VIDA
PARA SER VIVIDA.
Oswaldo U.
Lopes
Eulália mora
sozinha, não vive sozinha. Parece jogo de palavras, mas é um jogo da vida. A
Fazenda São Carlos era da família fazia muito tempo e com o crescimento de Jaú,
ficara as portas e depois, claro, dentro da cidade.
Houvera
loteamentos, repartições e ela herdara o núcleo principal com cinco alqueires a
sua volta. A casa antiga estava totalmente conservada. Era linda! Varandão,
quarto de hospedes dando na varanda e capela na extremidade. E que capela!
Quando era aberta para visitação da população em geral e isso ocorria no Natal
e na Pascoa, o deslumbramento era completo. Tinha o tamanho de uma pequena
igreja, com altares laterais e santos barrocos de extraordinária qualidade.
Por que não
vivia sozinha embora morasse sozinha? Viúva com mais de setenta anos, rica,
muito rica, tinha três filhos que a visitavam com frequência, um deles morava
até perto, dentro da cidade. A filha e o genro, em outra fazenda que tinha ate
uma usina de açúcar. Economicamente não dependiam dela e como ela era
moderninha se comunicavam sempre pelo Skype, Whatsapp e outros truques.
Às vezes parecia
que D. Eulália não tinha passado. A presença de Inez, uma negra idosa, mas
ainda altiva e bela como que punha um toque antigo na história. Inez havia trabalhado
para a mãe de Eulália e era calada e reservada. Com ela Eulália trocava apenas
monossílabos que valiam por centenas de palavras.
A casa era
conservada na perfeição e era deslumbrante no seu conjunto, mobília, louças,
tapeçarias, quartos, janelas, cortinas tudo preso ao passado, mas conservado
para o futuro.
Havia
lembranças no ar, mas não havia cheiro de naftalina ou alfazema. Um sentimento
de antigo que não amordaça ou afoga o presente nem enclausura o futuro. Não era
fácil de compreender, tudo que tinha na casa era digno de um museu, mas ela não
era um museu, havia vida, muita vida nos seu interior. Era como que se as
toalhas pedissem para ir à mesa e os talheres aguardassem com ansiedade seu
lugar nos jantares ou banquetes.
Dito assim, o
edifício pareceria um recanto delicioso, não fosse pela sala trancada. Só D.
Eulália e Inez tinham a chave. No dia a dia era Inez quem cuidava dela e a
mantinha arejada. Era sombria e escura, cortinas pesadas de cor carmim
ocultavam janelas altas, nas paredes estantes com livros, muitos livros.
Eulália
raramente entrava nela, não precisava, bastava passar pela porta para que as
lembranças lhe assomassem a cabeça.
Era a menor
de três irmãos, raspa de tacho, temporã, sapeca, corria pela fazenda toda sem
limite. Gostava muito da Inez que vez e outra a carregava no colo. Criança
ainda num mundo adulto e circunspecto. Era frequente que se escondesse atrás
das pesadas cortinas daquela sala que era chamada de biblioteca e onde seus
pais passavam invariavelmente as tardes.
Naquela
manhã entrara na biblioteca e se escondera atrás do cortinado e ficara olhando
sua cunhada lendo numa bela poltrona.
Súbito,
Luciano seu irmão mais velho adentrara. Descabelado, colete aberto,
resfolegante aproximou-se de sua mulher e dizendo apenas:
- Vagabunda!
Desferiu-lhe
dois tiros e sumiu.
Eulália
soube depois, quando já não era criança que sua cunhada tivera um caso com o
doutor novo na cidade. Começara como cliente e evoluíra para amante. Jau não
tinha mistérios, história de corno era a alegria do povoado. Se, ainda por
cima, fosse de alto coturno a alegria virava festa.
Aquele tempo
a honra não era lavada m cartório, mas com sangue. Morto o médico Luciano
voltara para a fazenda para terminar o serviço. Do assassino nunca mais se
ouvira falar. Seus pais fizeram questão de manter a casa viva e arrumada como
sempre, com exceção da biblioteca.
A irmã do
meio se formou em medicina e foi fazer residência e especialização no Canada e
nunca mais voltou.
Com a morte
dos pais Eulália assumiu os negócios, acertou a herança com a irmã e enviava a
ela regularmente quantias elevadas de dinheiro.
Casara,
tivera filhos, enviuvara e seguia a vida, com exceção da biblioteca trancada e
da pergunta vespertina:
-Por onde
andaria Luciano?
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