elogio até do presidente e foi a funcionária do mês... E nunca fez nada
de tão espetacular assim. Vive sorrindo, prestativa...
Mas eu não sou assim, poxa! Faço meu trabalho,
cumpro meu horário e pronto! A vida é muito injusta mesmo. Sou uma cidadã
consciente, pago em dia minhas contas, obedeço às leis, reciclo o lixo, não
desperdiço água...- Não é obrigação de todos? É, mas todo mundo sabe que tem um
bando de vagabundos, aproveitadores, ladrões e corruptos por ai que estão se
dando bem...
- É o que eu quero para mim? Claro que não. Sou
uma pessoa decente! E então? Então o quê? O que eu quero da vida? Nem sei mais.
Vejo por aí tanta gente sem amigos, sem teto nem emprego, sem dinheiro para
comprar remédio, filhos metidos em drogas, famílias problemáticas... Sabe o que
desestabiliza mais o ser humano? A perda, principalmente a perda do emprego.
Tem gente que muda até de personalidade... Dá para beber, começa com drogas, um
caminho sem volta. De que é que estou me queixando? Não tenho nenhuma tragédia
assim na minha vida. Até que tenho uma vida boa, preciso dar mais valor a
isso. Vou fazer esta promessa, viu
Buda?Aprender a valorizar o que tenho.
Bom, finalmente tomo alguma decisão. Estou me
sentindo melhor, mais relaxada. Onde anda Irene? Ah, está sentada no degrau,
quietinha... Chorando? Será? Ah, esta amiga é muito emotiva mesmo, qualquer
coisinha a emociona.
Acho que
aquela moça sentada ali no degrau é cega. Está há um tempão parada, olhando
para o nada.
É cega mesmo, meu Deus... E está sorrindo, um
rosto de tanta paz... como é que pode? E eu tenho uma visão perfeita...
Estou ficando maluca ou Buda está me olhando
mesmo? Deve pensar que sou muito mal agradecida, sinto que ele tem pena de mim.
É para ter mesmo. Sou muito pequena
para o tamanho deste lugar. Como?
- Não tem ninguém pequeno ou grande para Deus?
Nossa, ele me escutou e está falando comigo, agora. Mas como pode? Estátuas não
falam e logo para mim que não vou à igreja, e nem sei rezar. Acho que estou
tendo uma epifania... Budismo é isso então? Por que eu quero me destacar dos
outros? Não basta a satisfação por um trabalho bem feito?
- Não basta não, desse jeito vou passar pela vida
em brancas nuvens, isso sim. Não tanto, vamos combinar... tenho um emprego bem
remunerado... Mais eu podia ganhar mais. Afinal sou enfermeira formada,
especializada em idosos. E cuido de um monte deles numa casa de repouso. Sabe
como é, dou banho, troco fraldas, ajudo nas refeições. O tipo de trabalho que
não rende nada, não aparece e todo dia é a mesma rotina. Até que gosto. Meus
velhinhos são muito fofos, cheios de porfavores, obrigados, queridinhas...
Mas meu trabalho não tem charme nenhum... Não pinto
quadros, nem canto ópera ou toco piano. Quando o dia termina e volto para casa,
não encantei nenhuma plateia, não deixei nenhuma obra que os outros pudessem
admirar. Não recebo palmas ou elogios.
Sou mais uma formiguinha que carregou sua folhinha nas costas e vai descansar.
Não é mesmo um trabalho insignificante?
- Não há trabalho insignificante. Não há pessoas
insignificantes. Tudo que Deus criou tem um significado, é insubstituível e
único. E lidar com pessoas é o maior deles. Vá agora conversar com sua amiga
que, esta sim, tem um problemão no coração e ninguém para ouvi-la.
- E você não conta?
- Eu? Sou apenas uma estátua de pedra.
Nenhum comentário:
Postar um comentário