O TRABALHO DAS FORMIGAS
Jeremias
Moreira
Apenas
quando o graneleiro “Florence D” ultrapassou as vinte e duas milhas náuticas,
limite do mar territorial brasileiro, o grego Nicholas Iacoca suspirou
aliviado. Ele havia embarcado no Porto de Santos para exercer a função de taifeiro,
no cargueiro.
Seis
meses antes, então com seu verdadeiro nome, Mauri Biondi, procurou um
falsificador que lhe providenciou dois passaportes. Um de nacionalidade grega, com
o nome Nicholas Iacoca. Outro, irlandesa, em nome de Liam Doherty. De posse do
grego, procurou a Companhia Marítima e inscreveu-se numa lista de tripulantes
com destino a Port Elizabeth, na África do Sul. Tudo parte de um plano que foi
elaborado durante o carnaval carioca do ano anterior.
Havia cinco
anos que Mauri trabalhava como gerente financeiro da Belize Imports, uma
importadora e exportadora de vinhos, azeites, café e cacau. A empresa utilizava
uma conta secreta no Credit Suisse para realizar as transações no exterior e
evitar pagar impostos no Brasil.
Mauri acalentava
a fantasia de descobrir o numero dessa conta secreta e meter a mão em parte dessa
grana. No entanto, não passava de fantasia.
A ideia
começou a ganhar corpo quando, no carnaval, conheceu Jane Rogers, uma loira tristanita.
Viveram um tórrido romance enquanto a moça permaneceu no Brasil. Foi a primeira
vez que ouvira falar de Tristão da Cunha, a ilha mais isolada do Atlântico sul.
Apenas um ponto no oceano, com população pequena e nenhuma oferta de trabalho, a
não ser doméstico. Jane queria mais que isso, então foi estudar economia em
Londres e agora era importante executiva do South African Reserve Bank, em Port
Elizabeth, na África do Sul.
Entre
amores e folias, falaram de suas vidas. No meio surgiu assunto dos respectivos trabalhos.
Foi quando Mauri, num indiscreto arroubo, mencionou a cobiçada conta no Credit
Suisse. E começam a divagar sobre essa possibilidade e a maneira de efetuar um
golpe. A partir desse momento tornaram-se cúmplices. A ideia deixou de ser
fantasia e quando deram conta, elaboravam um plano de ação concreto.
A mãe
de Mauri era filha de gregos. Por isso ele conhecia um pouco da língua e da
cultura. Também falava bem o inglês. Então, deveria conseguir os dois passaportes.
Como usaria o grego para viajar, deveria criar um personagem que viera pequeno
da Grécia para o Brasil. Foi o que fez. Enquanto isso Jane abriria duas contas no
South African Reserve Bank. Uma, na agência das Ilhas Virgens, em nome do grego
Nicholas Iacoca. Outra, em nome do irlandês Liam Doherty, na agência em Port
Elizabeth.
Jane também
deu dicas de como Mauri poderia conseguir o numero da conta da Belize Import,
no Credit Suisse. Seguindo as orientações, depois de diversas tentativas, ele
conseguiu.
Quando
recebeu a confirmação da Companhia Marítima, de que fora selecionado como
tripulante no navio “Florence D” e que partiria dentro dez dias, ele deu
continuidade à execução do plano. Pediu licença por motivo de saúde e um dia antes
de embarcar transferiu trezentos e cinquenta mil dólares do banco suíço para o
sul-africano, nas Ilhas Virgens, na conta de Nicholas. No mesmo dia transferiu
o dinheiro para a outra agência, a de Port Elizabeth, na conta de Liam Doherty.
Por
isso o alívio que sentiu a se ver em alto mar. Quando descobrissem o rombo e
somassem dois e dois para identificar o autor, já estaria longe. No fundo sabia
que tramaram uma teia perfeita que dificilmente seria descoberta em poucos dias. Mas, cautela e
caldo de galinha nunca fizeram mal a ninguém.
Quatro
dias depois o “Florence D” atracou no cais sul-africano. Conforme o combinado,
ainda usando passaporte grego, Mauri se hospedou no King Eduard Hotel, em
Belmond Terrace. Na recepção do hotel havia uma passagem, num envelope, em nome
de Liam, para o embarque na traineira de abastecimento, que partiria no dia
seguinte com destino a Tristão da Cunha.
Os dois
não deveriam ser visto juntos. Simulariam conhecerem-se na traineira. Alegando
que a mãe estava doente, Jane se licenciou do banco e comprou as duas passagens.
A
diminuta população da ilha era descendente de ingleses, por isso não foi boa
ideia o segundo passaporte com nacionalidade irlandesa. Os dois povos sempre
tiveram contendas. Jane não pensara nisso.
Mas como Liam estava como seu convidado a situação fora contornada.
Também não deveriam ficar muito tempo na ilha. Apenas o tempo da poeira baixar.
E Jane era uma filha do lugar. Contribuía bastante para a prosperidade de sua
gente. Chegaram em Edimburgo dos Sete Mares, o único povoado, e Mauri, isto é,
Liam fora apresentado como um pretendente e como tal conheceu quase que o total
dos 297 habitantes. Nos dias que se passaram não havia muito que fazer. Mauri
sentiu uma maneira estranha no jeito como o tratavam. Era como se soubessem que
sua estada seria curta e única. Mesmo como suposto irlandês nunca fora
provocado. Pareciam saber e participar da farsa. Durante esses dias passeavam
bastante e era no pequeno e distante Park Lane onde conseguiam ficar na
intimidade e fazer amor.
Jane
havia levado a papelada formal do banco para que Liam assinasse.
Dois
dias antes de retornarem para Port Elizabeth, Jane propôs um passeio até o Poço
das Almas:
− Um
lugar de purificação! – ela falou.
Até
então Mauri esteve relaxado e não pensara no que estavam fazendo. Sabia que,
fatalmente, seria alvo de uma caçada sem fim. Mas, não pensava nisso. Para ele
a vida junto de Jane era o futuro e nada abalaria isso. Mas, ao ouvi-la falar
em purificação alguma coisa abalou sua mente. Pela primeira vez um sentimento
de culpa se apossou dele.
Pela
manhã saíram em direção ao Poço das Almas. Chegaram a um planalto coberto por relva
densa. Caminhavam lado a lado e se esforçam para abrir espaço entre a erva alta.
Jane o desafiou que chegaria primeiro. Mauri acelerou e, a cada passo, se
adiantava e deixava-a para trás. Súbito o chão faltou para Mauri e ele desabou
no vácuo. Precipitou-se até seu grito não ser mais ouvido.
Ele
chegara ao Poço das Almas!
Jane
voltou para casa. No dia seguinte partiu para Port Elizabeth.
Como a
formiga, suprira seu povo por mais uma temporada!
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