Ato subversivo
Ises de Almeida Abrahamsohn
O ano era
1968. Estudantes de medicina da USP, frequentávamos o hospital
para aprender a diagnosticar e a
curar. Para a maioria era o primeiro contato com aquela
população que acorria ao Hospital das Clínicas vinda de todos os cantos do Brasil. Era o último recurso
daquelas legiões de doente e espoliados
cujas doenças e miséria eram
agravadas por décadas de descaso dos
governos . Eles estavam ali, bem à nossa frente, aqueles
destituídos, corporificados personagens dos
escritos de Graciliano Ramos e Jorge Amado.
Não era de
estranhar que todos tivéssemos
ideais de um Brasil mais justo , um Brasil muito distante do ideário
dos governos militares que se sucediam
desde 1964. “Quem não foi socialista até os vinte anos não tem coração”: a frase atribuída a Clemenceau, servia-nos
bem. Alguns de nós se engajaram na militância. De uns, sabíamos as filiações. De outros, nem
desconfiávamos. Dizia-se que os verdadeiros militantes se dissimulavam entre os alunos inexpressivos, eram cinzentos
e
insípidos de modo a não atrair
atenções.
Naquela tarde
de outubro vieram os agentes do DOPS
atrás de um casal de
colegas. Raul e Marina
haviam se casado há um ano e tinham uma menina de 8 meses que
ficava na Creche do HC durante o dia. Ninguém suspeitava que fossem
militantes. Eram estudantes médios,
anódinos, e aparentemente mais preocupados em conciliar a vida familiar e a escola. Os esbirros do DOPS não conseguiram pegá-los . Em vão procuraram nas salas de
aula e interrogaram colegas. O casal sumiu do prédio poucos minutos
antes da chegada
dos agentes.
Furiosos, os
agentes desceram os dois quarteirões até a creche.
Pegariam a filha e com esta fisgariam os pais. Filhos de subversivos eram um trunfo valioso
naqueles tempos de DOPS e OBAN. Que pais não entregariam todos os contatos ao ver
o filho ameaçado ou torturado ?
A enfermeira de plantão, Neide, recebera há
cinco minutos o telefonema de um dos colegas do casal. Neide, como a maioria das pessoas não se
envolvia em política. Mas ao ouvir o relato sumário da situação não
hesitou. Colocou a garotinha no berço
de outra menina que não viera à
creche naquele dia. Logo depois apareceram os abutres. Neide
informou que a criança fora
levada embora pelos pais na hora do
almoço. Um dos agentes foi montar guarda
à porta dos fundos; o outro chutou a
porta do berçário e verificou
um a um todos os berços. Encontrou alguns vazios, suspeitou de algo, e
ameaçou Neide com prisão. Esta se
manteve firme e os odiados jagunços da repressão foram embora.
À noitinha, uma
colega do sexto ano, ao buscar o filho, levou também
a menina. O casal não mais voltou
à escola. Anos depois soubemos que
tinham conseguido escapar com a
filha para o
Uruguai. Raul e Marina completaram o curso de medicina na França e jamais voltaram ao Brasil.
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