ARIÔ.
Mario Augusto Machado
Pinto
É feriado em Bangkok.
O movimento é mínimo devido às solenidades e rezas aos deuses da fertilidade de
uma milenar seita religiosa Hindu. Depois de anos sem nos vermos, há horas
estou conversando com o amigo da minha juventude na calçada do Hotel onde está hospedado.
Mantivemos contato pelo Skype, mas pessoalmente é melhor.
Nós, Egídio e eu – Eg,
só para poucos amigos - acompanhamos e participamos de nossa vida pessoal, a
profissional – sou médico em Bangkok e ele, importador na Malásia – é tratada
discretamente entre nós. Não misturamos canais, evitamos possíveis confusões.
Admiro o Eg, além
disso, gosto dele. É um amigão. Quem está com ele pela primeira vez o considera
um tipo diferente - assim como eu, modéstia a parte – só que ele veste-se bem,
conhece etiqueta social como poucos, é desembaraçado, piadista e cabeça pensante,
não fala abobrinhas e gosta de carros velozes. Bem sucedido na profissão, bem
de vida, solteiro com muitas amigas e achegos, tem opiniões e convicções fortes
e cimentadas. É ponta firme. Confio nele.
— Bom, bom, bom, vamos
mudar de assunto. Estou curioso: e o seu esporte favorito, mulheres: como anda
o mulherio no seu mercado? Perguntou Eg com um sorriso matreiro (sempre estamos
comentando sobre mulheres acontecidas em nossas
vidas. Assunto melhor do que esse? Duvido). Conta
lá.
Alegremente respondi:
— Bom, conheci e vivo com a terceira mulher
mais linda em que pousei meus olhos nestes últimos anos, mas foi numa situação
vexatória.
— Outra?
E por que só agora me conta? É sério?
— Seríssimo. É porque de todas, só ela me
cativou e egoisticamente a quis só para mim. Passei esse tempo todo como anos
sabáticos do amor.
Você se lembra do
hall do aeroporto de Frankfurt? Pois é. Foi lá. Acabara de fazer o check in da escala, procurava a sala de
embarque quando meus olhos deram com aquela Afrodita esplendorosa caminhando na
minha direção. Zeus me mandou quinhentos raios! Fiquei tão extasiado e
abobalhado que quando ela chegou perto tropecei numa das rodinhas da mala e me
esborrachei no chão como que mergulhando, mas sem tirar os olhos daquela
figura. Rapaz, que vexame, mas fui recompensado pela visão detalhada e gloriosa
de um par de pernas e pelo sentir do seu perfume. Coisa de louco! Riu-se.
Ajudou-me a me recompor e, sorrindo, murmurou ao meu ouvido Valeu a pena? Bom, acho que falou isso num sussurro
aveludado com um inglês muito ruim e continuou seu caminho sem olhar pra trás.
Cara, que coisa mais linda! Digo como o Chico e o poetinha: foi ela que passou
e ficou na minha vida.
— E aí?
— E aí ficou nisso mesmo até que passado alguns
meses eu a vi entrar na doceira em que eu comprava alguns chocolates. A
surpresa foi mútua. Sem percebermos, nos abraçamos e rindo alegremente ela
falou Pra mim valeu a pena esperar
acontecer. Quase desmaiei... Eg, valeu esperar acontecer.
Namoramos. E em pouco
tempo passamos a morar juntos na minha casa. Foi um tempo de muito amor e
felicidade. Quando íamos a algum lugar ela, mestiça de sueca com tailandês,
chamava a atenção geral tanto quanto alguma pop star de hoje
— Mas Você fala no
passado: ”foi, íamos, chamava”. Por que?
— É que pela idade ela
mudou no físico e no comportamento. Estou como que aceitando ela ter algo
errado mentalmente. Meu caro, está cada vez mais difícil aceitar seu viver errático,
às vezes vexatório, sua fala incompreensível. Mantém o rosto com traços
bonitos, o físico continua quase igual, mas a cabeça...
Ah meu velho, só
vendo. Pra mim é muito triste. Deixo fazer o que quer, seja o que for só para não
ver seu abatimento. Por falar nisso, preciso ir. Está na hora dos remédios.
— Meu amigo, sinto
muito por isso que me conta e que você
tenha que ir-se...
—Pera aí. Vamos continuar nossa conversa lá em
casa, assim Você também a conhece.
— Mas assim , de
repente, sem avisar...
— Não esquenta. Ela vai adorar. Vamos.
Chegaremos com tempo para uns drinks.
Conversando durante
todo o trajeto chegamos sem perceber o tempo passar. Entramos. Som de música
romântica. Todas as luzes acesas iluminando o espaço térreo com suas paredes
totalmente espelhadas, e ela ali, de costas para nós, encostada na portada do
nosso grande salão. As luzes iluminavam sua frente marcando com as costas o
perfil de seu corpo ainda quase que perfeito...
— Mas ela está...
— Nua? Sim, não se incomode. Está se olhando
nos espelhos, falando com sua imagem, com personagens de sua imaginação, perguntando
por mim...
— Diga
quem está com Você...
— É meu amigo Eg...
— Vem cá Eg. Eu sou a
Ariô. Segure minha mão. Me ajude a procurar nos espelhos...
— E agora: o que faço?
— Vai lá. Segura a mão. Fique atrás das costas
dela. Não faça mais nada. Escute. Não
fale. Não comente. Vai logo. Isso, isso. Ela vai falar.
— Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
Tão paradas e frias e mortas;
Eu não tinha este coração que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida a minha face?
(*) Retrato
– (Cecília Meireles)
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