Água mole em pedra dura... - José Vicente J. de Camargo



Água mole em pedra dura...
José Vicente J. de Camargo

Bene pôs o dedo no gatilho. Tinha os olhos fixos no açude – dava até pra chamar de poço – trazia o coração esmagado qual mandioca no pilão de farinha, as costas arcadas pelos anos de árduo trabalho naquela terra bruta, na lida dos animais, no recrutamento da peãozada, no controle cansativo dos boias frias, debaixo de sol causticante encrustando a pele. Preferia ser cego, não ter a desgraça de ver a terra contorcida, entrecortada por trincas, pedras ao léu e moitas de capim espinhento que nem carrapato se acomoda.

Mas não fora sempre assim...

Era uma beleza de dar gosto! O pasto verde dava conforto aos olhos, sossegava a alma, se sentia no bolso o volume das notas, o tilintar das moedas com a venda da colheita farta. A família ao redor da mesa, curtia a variedade de pratos de sabores refinados, feitos por Nha Dita, cozinheira de mão cheia, guardadora a sete chaves do segredo dos temperos. Os saraus de domingo a noite, embalados pelas sanfonas, cavaquinhos, violões e até flauta de sopro, levava o nome da fazenda Santa Rita aos quatro cantos da comarca – sem falar na festa do Divino que Dona Guiomar fez questão de trazer, no carro de boi, seu piano alemão. Tudo pra dar mais importância à festa daquele ano, que ele, Patrono, oferecera ao município. Três dias de festas, quatro bois abatidos, aguardente da mais pura cana destilada dias seguidos no alambique de cobre do compadre Teodoro, foguetório de muito brilho e cores trazidos diretamente da capital. Não houve outra igual. Nenhuma outra fazenda realizou festão igual ao da de Santa Rita. Ficou pra história...

Talvez até pudesse acontecer, se o destino assim quisesse, de um outro Patrono tirar-lhe o cetro e a coroa de melhor festeiro da região, se não fosse a desgraça da seca chegar, anos a fio, a corroer aos poucos o verdão dos campos, o amarelão do milharal, a gordura vistosa da criação, sugando a água dos córregos como uma esponja pegajosa até derrubar ao chão, agora amaldiçoado, a carcaça dos animais. A família se fora, expulsa pelo calor sem tréguas, pela água insalubre, pelas pragas peçonhentas que buscam a sombra da Casa Grande e trazem consigo as febres, as diarreias, as inflamações das coronárias. Com ela foram os demais serviçais, pé na estrada, em busca de outras paragens mais humanas, de sonhos possíveis de um dia acontecerem.

Mas ele se sente atado à terra que o viu nascer e crescer, não se acostumará em outra, um peixe fora d’água, não sobreviveria...

Então um estampido fura o ar quente, levando consigo o protesto de uma alma depressiva pela força desigual da natureza implacável...

Davi contra Golias!

Mas por que desistiu? Por que não invocaste o Divino?

Onde ficou a força dos antepassados transmitida de geração em geração? O viver até a última gota de sangue? Até o último pingo de suor? A fé de poder tirar água da pedra?

A perseverança traz o prêmio da conquista...

Há brasas debaixo das cinzas...

A terra, protagonista da história, se repete em ciclos.
Adormece, morre contorcida, mas se revigora nas entranhas e, explodindo, renasce germinando o ar.

A chuva voltou, os córregos correram, o verde brotou...

Nha Dita preparou o feijão tropeiro nos segredos dos seus temperos...



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