TONHÃO. - Mario Augusto Machado Pinto


TONHÃO.
Mario Augusto Machado Pinto

Tonhão, mestiço de preto e índia, baixinho, forte na capoeira apesar de magricela, pensava ter feito alguma trapalhada pra Nhô Zeca mandar Sôquim ir acordá-lo antes do amanhecer. Enfrentaria, de certo, a raiva de Nhô Nhô e seria acusado de algumas coisas que não entenderia,  e receberia castigo de dez lambadas com chicote de couro de cobra sucuri - a que mais corta a carne e deixa dores fortíssimas quando banhada as costas com água e sal – o que fez aumentar sua revolta contra o tratamento que estava recebendo do Nhô Zeca e do feitor Sôquim.

— Da próxima, vai de quinze, viu? Vê se toma jeito! Berrou Nhô Nhô. E o Sôquim com o seu vozeirão aproveitou para acrescentar:

- E vai ficar um par de dias ao sol, no tronco.

Sua cabeça não aceitava o que disse o feitor. Estava malvado, o que nunca foi. Alguma coisa estava errada.

Tinha que descobrir o quê. Só pensava em falar com ele, mas como? Da última vez levou um safanão, que o fez rolar no barro sujando a roupa branca de brim. Foi um upa pra Terna lavar. Resmungou o tempo todo dizendo que não era minha mucama. Ora, ora, mucama de ninguém, mas gostava de dormir junto e não tinha vergonha de pedir.

Há quase dez anos na Fazenda do Lago, não estava muito certo disso, mas achava que havia chegado com dez anos, mais ou menos. É Gegê Nagô, mas mesmo assim tem medo de mandinga. Nesse tempo todo aprendeu a língua do Nhô Zéca, a fazer pra família dele o melhor e o mais disputado Mugunzá da região com o mais delicioso puré de milho branco cozido na água com sal e coco. Seu segredo? O caldo açucarado no ponto, coisa que ninguém conseguia.

Cuidava de Nhô Nhô como se fora seu pai. Uai, como pai, sim!  Sim.  Pois, não brincou como irmão com a filharada do homem? Não fazia tudo certo? Não ensinou a molecada a caçar e a pescar? Não guardava a sinhazinha, não fazia todas suas vontades? Então por que vinha sendo castigado seguidamente? Não era por desleixo nem pouco caso. Por coisas que aconteciam? Que coisas? Por quê?

Seguiu cuidando das galinhas, das cabritas, das verduras e frutas no terreno perto do casarão, mas não deixava de pensar no porquê do mau tratamento que vinha recebendo, e do seu esforço não ser prezado como antes.

Sempre que possível andava por perto do Sôquim ou rodeando o lugar onde ele ficava; desse modo ouvia as conversas do feitor falando do que acontecia na fazenda. Aproveitava toda informação pra não fazer lambança.

Essa escuta deu resultado. Um dia ouviu uma parte da conversa de Nhô Zeca com o Sôquim e ouviu Nhô Nhô gritando dizer que Tonhão tinha feito coisa muito errada: tinha ido até o rio de mãos dadas com a Sinhazinha! Não tolero isso! Dá um trato e some com ele daqui!

Daí em diante ao trabalharem juntos não tirava os olhos do feitor. Tinha medo, mas não demonstrava. Foi assim até a noite em que descobriu que Sôquim tava querendo agarrar a Terna, mas ela fugiu. No dia seguinte falou com ela e soube que ele não dava sossego pra ela.

- Deixa estar. Vou cuidar disso, mas você fica quieta. Deixa ele falar uma vez com Você. Não abre o bico, recomendou.

Tonhão ficava na moita todas as noites até que Sôquim apareceu, chamou a Terna e convidou ela pra ir até o rio. Tonhão começou a cantar:

“Sussu, sossegue,
Vai dormir seu sono,
Deixe o amor dos outros
  Que já tem seu dono.” (*)

Sôquim reconheceu a voz de Tonhão:
- Amanhã te pego, moleque, mas antes vou pedir ajuda ao Mané Maneta; aí, quero ver só!

Tonhão estremeceu. O Maneta! O medo apossou-se dele. Resolveu enfrentar Sôquim ali mesmo, na hora. Correu atrás dele, encontrou-o e deu-lhe uma rasteira, derrubando-o. Sacou do seu porrete e deu-lhe na cabeça, só parando quando, cansado, viu que Sôquim estava quieto. Não reagia. Estava liquidado.

Agora é fugir. Pegar o rio, sumir. E pra atravessar como vai ser?

Foi até o cercado, pegou a barrigada do cabrito do jantar e colocou num saco, pegou um rolo de corda forte, a faca grande e correu pra juntar tudo em cima da barriga do Sôquim. Puxou o corpo até o rio, fincou uma estaca no chão, nela amarrou uma ponta da corda. Envolveu o corpo do feitor com várias voltas da mesma corda e entrou com ele no rio. Lançou a barrigada bem longe na água.  Deixou a correnteza levar o saco e o corpo. E ficou escutando... Ai ouviu o barulho dos peixes. Entrou devagarinho mais adentro do rio. Mais um tempinho e começou a nadar lentamente até chegar à margem do outro lado, subiu o barranco e olhou o rio: fervilhava de peixes. 

- Esta noite as piranhas vão ter banquete! Exclamou. 

Virou-se e tomou a direção do seu novo destino.




(*) Spis und Martius – Reise in Brasilien – Zeiter Theil, pag. 664

apud… 

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