Cartas
de outros tempos
Ises de Almeida
Abrahamsohn
— ”Tenho um segredo para
te contar. Encontrei cartas do vovô Eurico escondidas no sótão. Fiz ontem uma
grande limpeza na casa e estava disposta a jogar a maior parte daquelas
velharias fora.“.
Quando vovô Eurico
morreu, a nossa nona não deixou que jogássemos fora o conteúdo da escrivaninha.
Foi colocado em uma daquelas malas de navio que ela ainda
guardava da vinda da Itália. Tampouco quis selecionar o material a ser
guardado. Dizia que nós, as netas, poderíamos algum dia, quem sabe, vir a
conhecer os tempos
de um passado sobre o qual, em vida,
ele silenciara.
— “Você se lembra
daquela caixa bem antiga de biscoitos - daquelas de metal- a marca era Aymoré -
e tinha a estampa de uma menina com o urso e a boneca tomando chá com biscoitos? Pois é ! Lá ele guardou algumas cartas e
fotografias.“
A caixa em si me fez
recuar até a nossa infância. Ficava sobre a geladeira, e nela a mãe guardava
biscoitos. Vovô Eurico aparecia todos os
dias lá pelas quatro e meia para tomar chá e mamãe colocava a lata na mesa.
Nós ganhávamos uma
xícara de leite com Ovomaltine e dois biscoitos. Vovô tinha livre acesso à caixa e, sem que mamãe
visse, nos dava mais um ou dois. ”Mangia
que te fa bene...” era o refrão. Quando chovia e não podíamos
brincar lá fora, ele contava histórias da vila onde crescera. Lembro-me das
vezes que ele, sem se dar conta de que éramos crianças, falava das privações, da pobreza e da guerra que passara no seu amado Piemonte.
Hesitei ao pegar os envelopes. Teria
eu o direito de entrar na intimidade de meu querido nono? Mas lembrei da vovó Nunzia e ela queria que um dia lêssemos as cartas.
Abri o primeiro envelope: era endereçada a
Eurico Casella com endereço em Ribeirão Prieto , escrito assim mesmo. A
remetente era Isabella Montini, da cidade de
Carmagnola. Eu sei que a vila do
vovô ficava lá perto.
O meu italiano está meio
esquecido, mas deu para ler a primeira
carta de março de 1921.
As frases eram curtas e a
linguagem simples. A moça era namorada
do nono. Queria saber como ele estava passando, falava de solidão e de seu amor e terminava perguntando
quando ele enviaria o dinheiro para a passagem dela.
Li então a carta datada
de um mês depois. Nesta, frases urgentes relatavam a
gravidez e pediam ao nono para trazê-la ao Brasil .
Queria que a criança tivesse um pai!
Coitada da Isabella! O
nosso avô pisou feio na bola ! A seguir deve ter havido
outras cartas, mas ele só guardou esta
de 1924. Nela, Isabella enviara a foto de uma linda menina , carinha de anjo
de Rafael. Aliás, cara do avô Eurico, os mesmos olhos. Foto em preto e branco, mas suponho serem do mesmo azul
que nem eu nem a mana herdamos. A garotinha chama-se Luna.
Finalmente há uma última
carta de 1932. É curta e claramente de despedida final. Isabella
casou-se (ainda bem), e tem
outro filho , Renzo, de dois anos. Envia
outra foto de
Luna que conserva, mesmo
adolescente, o rosto angelical emoldurado por tranças
louras e
iluminado por um sorriso
travesso. O endereço agora é de outra cidadezinha, Chivasso, nos arredores de
Turim.
— “Então, querida mana...
Nossa mãe teve uma meia-irmã e nós uma
meia-tia vivendo na velha Itália sem que
soubéssemos. Se ainda viver, terá 95
anos e
devemos ter primos segundos
por lá.
Acho que vovó Nunzia
sabia de Isabella e de Luna, mas mamãe
certamente não. Vô Eurico foi várias
vezes à Itália nos anos cinquenta e
sessenta. Será que Luna algum dia encontrou o pai? “
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