UMA VIRADA E TANTO DA ESQUERDA PARA O
DIREITO
Oswaldo U. Lopes
A MAN WHO IS NOT A LIBERAL AT SIXTEEN HAS NO HEART; A MAN WHO IS NOT A
CONSERVATIVE AT SIXTY HAS NO HEAD.
Benjamin Disraeli
Jose Roberto era jovem, quase na média,
um pouco mais a esquerda talvez. Um pouco mais irrequieto. De um pouco mais a
um pouco mais, fora parar na ponta da curva de Gauss e dali para a
clandestinidade e a luta armada.
Não
podia ser mais classe média do que era. Pais descendentes indiretos de
imigração portuguesa e italiana. Faziam e sempre fizeram questão fechada de
filhos estudando e tendo curso superior. Estudara em colégio de padres,
jesuítas. Com a crise da adolescência e revolta que a acompanha fora conhecer
outras bandas e acabou frequentando os dominicanos. Eram os padres da moda,
avançados, que chamavam São José de
padroeiro não dos artífices, mas São Jose Operário. Entrou na faculdade, na JUC
e depois na Ação Popular. Conheceu Jose Serra, Franklin Martins e outros nomes
que hoje despontam no cenário politico.
Era estudante de medicina e nesse vai e
vem acabou se formando e fazendo residência de cirurgia. Não tinha índole para
segurar armas, participava ou na logística ou no que sabia mais, assistência
aos feridos.
Não
enjeitava missão. Foi motorista em várias ocasiões e deu fuga em ações deveras
arriscadas. Mesmo tendo feito o CPOR e tendo certa noção de armas não tinha
índole para usa-las. É certo que vira seus amigos da guerrilha urbana
usarem-nas e viu gente cair e morrer como descobria nos jornais do dia seguinte
Desenvolvera uma capacidade fantástica
de tratar, operar e curar gente nas piores condições que nem em guerra se veem.
Foi pego pela repressão e pego com raiva. O Dr. Danilo, seu codinome, era
conhecido da ditadura pelo excelente tratamento que proporcionava aos
guerrilheiros.
Foi judiado, torturado, não pelas
informações que podia fornecer, eram poucas e mutantes como seus algozes
sabiam. Endereços, codinomes, pontos de acolhimento eram voláteis por natureza.
Foi torturado para deixar de ser besta e deixara!! Depois que fora julgado pela
Justiça Militar, ficara preso por quatro longos anos, ao fim estava de animo
alquebrado e vocação partida.
Sua
cabeça martelava muito:
Não façam isso. Eu já contei o que sabia.
Pau de arara não! Já tirei a roupa o que mais vocês querem. No ânus, não, ái,
parem, dói muito!! Os pontos de encontro
já contei, os nomes já dei. São codinomes e dai, era o que eu sabia. Não façam
mal a minha família. Não, meu pai não é comunista.
Quando saiu, o trem já tinha passado.
Velhos colegas tinham se arrumado na vida. Embora respeitassem o que fizera,
não encontrava acolhida profissional. Tentou aqui e acola e descobriu que as
portas estavam cerradas. O aparato militar, o sistema como chamavam, fazia de
tudo para marginaliza-lo e marginado estava.
Tinha
sequelas físicas e morais. Difícil saber quais doíam mais. A impotência coeundi
(dificuldade de ereção) era consequência de sucessivos choques na região
perineal. O colega urologista fizera o diagnóstico, exames da inervação e lhe
dissera:
— Felizmente é uma questão de tempo. Não é
um problema permanente, tenho certeza.
O trauma ficou. Evitava sair com as
moças porque em tempos modernos a relação sexual era até bem vinda para ambos,
mas para ele era trauma na certa.
Vai de aqui, vai de acolá, ouviu falar
de um povoado na Amazônia, Jacareacanga, beira do rio Tapajós , milicos, os da
FAB, médico nenhum, quer dizer, um, velho e doente que a morte qualquer dia ia
aposentar.
Achou
o nome bonito, lembrava-se de seu pai meio reacionário, coitado e ainda perguntavam
se ele não era comunista, que contou-lhe uma vez que houvera uma revolta da
aeronáutica contra a posse do Juscelino que terminara em um lugar chamado
Jacareacanga.
Curiosos
esses nomes que falam de levantes, guerrilha oficial. Serra do Cachimbo. Major
Velloso. Tudo começara em Aragarças, depois Serra do Cachimbo e por fim
Jacareacanga onde a revolta terminou. Depois anistia geral. Bons tempos. Hoje a
Base Aérea na Serra do Cachimbo é um maravilhoso parque nacional e tem como nome:
Brigadeiro
Velloso. Eta mundo que dá volta, de major revoltoso a brigadeiro do ar Haroldo
Velloso! Lembrou que até rua em São Paulo tinha o nome dele.
Resolveu ir.
Era do jeito que imaginara, pois imaginara, o pior. Hospital pequeno, mal
equipado com dois auxiliares técnicos e um porteiro. No fundo uma pequena casa,
quarto, sala, cozinha e banheiro. Instalou-se, conversou uma vez com o Dr.
Estefânio que agradeceu aos céus e resolveu morrer perto do irmão em Porto
Velho.
Dez anos são passados
O Hospital não cresceu muito, mas
está limpo e equipado. O major da FAB comandante do destacamento local é visita
frequente. O material ou medicamento que pede lhe são entregues no máximo em
uma semana.
Da guerrilha trouxera a medicina de guerra. Operava e salvava mais gente
do que a memória conta. Praticava ate obstetrícia, mesmo sendo especialidade
particularmente detestada. Era raro dar outro destino ao doente, embarcando-o
para um centro maior.
Era respeitado a mais não poder. Não podia acreditar que os da Aeronáutica
lhe prestavam continência a começar pelo major cuja mulher ele salvara num
parto prematuro e delicado. Há muita fantasia na Amazônia, o fato é que voar
nem sempre é fácil, chove muito e as condições meteorológicas não são sempre
convidativas. Tem pouco brigadeiro voando por lá, porque o céu nem sempre é deles.
Interrompiam reunião de vereadores para saudá-lo, queriam porque queriam
elege-lo para a câmara, para a prefeitura ou para qualquer coisa que quisesse.
Não fosse amigo do padre que tivera vida parecida e teria sido eleito
Jesus Cristo com direito a ressureição e procissão. O amigo padre fora um dos
famosos padres de passeata.
O Padre Amaro que agora era
secular, nos bons tempos, será que tinham sido bons mesmos, era jesuíta.
Jesuíta e progressista, como é essa história? Era da província do Rio de
Janeiro, mais progressistas do que os dominicanos de São Paulo. Padre Vaz era o
mais famoso deles, mas o Padre Amaro não ficava atrás. Foi por causa deles que
Nelson Rodrigues tinha cunhado a famosa alcunha: “Padre de Passeata”. Padre
Amaro também fora preso e amargara tortura também. No fim a hierarquia da Santa
Madre resolvera que era melhor dissolver aquele grupo e o seculariza-lo.
Aceitou, queria esquecer o passado.
Meteu-se em Jacareacanga em busca
das almas perdidas do rebanho, mas como se diz do lobo, também se diga do
pastor, não perdera o vicio. Não enfrentava coronéis, mas abrigava na Igreja os
fugitivos, os sem terra ou sem espaço. Era coisa pouca, bem disfarçada, o Major
Antônio tolerava e sabia dos antecedentes. Parecia que do passado ninguém foge.
Ninguém se conformava que ainda morasse no Hospital, embora a casa
tivesse agora um segundo andar e três parabólicas diferentes.
Faltava contar da Carminha.
Primeira enfermeira diplomada a pisar o solo de Jacareacanga. Formada na Escola da Cruz Vermelha não
enjeitava trabalho sempre de uniforme impecável. Chamava Jose Roberto de
Doutor, mas era decidida e ia em frente com autorização dele ou sem. Ele
gostava daquilo, hierarquia era bom quando ajudava os outros, quando servia a
algum propósito, chamar de doutor e não saber das coisas não adiantava nada.
E então aconteceu, Carminha estava
verificando um ferimento grave de tórax. Estava com as mãos dentro do peito
aberto quando ele chegou por traz para ver o que acontecia e ai sentiu a
sensação mais feliz de sua vida. Carminha também sentira e retraiu-se na mesma
hora.
Mais tarde sentados na varanda do
hospital ele resolveu contar tudo para ela. No começo ela suspeitou de
impotência do tipo “Quanto mais quente Melhor”. Ela entrando de bocó na cantada
que pegou, no filme, no filme, Marylin Monroe. Depois percebeu que era verdade
e foi se achegando, foi-se achegando e se achegando...
Era respeitado até pelos índios que traziam, pelo rio, seus doentes, de
longas distâncias. Fizera sugestões e trabalhos que culminaram em um verdadeiro
oásis em que a febre amarela e a malária ficaram de fora.
Ainda era inquieto, ainda era amargo, mas muito amado, herói local
intocável para quem não havia feriado nem dia santo. Tinha certeza que o major
conhecia sua ficha e suas antigas ideias, mas batia-lhe continência em respeito
a seu presente e seus trabalhos.
No aqui e agora isso lhe bastava. Da esquerda guardava saudosa memória
embora estivesse fazendo pelo sofrido povo, mais do que faria se tivesse
ganhado a antiga parada.
Não esquecendo Carminha, será que
casamento de enfermeira com doutor dá certo? Ou isso só funciona em romance.
Por hora havia o acordo tácito, namoro só depois do expediente. Todo mundo
suspeitava e achava engraçado aquela história de Dr. Jose Roberto e Enfermeira Carmem e a vida seguia em frente.
Brasil grande esse, maior que
Brasília, São Paulo e Rio, bem maior.
Nenhum comentário:
Postar um comentário