Invasão
de domicílio
Ises de Almeida
Abrahamsohn
Estranhei
quando cheguei e vi a porta do corredor entreaberta. Tinha certeza de que a havia
fechado ao sair pela manhã. Mas não lhe
dei mais atenção e me atirei no sofá. Vinha trabalhando como escrava durante
toda a semana. Adormeci na primeira
página do jornal. Acordei com a luz dura
do abajur me cegando. A soneca de uma
hora me desanuviou a mente. Deixei a vista
passear pela sala. Aqui e ali percebia sutis mudanças. A leve camada de poeira na estante, deixada
pela minha distraída faxineira, tinha sido perturbada. As pastas da primeira
prateleira haviam sido deslocadas. Fui direto
ao computador que me lançou de
sua tela azul olhares absolutamente impolutos.
Os arquivos importantes lá estavam protegidos pelas senhas. Nos outros,
tudo normal. No entanto, o gavetão inferior da escrivaninha mostrava um ataque meticuloso não suficientemente disfarçado. Duas pastas estavam fora do ordenamento habitual.
Uma delas era referente a um recente crime ocorrido em Laranjeiras.
Como
delegada, aprendi ao longo da carreira a ser
organizada e observante. Fiquei muito abalada. O invasor possuía a chave
do meu apartamento. Já eram oito da
noite. Mesmo assim liguei para o meu amigo Matos. Grande amigo, o Matos. É também o melhor detetive que conheço. Eu o trato pelo prenome, Heitor, que apenas uns
poucos amigos mais chegados sabem e usam;
ele me trata por Maíra. Seguindo o seu conselho me hospedei em
um hotel e chamei um chaveiro para trocar o segredo. Combinamos sua vinda ao apartamento para o dia
seguinte cedo.
Lá estava
ele, pontual e, como sempre, cuidadosa mas inadequadamente trajado para o calor do Rio. Terno
cinza, gravata discreta e
resplandecente camisa branca de abotoaduras. A pequena barriga proeminente
denuncia seu gosto pelo chope de fim de tarde. As únicas concessões ao
modernismo são os óculos escuros e um panamá de aba curta no alto verão.
Mas isto não interessa.
Matos tem faro de cão de caça e
começamos a busca metódica no
apartamento . Quem lá esteve não achou o que queria, mas agora sabíamos o que
procurava. A pasta com os dados do crime
de Laranjeiras tinha sido vasculhada. Em
vão, pois continha apenas dados burocráticos, relatórios de autópsia e dos achados na cena
do crime. Nada de secreto. A pasta onde
eu tinha guardado
os materiais realmente importantes estava
na estante camuflada entre pastas inocentes .
A vítima do
crime de Laranjeiras era uma garota, jovem estudante de direito. Tinha sido
esganada aparentemente durante um
encontro amoroso no próprio
apartamento. A porta tinha sinais de
arrombamento e alguns
poucos objetos, inclusive o computador, haviam sumido. O namorado da estudante foi identificado: era um político
conhecido da baixada fluminense, cerca
de uns vinte anos mais velho. Interrogado, possuía um álibi que parecia
sólido.
Entretanto
eu não me convenci com a cena do crime e fui atrás da biografia do namorado. O
cara era um tal Alaor Lima
Jr, advogado, mineiro da cidade
de Passa Quatro, no circuito das águas. Era filho de um antigo prefeito. Ingressara na política já
aos vinte três anos como vereador. Findo
o mandato, curiosamente não continuou na política local. Apurei que se mudara para Mesquita onde passara a
exercer advocacia barata. Candidatou-se a vereador pela cidade, cumpriu dois mandatos e conseguiu
se eleger deputado estadual . Está no segundo
mandato e mora em
Niterói mas mantém o seu escritório de base em Mesquita.
Isso tudo consta da ficha oficial do sujeito. Mas uma
consulta rápida mostrou que tem
ligações estreitas com o jogo do bicho local e possivelmente com o
tráfico.
O que havia
na pasta da estante eram recortes do
Diário de Caxambu de cerca de vinte anos
atrás sobre um crime que causara comoção na cidade: moça, dita de família, fora encontrada em um flat, esganada após encontro amoroso. As matérias
relatavam depoimentos de colegas
que sugeriam que a vítima teria um namorado
recente de fora da cidade. O crime nunca foi solucionado.
Eu já
tinha acionado a polícia mineira para
conseguir os depoimentos ou algum material
colhido no inquérito, se é que ainda existiam. De qualquer modo, não teria sido o tal Alaor quem vasculhou o
meu apartamento, mas algum seu assecla. Matos, embora
descrente, aplicou o spray detector de impressão digital. Como imaginamos , o invasor usara luvas.
Matos sugeriu
algumas linhas de investigação que eu também já tinha cogitado. O problema era
que eu não conseguiria ir
atrás. Tudo leva tempo e eu estou com
outros vinte casos esperando que também
têm que andar. Eu já lhes contei que o
Heitor, o Matos, é um grande amigo.
Confidenciou-me que precisava de
uma semana de descanso e hidroterapia.
Dei risada e lhe disse que a delegacia não tinha grana para bancar a viagem mas ele retrucou que não me
preocupasse. E lá foi ele...
Dia sim, dia não, me ligava em casa à noite para o meu celular de chip novo que, por
precaução, troquei após a invasão.
Hospedou-se no melhor hotel de Caxambu, e lá mesmo começou
a investigar. Hotéis tradicionais têm ainda
aqueles empregados antigos que estão lá
desde sempre. Discretíssimos, sabem de tudo e adoram falar dos velhos tempos de
glória do estabelecimento e da estância.
Matos logo os conquistou:
reconheceram nele alguém das antigas estirpes pelo modo de se vestir e de
falar. Combinou um encontro num bar local para depois do jantar. Comprou-lhes
duas garrafas da tradicional cachaça mineira servida no hotel e
deixou-os falar. Sim, lembravam do
caso. Até conheciam a família da moça.
Jovenzinha, dezoito anos se tanto.
Matos verrumou: ”E o namorado que diziam ser de outra cidade
?”
_ Não era daqui, confirmaram os
dois.
Não era conhecido. Não se conseguiu descobrir
a identidade, foi a informação dada.
Matos insistiu:
“Mas ninguém estranho circulou na
cidade na época? Numa cidade tão pequena não iria passar desapercebido !”
Um deles, tomando um
golinho do aperitivo local falou:
“A
cidade tem muitos turistas, congressos, o delegado da época disse que não dava
para identificar ninguém. Mas eu ouvi um papo de que o Abdias, da oficina
mecânica perto da fábrica de doce
de leite, tinha, na época do crime,
atendido por duas vezes um freguês cujo carro
era um Alfa-Romeo importado . O
Abdias confidenciara que nunca tinha visto um,
nem de longe, e que depois nunca mais o vira. Dos
turistas eu sei não era, que estes usariam a oficina do Lelo na cidade se o carro tivesse problema. Muito menos era dos congressistas; estes , já
se via logo, não ganhavam para tanto. Mas o Abdias
disse e repetia que não lembrava da placa“ .
Matos ligou no dia seguinte para dizer que iria
até Itajubá.
O tal Abdias tinha se
mudado com a família para aquela cidade ,
onde alegou que moravam parentes , cerca de uns três meses após o crime e lá tinha
aberto uma nova oficina .
Em Itajubá, se tivesse sorte, acharia a oficina e o homem do qual tinha o
nome e o sobrenome.
Teve sorte. O mecânico, agora aposentado, atendia na venda de peças e o filho tocava os
consertos e o negócio.
Mas foi difícil extrair
algo do velho Abdias.
Matos chutou:
_
Seu Abdias, sei que passaram muitos anos, mas a placa daquele Alfa que apareceu
lá em Caxambu era de Passa Quatro, não
era ?
O Abdias empalideceu.
Negou, refugou, mas, pressionado, finalmente acedeu.
_”Não
digo mais uma palavra.”
Faltava saber o que acontecera com o material colhido na cena do crime. O antigo delegado estava em outras
paragens. De volta a Caxambu, o
detetive soube que passados dois
meses do crime a delegacia, ou alguém de
lá, enviara a caixa toda para Juiz de
Fora.
Ligou à noite
com voz cansada:
_ “Estou bloqueado, Maíra. O
material que você queria está em Juiz de
Fora. Você mesma é quem tem que requisitar. Vou descansar
uns dois dias e volto ao Rio.”
Requisitei o material de
Juiz de Fora. Tinha um antigo colega da
Faculdade trabalhando lá. Achar algum
material após tanto tempo seria muita sorte.
O colega ajudou e em uma semana mandaram-me a caixa .
Fui pessoalmente ao
médico-legal para a abertura da caixa. Eu e Renata,
minha amiga perita, finalmente
achamos. No fundo da caixa, restos de uma camisinha ressecada que se esfarelou ao ser colocada no tubo estéril de coleta. Abracei a amiga e ambas demos vivas pela velha
camisinha desintegrada !
_” Sem problemas.
Material mais que suficiente para o DNA.
Ligo para você em cinco dias
com a comparação das amostras, esta e a do caso das Laranjeiras.” Confio na
Renata.
Pelo meio da semana foi o Matos
que me ligou.
_”Estou de volta ao Rio. Que tal um chope de fim de tarde ? Estou desidratado. Só havia água e cerveja de
garrafa em Caxambu”
Aceitei na hora.
Marcamos para a
tarde sexta-feira. Já teria a
resposta de Renata.
Consegui chegar ao boteco do Gouveia só às
sete da noite. Lá estava ele em frente ao terceiro chope e aos bolinhos
de bacalhau. Tenho de reconhecer, os
do Gouveia eram divinos... Feitos lá mesmo. Mas o Matos
não queria saber minha opinião sobre os
bolinhos... Dei-lhe um beijo estalado em cada bochecha e disse:
Heitor, hoje eu pago a
conta. A Renata me ligou agorinha mesmo.
Tan.... Tan... Taaan.... Os DNAs bateram. Apanhamos o tal Alaor!
Agora é só chamá-lo para
vir depor na delegacia como se
fosse rotina de investigação e
conseguir a amostra de saliva . Se
recusar, teremos que ir ao juiz. De qualquer modo, já ficará em detenção provisória.
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