Berlim 50 anos - Ises de Almeida Abrahamsohn



Berlim 50 anos
Ises de Almeida Abrahamsohn

Ilse  estava lendo no seu quarto quando o genro a chamou:

Rápido venha, D. Ilse, venha ver  o noticiário, caiu o muro! Caiu o muro de Berlim.  

Ilse  caminhou devagar apoiada na bengala  até a sala de televisão. - “Enfim, aconteceu - pensou - os jornalistas já previam há tempo e, hoje mesmo, o correspondente confirmou que era  coisa de dias”. 

A velha senhora movia-se devagar ao longo do corredor. O joelho e as artroses  tolheram-lhe  a agilidade.   Quase oitenta anos. Também, o que esperar? Estava grata  ao destino  que  o cérebro continuasse  alerta. Também os olhos  azuis haviam perdido brilho mas ainda lhe serviam bem para  a sua maior distração: ler . Primeiro, pela manhã, o jornal: o Estadão, que mesmo nos tempos difíceis não deixara de assinar. Dizia que lá encontrava o português bem escrito, nos editoriais  e  nas noticias que seguia nas áreas  internacional e  economia.  À tarde após a sesta, era a vez dos livros.  Tinha predileção por romances históricos,  mas sem desprezar  a literatura clássica e contemporânea em inglês ou português.  Tinha lido a maior parte dos clássicos e, quando estava entre - livros , como dizia, recorria a Shakespeare  e  ao velho testamento - “ Os grandes dramas e  enredos estão lá, dizia ao neto adolescente”.

No geral, Ilse desdenhava a TV, com exceção do noticiário  ou  de algum raro  programa  da TV cultura.  Dizia  que  o imaginário da leitura  era muito mais rico do que  as  novelas, pobres de linguagem  e  de  atuação.

Chegou sem dificuldades até  o quarto  onde ficava a TV e onde já estavam todos,  hipnotizados    pelas imagens que se sucediam acompanhadas pelos comentários do narrador entusiasmado. Era   a noite de 9 de novembro de 1989.  Na tela,  a euforia do povo, os jovens escalando o muro  ou sentados ao alto com as pernas balançando. Pessoas se abraçavam aqui e ali.  Multidões encasacadas  e alegres caminhavam  na noite fria pelas avenidas e ruas, cruzavam  a chamada faixa mortal  rente ao muro e  se espremiam para  passar pelos checkpoints.  Guardas da DDR  ou  RDA – República Democrática  (que piada)  Alemã  com seus uniformes verdes e botas altas  olhavam incrédulos  e temerosos  sem saber o que fazer ou direção tomar. Alguns mais corajosos  avançavam em meio ao povo para, eles também,  chegarem ao lado ocidental.  As câmaras de filmagem  mostravam  os vários pontos do muro e as pontes Oberbaum  e Glienicke  repletas de  pessoas.

O neto de quinze anos entusiasmado perguntou:

E então vovó, reconhece os lugares que estão mostrando?  Você viveu uma época em Berlim, não é? Agora, poderia voltar lá para visitar.

Meu querido neto, estou contente porque o muro caiu. Minha prima Ruth poderá enfim se reunir com  o irmão e viver a sua velhice com maior conforto no lado ocidental . Muitas outras famílias poderão enfim se reunir. Mas eu não tenho nenhum desejo de lá voltar. Algum dia você poderá ler a minha história e entenderá  as razões.

Levantou-se  e,  com semblante pensativo,   se afastou  antes do fim do noticiário.

Na sua poltrona, voltou ao livro, mas não conseguiu retomar a leitura. Pensou como detestava Berlim.   A guerra já havia começado e ela não conseguia a autorização  para voltar ao Brasil onde moravam seus pais. Precisavam do seu trabalho para o esforço de guerra, era a desculpa que lhe davam. Petições e horas de espera por entrevistas que resultavam em negativas. O seu dossiê não ajudava muito. Nunca demonstrara maior  simpatia  pelo partido.  A fuga para a Suécia de seu tio Friedman, advogado de renome, casado com a irmã de sua mãe, constava  na sua ficha, como lhe era às vezes  lembrado .  Claro que tinha fugido!  Há quatro anos, em 35, ainda conseguira  sair  ou  teria sido preso. Estavam a salvo em alguma pequena cidade  do interior .

Vieram-lhe à mente os dois anos seguintes   até  escapar  daquela cidade. Dois anos de sirenes, bombardeios e de racionamento. O pior eram as corridas para os abrigos antiaéreos em meio ao black-out

Não queria relembrar  e instintivamente apertou bem os olhos  como se assim pudesse expulsar  aquelas  visões   da  retina. 

”Eu,  como todos  naquela área,   já dormia  meio vestida, com casaco e sapatos ao lado e a sacola para pernoitar no abrigo. Vejo-me  correndo ao longo do corrimão pelos dois lances da  escada   escura até chegar à porta da rua. Vultos como eu, ao longo das calçadas com crianças chorando, outros apoiando velhos trôpegos na direção do abrigo a dois quarteirões.  As sirenes tocando e já se ouvia o explodir das bombas  e ao longe algum clarão de incêndio.  O túnel do abrigo, superlotado e malcheiroso. Cheiro  de mofo, de fumo estagnado , de gente  mal lavada e suada e,  principalmente ,  o cheiro de medo. Quantas vezes  os detritos de bombas próximas  haviam bloqueado  as  saídas   de algum  abrigo !  As  mães tentavam  acalmar os pequenos  e discussões irrompiam por um nada.  Muitos fumavam, o que tornava o ar mais irrespirável. Diziam que lhes acalmava os nervos ....  Ainda bem que nunca fumei; os preciosos cigarros da ração me rendiam gramas a mais de manteiga e pão no mercado negro. Quando  achei  que nunca conseguiria sair  de Berlim,  veio  a autorização para  sair do país, por avião , até Barcelona , de onde eu poderia chegar de trem até  Portugal.  Por várias noites me preparei, vestida com as  roupas que conseguira enfiar umas sobre as outras sob  um casaco grosso e  com minha maleta de mão com o essencial  e meia dúzia de fotografias.  O  avião era um bimotor para 5 passageiros que deveria  voar à noite para escapar à detecção dos radares . Depois soube tratar-se de um Siebel, desenvolvido apenas para viagens curtas.  Chovia forte e eu era sacudida  em todas a direções.  Havia apenas mais dois passageiros além  de mim; éramos  três desconhecidos,   calados e encolhidos tentando  em vão  não vomitar.  O cheiro se misturava aos do combustível  e da borracha  aquecida.

Lembro-me  de sair  do avião  meio tonta  e  por sorte, graças  ao  meu  português,  consegui chegar  até  a gare e  comprar   passagem  até Lisboa  onde me aguardavam. Uma semana depois,  soube que o  prédio onde eu morava  tinha virado cinzas. “

Ilse  abriu os olhos,  no relógio da estante  não haviam passado mais que três minutos  desde que voltara ao quarto.  

Levantou os olhos e viu o jovem hesitante  parado à porta.

 — Vó , desculpe, não queria reavivar as suas lembranças tristes! 

— Não tem nada meu neto. Apenas  digo que, apesar da bagunça, para mim o Brasil é o melhor país. Não voltaria a morar na Europa!


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