Imigrantes.
Ises A. Abrahamsohn
Aisha abraçou Yasmine enquanto
o avião chacoalhava ao passar
pelas nuvens baixas carregadas de chuva. A menina chorava baixinho na completa
escuridão. Relâmpagos que pareciam mísseis estouravam próximo à fuselagem. Aisha respirava aliviada ao ouvir o trovão. Desta
vez não era um míssil! O avião era um velho monomotor Antonov de 1981 de seis lugares que voava a cerca de
1000 pés. Tinha as luzes apagadas
ou seria alvo fácil para qualquer atirador que
estivesse alerta. Ao lado de
Aisha estava seu marido, Farid, segurando
Samir o filho mais novo. Este, exausto de tanto chorar, adormecera.
Laila, grávida
de cinco meses ocupava o banco traseiro. Laila era mulher de Naim, o
piloto. Laila tentava enxotar do cérebro
as lembranças das últimas semanas
em Aleppo. Chegar até a Turquia era a
única chance de escaparem. Há um mês
ainda tinham esperança que o seu bairro seria poupado. Mas os
bombardeios foram chegando cada vez mais perto. Há duas semanas, além da
destruição, o reservatório de água fora
atingido. A cada dia, achar água potável tornara-se um
esforço insano e arriscado ao caminharem
pelas ruas cheias de entulho. Há uma
semana as outras casas do mesmo quarteirão viraram escombros restando apenas a
sua e a vizinha onde moravam Aisha e a família.
Há um mês, seu marido, Naim, havia sido contatado por um dos grupos resistentes aliado dos
curdos . Laila entreteve a ideia de
poder escapar para a Turquia. Mas os
combatentes foram irredutíveis,
apenas Naim poderia acompanhá-los.
Laila sabia que Naim tinha um plano alternativo de fuga. Na parte
mais afastada do aeroporto parcialmente destruído,
Naim encontrara num hangar meio destroçado , um
velho monomotor abandonado ,
provavelmente de algum russo que não lhe vira mais serventia, nem para
sucata. Esses velhos urubus eram
bastante fortes e Naim sabia que se conseguisse restaurar o motor, o
Antonov poderia voar os 200 km até
Osmaniye. Mas Naim era piloto e a mecânica que sabia não era suficiente. Lembrou-se de Farid , seu vizinho
cristão. Este tampouco entendia de aviões mas era excelente mecânico.
E assim Naim, devoto muçulmano e Farid, trabalharam
durante três semanas no velho avião. O
motor estava em péssimo estado;
encontrar peças era o maior
problema. Farid era de fato um bom
mecânico e conseguiu adaptar peças de
carros e mais algumas que achou nos
escombros dos hangares vizinhos. Finalmente
conseguiu fazer o motor funcionar
e a hélice girar. Tinham que trabalhar
com cuidado para não chamar atenção
e mesmo andar pelas ruas era perigoso.
A dificuldade seguinte foi arrumar combustível.
A única forma era o câmbio negro ou roubar. Conseguiram alguns galões a peso de ouro. Testes para verificar se o Antonov voaria, não houve. E mais, teriam que voar à noite com as luzes apagadas.
Ficaram à espera da
sexta-feira, talvez houvesse menos ataques;
a estação de rádio turca anunciava tempo instável, ruim para voar mas
melhor para escapar . Traziam consigo o
mínimo: documentos, dinheiro, alguma comida e
água. Tudo o mais ficou para
trás. Com roupas de lã e casacos grossos as crianças pareciam pequenas trouxas.
Laila olhou pela janela suja. Via algumas luzes esparsas
embaixo. A viagem, pelos cálculos,
duraria cerca de 2 horas. O velho motor
não dava mais que 100 km/hora. Já
voavam há cerca de hora e meia. Daqui a
pouco cruzariam a fronteira. O cuidado agora
era não serem abatidos pelos turcos. Laila ouviu o marido falando ao rádio com
a torre. Portanto já estavam sobrevoando
solo turco. Laila rezava nas contas de
seu terço enquanto Aisha murmurava suas preces, ambas para o mesmo Deus. Ambas
sabiam dos perigos da aterrissagem. Finalmente
Naim escutou as ordens da torre. Acendeu as luzes e após mais quinze minutos viu as luzes da pista e recebeu a permissão de pouso. O velho urubu
aterrissou tal qual
elegante e destemida águia.
Ao saírem do avião,
Laila e
Aisha beijaram o chão. Tinham
conseguido escapar. O filho de Laila
nasceria num país sem guerra. Yasmine e Samir
cresceriam num país livre.
As duas famílias tinham
alguns parentes no Brasil.
—
Como seria esse país ? Alguma coisa
tinham visto pela internet.
Mulheres quase peladas
nas praias ...
—Será que todas
andavam assim?
— Nenhuma delas
coberta com burka ou abaya, sequer com lenço na cabeça!
Futebol também tinham
visto, os maridos gostavam, tinha um tal Pelé, este já devia estar velho e
outro Neymar, com cabelo espetado, ganhava montes de dinheiro na Espanha!
Também viram cidades enormes, São Paulo, com gente de todas
as cores andando apressadas e trânsito atravancado!
Não tinham muito
dinheiro:
— Como iremos sobreviver?
Mas o Brasil era um novo mundo e os outros tinham conseguido.
Eles também conseguiriam
prosperar nessa terra de imigrantes.
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