O
QUE É UMA MULHER?
Oswaldo
U. Lopes
Deu-se aquilo porque
sinhá Vitória não conversou um instante com o menino mais velho. Ele nunca
tinha ouvido falar em inferno. Estranhando a linguagem de sinhá Terta, pediu
informações. Sinhá Vitória, distraída, aludiu vagamente a certo lugar ruim
demais, e como o filho exigisse uma descrição, encolheu os ombros.
...
-Inferno, inferno.
Não acreditava que um nome tão bonito
servisse para designar coisa ruim.
O texto acima é de Graciliano Ramos, não
é meu autor favorito, esse título vai para Guimarães Rosa. O estilo frio
seco e cortante de Graciliano sempre me pareceu muito árido. Já Guimarães Rosa,
além de colega (era médico) tem uma maneira de escrever mais de acordo com o
que eu faço e gosto. É mais redundante, mais volutuoso, seu texto como que voa
junto com suas veredas.
No entanto o texto cru de Vidas Secas
nos leva diretamente a questão maior deste ensaio: o significado das palavras
que estão constantemente a nossa volta. Inferno para o menino mais velho,
mulher para mim¹.
No mundo que nos rodeia para vários
objetos e mesmo seres biológicos, não é difícil estabelecer uma resposta adequada
para a pergunta: o que é? Para outras palavras o resultado é impreciso ou
inadequado.
Encontrei na Internet um texto de Chris
Boillier que certamente passou por uma experiência forte. Casada dois filhos,
lutando com as dificuldades de todo casamento (moradia, recursos financeiros,
educação dos filhos) é surpreendida pela decisão do marido de se incorporar ao
sexo feminino ou como se diz modernamente, tornar-se uma trans mulher.
Em meio a um conflito arrasador ela
formula a pergunta título deste ensaio:
-
What is a woman?
E as afirmações mais contundente,
dirigidas ao seu marido:
-
It’s not possible for you to be a woman – Não é
possível para você tornar-se uma mulher.
- You
can’t be a woman – Você não pode ser uma mulher
Perguntei a uma pessoa amiga do
sexo feminino como ela responderia a pergunta título. Ela assim principiou:
_ É
um ser complexo... Ela continuou sua explicação, mas eu me fixei neste início:
ser complexo.
Há pouco tempo O Comitê Olímpico
Internacional (COI) fixou o que seria uma mulher:
-Um
ser humano que tivesse menos do que 10 nano mol/litro de sangue de testosterona
A questão veio à tona por causa de uma
jogadora de vôlei (Tifanny Abreu) que é uma mulher trans e tem níveis mais
baixos do que isso de testosterona. Estabeleceu-se certa celeuma porque até os
29 anos Tifanny teve níveis muito elevados de testosterona, pois era
biologicamente um homem.
Em matéria de reducionismo o COI é
imbatível
Aos que simplificam a questão afirmando
que a mulher é xx e o homem é xy e, portanto, a cromatina sexual resolveria o
problema, lamentamos informar as numerosas combinações possíveis do tipo xxy,
xxxy ou mesmo um xy que é fenotipicamente uma mulher e muitas vezes, muito
bonita. Alguns configuram, sem provas, que Kim Novak fosse um exemplar dessa
combinação. O que acontece nestes casos?
O feto é insensível à testosterona
secretada devido ao cromossomo y e o desenvolvimento se dá no sentido da figura
feminina. Talvez esta seja a primeira resposta à pergunta lá de cima.
Recentemente o Instituto de Psiquiatria
do Hospital das Clínicas da FMUSP publicou um artigo em que foram comparadas
ressonâncias magnéticas de homens cis, mulheres cis, mulheres trans que
recebiam hormônios e mulheres trans que não recebiam hormônios. Indivíduos
cisgênero são aqueles em que a compatibilidade entre o sexo atribuído no
nascimento e a identidade de gênero (como a pessoa se percebe) são os mesmos.
No caso das pessoas trans há uma divergência entre o sexo atribuído e a
identificação de gênero.
Os autores são extremamente cuidadosos
na sua avaliação, tamanho da amostra e outras variáveis, mas o fato é que mulheres
trans e mulheres cis têm semelhança na formação cerebral denominada ínsula que
se opõe totalmente ao observado nos homens cis.
A mulher é o ser básico. Contrariamente
ao que nos ensina o Gênesis, não é possível do menos tirar o mais. O cromossomo
y é pequeno, quase vazio. Não sendo a testosterona capaz de agir o ser básico
aflui na forma feminina.
Uma das bandeiras das sufragistas no
começo do século XX (faz 100 anos que as mulheres conseguiram no Reino Unido o
direito de votar) era:
As mulheres são as mães de todos os
eleitores e não podem votar.
O ser mãe que seria a
condição irrecusável, embora não a única, para classificar alguém como mulher,
começa a ser abalada. Feito ainda, entre mulheres o transplante de um útero já
fecundado é uma realidade para aquelas que querem ter um filho, mas não tem
todas as condições necessárias.
Antigamente quando se adentrava as
Escolas Médicas, sem Internet nem Grupos Sociais, uma surpresa que aguardava os
jovens calouros na anatomia, era de que homens e mulheres tinham o mesmo número
de costelas. Parece que só Adão ficou sem uma.
Na nossa época, pelo menos no mundo
ocidental, mais tolerante e disposta a permitir a chamada inclusão social, sem
restrições, pré-requisitos ou preconceitos, torna-se difícil estabelecer certas
demarcações e limites.
O que é o inferno, o que é uma mulher, o
que é um filho?
Seres e espaços complexos, para os quais
nossas palavras e nossa semiótica não se adequam. Falhamos na percepção do que
nos rodeia.
Ser básico, complexo que dá origem a
outros...
¹Estas ideias sobre o texto de Graciliano Ramos retirei do capítulo escrito por Izidoro Blikstein: Roland Barthes como decifrar o mundo, contido no livro: Barthes 100 ideias e Reflexos, publicado pela Eduel, 2017.
___________________________________________
¹Estas ideias sobre o texto de Graciliano Ramos retirei do capítulo escrito por Izidoro Blikstein: Roland Barthes como decifrar o mundo, contido no livro: Barthes 100 ideias e Reflexos, publicado pela Eduel, 2017.
Nenhum comentário:
Postar um comentário