HIROITO DE NOVO - Oswaldo U. Lopes


HIROITO DE NOVO
Oswaldo U. Lopes

            Lá estava Hiroito de novo no ônibus. Só que desta vez a viagem era mais curta. Agora, além de japonês da estadual também era chamado de japonês remanescente ou “japa que sobro”, depois do que acontecera com seu colega da federal.

Recostado no banco pensava ao acaso e em diferentes coisas. Por exemplo, no fatídico ônibus dos estudantes na Mogi-Bertioga. Não podia disfarçar o alivio que sentia em viajar num ônibus de carreira e numa estrada de duas pistas, bem larga e num veículo o qual, tinha certeza, possuía tacógrafo e motorista habilitado e preparado.

            O outro pensamento ia para a palavra que o chefe usara quando o designara para a missão: pareidolia. Nela o bravo e perspicaz Hiroito tinha empacado e necessitara do dicionário. O Dr. Fabricio tinha dito apenas que as pessoas da cidade tinham visto no vidro novo da Igreja uma imagem que curiosamente, não tinha sido de Santos nem de Nossa Senhora ou similar:

- Um caso típico de pareidolia, arrematara o delegado.

            Hiroito entendera, mas como gostava de fazer nessas ocasiões, fora mais fundo na procura do significado:

“Fenômeno psicológico pelo qual as pessoas associam determinada imagem formada ao acaso (nuvens, por exemplo) com imagens visuais.”

Às vezes a associação se faz com sons. Enfim a raiz grega estava lá e grego, era com ele. Não que falasse grego, mas ia fundo na origem das palavras e muitas vinham do grego passando pelo latim. Para= ao lado, eidolia = imagem. Tai! - pensou ele - Semelhante a uma imagem que já existe na nossa memória. Como é que os antropólogos gostavam de classificar os homens: primatas visuais. Muitas coisas explicavam a primazia do homem no reino animal, mas a visão e o fogo eram muito bem colocados.

E assim ele seguiu para a Comarca de Descalvado município antigo do Estado, cheio de história, mas meio curto de progresso.

Por que raios, a polícia local não conseguira avanços na investigação do crime? Está certo que assassinato misterioso não era parte do dia a dia de Descalvado. Os poucos, havidos eram sempre de arma na mão. Podão, garrucha ou tresoitão. Os motivos, os de sempre: passionais, negócios e recentemente tráfico.

Pelo pouco que contara o Dr. Fabricio, o pessoal de Descalvado começou a ver num vidro novo da lateral da Igreja um desenho que associavam a um barrete. Como o vidro estava bem em cima da 12ª Estação – Jesus Morre na Cruz – todo mundo começou a falar que um padre ia morrer.

Deu muita confusão nas paróquias, em vez de refutar a crendice teve vigário que passou a trancar a Igreja mais cedo, e a si próprio também. Na rodoviária de Descalvado, até que Hiroito foi bem recebido. A necessidade às vezes faz a gentileza. Vai que esse japonês resolve o caso e o povo para de falar em mistério, incompetência da policia etc.

De fato quem morrera fora um advogado, Dr. Salomão Andrade, causídico antigo, dono de um escritório de advocacia conhecido e respeitado. Desses que atende de tudo: civil, criminal, tributário e trabalhista. Além do Dr. Andrade, outros quatro mais jovens trabalhavam com ele. Cada um responsável por uma área, sem, no entanto haver uma especialização especifica.

Tudo isso Abel, o investigador local ia contando enquanto caminhavam até a Igreja. O escritório do Dr. Andrade ficava numa ampla casa térrea e ele era sempre o ultimo a sair. Curiosamente sua sala era a única que tinha uma fechadura dessas tipo Yale. Embora arrombada, a porta não tinha sinais de extrema violência. O primeiro tiro fora dado dali da própria porta e o segundo com o Dr. Andrade já morto, fora dado à queima-roupa no corpo já debruçado sobre a mesa.

Foram dois tiros, mas a vizinhança referia apenas um. O fato de o escritório ficar no centro, limitava o número de ouvintes e a época do ano – junho – misturava o barulho dos disparos com o dos fogos de artificio.

Um fato curioso foi que haviam encontrado pedaços de pano queimados na mesa que não provinham das roupas do Dr. Andrade e falavam do emprego de um pano para abafar o tiro. Dois fatos curiosos pensou Heroito: esse pessoal do interior estava muito mais esperto e procurando coisas que só a policia cientifica perseguia.

Chegaram à Igreja e no tal vidro da pareidolia. Se o tal desenho lembrava alguma coisa observou Hiroito, era um capelo e não um barrete. Quem quisesse fazer ilações deveria ter pensado num diplomado e não num padre.

Dali foram para o escritório que permanecia fechado desde o assassinato. No escritório do Dr. Andrade, Hiroito observou a fechadura do tipo redondo, rara nos dias de hoje. O Tambor girava solto em qualquer direção. Neste, pequenas marca escuras e leves vestígios de arranhaduras, cuja idade era difícil de estimar, mas pareciam recentes.

Dos hábitos de cada um dos membros do escritório, nada de muito especial. A porta da frente era trancada pelo vigia religiosamente as nove da noite e ele também fazia a conferência e fechamento das janelas. O pessoal, funcionários inclusive, saia entre 18 e 19 horas. Quando o Dr. Andrade estava só ele trancava a porta do seu escritório por dentro.

Abel passou-lhe várias fotos do corpo sobre a mesa e do ambiente como fora encontrado, também lhe mostrou uma foto de uma lâmina onde se via um fragmento de tecido escuro chamuscado.

Por aquela tarde estava de bom tamanho. Hiroito agradeceu a Abel e pediu que o deixasse no hotel onde iria pernoitar. Recusou um convite para jantar e pediu um lanche no próprio hotel e recolheu-se para pensar.

Matar advogado que não se saia bem nas causas, estava ficando comum, sobretudo na área criminal, tinha até escritório fazendo com seguradoras, cobertura especifica para essa possibilidade e colocando detector de metais na entrada. É o seguro morrera de velho e não com o corpo cheio de balas.

O assassino conhecia bem os hábitos do escritório. Devia ser frequentador assíduo. Na motivação havia raiva. Um assassino profissional se daria por satisfeito com o primeiro tiro e não arriscaria o segundo.

Dormiu pensando num possível cliente, frustrado com o trabalho dos advogados e com raiva, muita raiva. Por outro lado pensou num assassino cuidadoso e premeditado que chegara no horário apropriado, vencera a fechadura sem muito alarde e se evadira sem deixar rastros. Ou numa assassina porque não? A arma do crime, ainda não encontrada, era uma pistola e, portanto mais fácil de disparar, podendo muito bem ter sido disparada por uma mulher.

Hiroito acordou cedo, tomou café sossegado e lá na portaria do hotel perguntou onde acharia uma loja de ferragens. Informaram que havia duas, de muito boa qualidade. Teve sorte, já na primeira apresentou seu distintivo e perguntou sobre a compra de um grifo por alguém da cidade. Para sua surpresa o vendedor lembrava muito bem. Uma ferramenta especifica de encanador, comprada por quem não o era, em cidade pequena, não era negócio de todo dia. Seu Aprígio havia comprado um, de tamanho pequeno há pouco tempo e, curiosidade, levara junto uma fita dessas que o pessoal passa na pega de raquete ou até em cabo de enxada.

Preferiu obter a ficha de Seu Aprígio com Abel.

- Claro conhecia sim. Fazendeiro de posses, não tinha muitos empregados, descendente de italianos, trabalhava duro na lavoura junto com os filhos. Tivera há pouco uma desgraça. Idalino o filho mais velho se metera com drogas e do lado errado do jogo. Fora preso como traficante e pegara dez anos transitados em julgado. Falava-se muito de um erro primário de advogado que perdera o prazo num recurso que certamente cortaria a pena para um quarto ou menos.

Enquanto falava Abel foi fazendo cara de iluminado, percebendo que Hiroito matara a charada.

O resto Hiroito deixou por conta de Abel como, alias, era de seu feitio. Preso Seu Aprígio confessou tudo. Como conhecia bem o escritório do Dr. Andrade, sabia de seus hábitos e da fechadura redonda. Seus pais contavam muitas histórias de um ladrão italiano Meneghetti que ficara famoso, entre outras coisas, pelo uso do grifo em fechaduras redondas. O grifo as estourava silenciosamente. Devia-se a ele o aparecimento dos tambores de fechadura ovalados que não mais giravam com o uso de um grifo. Usara a faixa para não deixar marcas e abafar o ruído. Entrara rapidamente no escritório do Dr. Andrade que, no entanto ouvira o pequeno estalido e se levantara, mas não rápido o suficiente para se defender do primeiro tiro.

O segundo, não fora de misericórdia, mas de raiva, pelo filho que estava preso em regime fechado, por culpa daquele advogado de meia tigela que perdera o prazo, mas cobrara muito no decorrer do processo.

Jogara a pistola, o grifo e a faixa no Rio Moji Guaçu do alto de uma ponte perto de Porto Ferreira. Não seria difícil encontra-los pelo peso. Enriqueceriam, em muito, o processo criminal. Se Seu Aprígio conseguisse um advogado que o defendesse, era certo que faria um trabalho limpo e não perderia prazos.


Foi pensando nisso que Hiroito embarcou no ônibus levando um carinhoso e agradecido abraço de Abel e pensando em como trabalhar em São Paulo tinha vantagens. A mistura de gente mais jovem, como ele, com gente muito mais velha e experiente, resultava na hora do café, num relato de casos ou curiosos ou antigos ou até, melhor, em casos fusão dos dois aos quais ele por dever de oficio e raça prestava muita atenção. Nunca se sabe quando coisas do passado vão reaparecer no presente.

O FANTASMA DA IGREJA - Oswaldo U. Lopes

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O FANTASMA DA IGREJA
Oswaldo U. Lopes

            A cidade era pequena. José também, a Igreja nem tanto. No verão não havia problema, somando a posição do sol com horário de verão a Igreja não lembrava nada. No inverno, quando José voltava da escola, na penumbra, ela com suas janelas redondas e telhado de canto, era a própria imagem de um fantasma. O pároco que a pintara de branco conseguira associar o enigmático ao fantasmagórico.

            Seu Armênio era o farmacêutico do povoado, na ausência ou mesmo na presença do médico, era quem tratava das pessoas. Com esse nome e por causa de um sotaque muito perceptível ganhara o apelido infalível de turco.

            Administrava bem a vida e a farmácia. Tinha terras arrendadas e uma casa muito boa e grande vizinha da Igreja. Como é comum nestas circunstâncias casara, já com certa idade, com moça que de idade tinha pouca e juízo menos ainda.

            Seu Armênio vivia sendo arreliado pelos parceiros habituais do dominó no bar do Seu João. Os moderninhos, por causa da TV, brincavam de chamá-lo de viking. Ai vem o viking, abre lugar para o viking...

            Seu Armênio, aparentemente, não se incomodava, dizia com seu malicioso sotaque:

            — Prefiro comer bolo dividido, do que porcaria sozinho.

            Aparentemente, diga-se bem, quando os rumores começaram a aumentar, passou a andar com um 38 na cintura que se não ostentava, também não escondia.

            Como é que tudo isso se junta?

            Era inverno, já estava escuro na pequena cidade, quando José voltando da escola viu um vulto branco passar sorrateiro na frente da Igreja de celebre ar fantasmagórico. A soma disso foi uma corrida sem par do menino para casa.

            O pequeno José levou muito tempo para recuperar a respiração e a fala. O coração ainda saia-lhe pela boca. De tão assustado nem reparara na janela aberta na casa de Seu Armênio que naquele dia fechara a farmácia mais cedo.

            Talvez ainda, pela pouca idade, não conseguiu associar o rumor estranho que corria a cidade com o que vira perto da misteriosa Igreja.


            Em todo canto, bar ou botequim se comentava sobre o delegado da cidade, conhecido valentão que chegara à delegacia, já noite alta, esbaforido e vestindo unicamente meias e um lençol.

Meu Reino por uma Coxinha - José Vicente J. de Camargo


Meu Reino por uma Coxinha
José Vicente J. de Camargo


Uma das “delicatesses” da culinária brasileira é, sem dúvida nenhuma, a coxinha de galinha. Tira gosto que não pode faltar em nenhuma comemoração que se preze, de festas de batizado até cerimônias de velório daquelas que os familiares e amigos do “desaparecido” se reúnem, após o enterro, na casa do próprio para lembrarem suas qualidades ou – balbuciando disfarçadamente – seus defeitos e vícios.

Difícil no Brasil não encontrá-la nos bares e lanchonetes, desde os mais simples – daqueles do cafezinho de coador açucarado tomado em pé − até os mais sofisticados – que também servem iguarias estrangeiras do tipo burger, sushi, quirches e outros concorrentes.

Sua apreciação nos leva a fatos históricos do passado, envolvendo inclusive o destino da nação ainda colônia. Um dos mais conhecidos é a paixão que o príncipe regente Dom João VI passou a ter por ela, quando a degustou pela primeira vez após chegar ao Brasil. Enchia a pança e os bolsos – para as noites de insônia – da iguaria e esquecia por completo a saudade da pátria longínqua, das investidas de Napoleão obrigando-o a fugir na calada da noite, assim como dos comentários maliciosos sobre o comportamento da esposa Dona Carlota Joaquina, espanhola de sangue quente – “si hay govierno soy contra!”.

Além da guarda pessoal formada por garbosos guardiões escolhidos a dedo, responsáveis por sua integridade física e também dos seus segredos de alcova, mantinha com o almirante inglês, responsável pela escolta da frota real na viagem de Lisboa a Salvador da Bahia e depois ao Rio de Janeiro – três meses de tormentas e calmarias – um romance arrebatador de trocas de interesses. O dele que não lhe tirassem o solar confiscado do Barão do Café, numa cidade onde, da noite para o dia, a corte portuguesa em peso desembarcou a procura de moradia digna - pelo menos sem piolhos e ratos - e o dela, que ele não a esquecesse de levar, quando o império inglês reclamasse de volta seus navios e oficiais.

Carlota Joaquina casara com o futuro rei de Portugal aos treze anos por interesse político. A noite de núpcias teve de esperar a entrada de ambos na puberdade para poder se realizar. Diz a história, que na fatídica noite, não sabendo ao certo o que fazer, ela lhe dá uma mordida no inerte “dito cujo” que o leva o infortunado príncipe há mais alguns meses de espera. Enfim, para o bem do Brasil, nasce no Palácio da Luz, Dom Pedro e seu irmão e inimigo Dom Miguel – o preferido da mãe – e a história segue seu curso rumo à Colônia ultramarina.

No Rio de Janeiro ambos viviam em casas diferentes por imposição dela - não só para uma maior liberdade de alcova, mas sobretudo por não suportar mais ver coxinha de galinha em todas as refeições. Um dia, quando sua mucama lhe informou que o príncipe regente já não tinha mais dúvidas sobre suas baladas noturnas e que, pressionado pelo que restou da corte e do parlamento português exigindo sua volta, resolveu retornar a Lisboa, ela lhe enviou uma bandeja repleta de coxinhas acompanhada de uma carta elogiando tal atitude de verdadeiro galo tupiniquim – gostaria muito de escrever “de briga”, mas não ousou a tanto, mesmo porque Napoleão já se encontrava preso dos ingleses.

Já na embarcação de partida, Dona Carlota Joaquina arranca os sapatos, atira-os ao mar, e mirando ao almirante inglês e ao marido bonachão diz a famosa frase:

Desta terra não levo nem os sapatos que a pisaram”


E obriga o marido rangendo os dentes – que o faz lembrar da fatídica noite de núpcias – a fazer o mesmo esvaziando os bolsos repletos de coxinhas. Ele o faz, já com saudades do quitute, porém consolado que guardou a receita que seu cozinheiro, nomeado por ele “Marquês das Penas”, lhe entregou como lembrança da terra que lhe apresentou esta delicia galinácea...

UMA NOITE ASSUSTADORA - Ledice Pereira




UMA NOITE ASSUSTADORA
Ledice Pereira

A noite estava fria.

Ventava muito e a chuva fininha caia lá fora.

A cama estava convidativa.

Fomos dormir cedo. Após aquele primeiro sono bem dormido, acordei com um ruído estranho no telhado. E, como a noite todos os gatos são pardos,  fiquei alguns minutos encolhida com muito medo. Nem respirava direito para ouvir. Alguém se mexia ali.

Ai meu Deus do céu como pode alguém ter subido no telhado tão alto o que vamos fazer e esse sono  pesado do Walter não queria ter que acordá-lo mas não estou me aguentando de medo.

Chamei meu marido que também ouviu o barulho. Eu não conseguia controlar minha tremedeira. 

Da janela do banheiro, sobre uma cadeira, conseguimos ver uma sombra que se movia na parede do vizinho.

Relutamos em chamá-lo, mas a sombra inquieta se mexia insistentemente. Na nossa imaginação alguém fazia sinais a um comparsa, os dois prontos a invadir a nossa casa pelo alçapão.

Ligamos para o vizinho pedindo muitas desculpas pelo adiantado da hora, mas não conseguiríamos mais dormir se ele não confirmasse, ou melhor, desfizesse nossas suspeitas.

E ele viu o que nos atemorizava. Um galho de robusta árvore atrás da nossa casa projetava uma sombra naquela parede, e o vento a movimentava freneticamente. O que ouvíamos seriam folhas secas arrastadas pela ventania.

Pedimos mais desculpas ao nosso amigo tão prestativo sempre e voltamos para a cama e, uma vez aliviados, conseguindo pegar rapidamente no sono.


Dia seguinte um convite para um queijo e vinho foi a forma  que encontramos para compensar nossos amigos pelo  importuno pedido de socorro. Entre um gole e outro rimos muito dos acontecimentos daquela que poderia ter sido uma infindável noite de terror.

A CÁPSULA DO TEMPO - Sergio Dalla Vecchia



A CÁPSULA DO TEMPO
Sergio Dalla Vecchia


Era um grupo de rapazes inseparáveis.

Certo dia durante um belo churrasco regado a muita cerveja, no sítio do pai do Thiago, esse grupo já animado pelo efeito do álcool agindo em seus corpos, resolveu pensar no futuro. E chegada a noite, com a temperatura mais baixa, lareira acesa, e com as mentes abertas, decidiram que cada um deveria escrever algo que almejasse para os próximos trinta anos.

Assim, os amigos foram escrevendo os desejos e os depositando em uma caixa de madeira de lei pertencente ao pai do Thiago, resistente ao tempo e à umidade.  Envolveram-na com folhas de plástico de tal forma, que ela ficasse estanque.

Escolheram um lugar respeitado por todos do sitio, que era sob a majestosa copa de um centenário jacarandá. Lá cavaram uma pequena vala e a enterraram-na.

O tempo foi passando até que chegou o trigésimo ano, e o grupo voltou a se reunir, como havia sido combinado há trinta anos. A reunião foi marcada no mesmo sítio que agora pertencia ao Thiago por herança.

Os rapazes já homens feitos com família constituída e com dois ou três filhos. Trocaram abraços, beberam cerveja como de costume,  e depois foram juntos ao pé do velho jacarandá.

De mãos dadas formaram um circulo em volta da caixa, rogaram a Deus que os iluminasse para abri-la e em silêncio ficaram por algum tempo.

Assim, entreolharam-se, soltaram as mãos e em consenso resolveram:

Não abriremos esta caixa agora! Esperaremos por mais trinta anos.

Não havia motivo para abri-la naquele momento, pois quem desejou melhora na política, nada mudou; quem pensou na família, ela esta acabando; quem pensou em paz, surgiram mais guerras;  quem queria acabar com a fome, ela aumentou.

Entretanto, aquele que escreveu esperança merece a chance de sucesso daqui mais trinta anos!

SAUDADE DAQUELA CASA - Ledice Pereira


SAUDADE DAQUELA CASA
Ledice Pereira

 A casa hoje é o fundo de um restaurante. A frente fica na rua perpendicular.

Curti muito morar ali. E ainda hoje sinto por aquela casa um carinho nostálgico, talvez pelas recordações que ela me traz de um período em que tudo são flores.

Lembro-me de cada detalhe: um sobradinho acanhado com duas salas, muitas vezes transformadas em salão de baile, onde exercitávamos nossos passos de dança aprendidos nos filmes da época,  cozinha e pequeno quintal embaixo e três quartos e um banheiro em cima. Era assim que eram construídas as casas nos anos 60. Não havia suíte.

E esse banheiro de piso verde e preto ainda faz parte das minhas recordações. Ali eu enxergava objetos, pessoas, sombras, fantasmas. A cada dia uma nova forma surgia.


E, outro dia em que meu marido, por saber do meu afeto ao imóvel, me levou ali para jantar, fiquei toda emocionada ao voltar no tempo e fiz questão de subir ao banheiro que permanecia intacto, e onde pude rever as figuras que povoaram a minha adolescência.

A feiura da pessoa interessante - Humberto Werneck

A feiura da pessoa interessante
Humberto Werneck


          — E ela é bonita?

Perguntei por perguntar, sou mesmo muito perguntador, mas ele reagiu como se eu tivesse lhe aplicado um choque.

Até aquela altura da conversa, só ele falava, enfático, preenchendo com sua gesticulação desgalhada um vasto espaço em torno, por pouco não me acertando, em sua exuberância, uns involuntários tabefes. O assunto obsessivo era a moça, as inigualáveis qualidades da moça, e para enumerá-las meu amigo se esparramava, equilibrando-se à beira do ridículo. Às vezes empacava, sem palavras para descrever o indescritível, e a empolgação se metamorfoseava em algo que lembrava o ar beatífico, meio abobalhado, de quem, entre os banhistas, despistadamente faz xixi no mar.

          — Bonita? — insisti.

Como num desses programas de TV em que a resposta vai levar à fortuna ou ao infortúnio, ele franziu os lábios numa rosquinha pregueada, apanhou o queixo entre dois dedos, revirou os olhos para o alto, ruminativo — e por fim desembuchou, numa hesitação tamanha que dava para ver uns hifens pingando entre as sílabas:

          — Ela é... interessante.

Bem que eu desconfiava: a moça era feia. Prendada, virtuosa, trabalhadora, o diabo — mas bonita não era. Se fosse, não haveria lábios franzidos, dedos beliscando o queixo nem olhos perscrutando os céus: bonita é bonita, ponto. E interessante — as muito interessantes que me perdoem — está mais para feia. Se a gente recorre a esse adjetivo, é para camuflar uma ausência de formosura.

(Antes que me acusem de machismo: vale também, é claro, para o sexo masculino, só que marmanjo não está socialmente obrigado à formosura.)

Não é tão simples assim, eu sei. No extenso território que vai da beleza à feiura, há de tudo e um pouco mais. Meu avô achava que a balança pendia decididamente para um lado, e me lembro, menino, da observação que fez enquanto esperávamos, no centro de Belo Horizonte, abrir-se o sinal para os pedestres. “Meu filho, como a humanidade e feia!”, sussurrou ele, olhos na manada que, no lado oposto, também engatilhava o bote. Ressentimento? Não, o vovô Santos era um belo homem. Arrogância, também não, pois não lhe faltava compaixão pelo ser humano, aí incluídos os bonitos. Sua observação tinha o corte frio das constatações empíricas.

Talvez num centro de cidade, em países como o nosso, a humanidade, vivendo à margem dos spas, academias e salões de beleza, à margem sobretudo das proteínas consumidas desde o berço, penda mesmo para a fealdade. Mas sempre se podem comparar coisas comparáveis. No centro, como nos redutos ricos, pessoas há que são flagrantemente bonitas e outras insofismavelmente feias. Há também — e aqui a coisa se torna um tanto mais sutil — gente que é bonita-aos-poucos e gente que é feia-aos-poucos.

Não é caso, por favor, de sair correndo rumo ao próximo espelho. Você sabe do que estou falando. Daquelas pessoas que, no primeiro contato, nos parecem feias ou bonitas, e que, com o correr do tempo, às vezes pouquíssimo tempo, vão mudando de lugar em nosso espectro estético. Os olhos não são belos, o nariz é um nariz qualquer e as orelhas, de abano ou com os lóbulos por demais grudados à cabeça — mas, de repente, a reunião desses “aparelhinhos”, como dizia minha mãe, vai compondo um arranjo potável, daqui a pouco apetecível, quem sabe mesmo, no final da noite, irresistível. Também o contrário pode se passar: a progressiva sem-graceza de um conjunto formado por peças que, individualmente, são irretocáveis — e a pessoa que nos parecia linda vai assumindo um feiume tão insuspeitado quanto inapelável, até tornar-se, no máximo, interessante. Mais do que com os “aparelhinhos”, num caso como no outro o ajuste de foco tem a ver com encantos imateriais, imponderáveis — com a presença, quase sempre, do misterioso atributo que se chama borogodó, invisível para os olhos. Razão pela qual devo insistir: inútil você sair correndo para conferir no espelho.
(7/11/2009)

Humberto Werneck nasceu em Belo Horizonte (MG) em 1945 e vive em São Paulo (SP) desde 1970. Como jornalista, começou no "Suplemento Literário do "Minas Gerais", sob o comando de Murilo Rubião, tendo trabalhado em seguida no "Jornal da Tarde", "Veja", "Jornal da República", "Isto É", "Jornal do Brasil", "Elle" e "Playboy", entre outras publicações. É cronista do jornal "Brasil Econômico", escrevendo no caderno "Outlook", que circula nos fins de semana. Algumas de suas obras:

- O santo sujo — A vida de Jayme Ovalle (Cosac Naify, 2800 (prêmios APCA e Jabuti de Melhor Biografia.

- O desatino na rapaziada (Cia. das Letras - 1992).

- Chico Buarque - Tantas palavras (Cia. das Letras - 2006 - edição revista e aumentada de "Chico Buarque Letra e Música), 1989).

- Pequenos Fantasmas (Ed. Noves Fora - 2005).

- Dicionário de lugares-comuns e frases feitas (Arquipélago Editorial - 2009).

- Organizou e prefaciou as antologias "Boa Companhia: Crônicas" - Cia. das Letras - 2005) e "Melhores Crônicas de Ivan Angelo", Ed. Global - 2007).

O texto acima foi extraído do livro "O espalhador de passarinhos & outras crônicas", Ed. Dubolsinho - Sabará (MG), 2010, págs. 81 a 83. Ilustrações de Sebastião Nunes.




Dois diários - Roberto Pompeu de Toledo

Dois diários
Roberto Pompeu de Toledo

No dia 3 de outubro de 1930, o chefe revolucionário Getúlio Vargas tomou de um caderno pequeno com capa de couro marrom, na qual estava escrito em ouro, no estilo dos velhos almanaques, “1928 ─ O Rio Grande do Sul em revista”, e escreveu:

“Se todas as pessoas anotassem diariamente num caderno seus juízos, pensamentos, motivos de ação e as principais ocorrências de que foram parte, muitos, a quem um destino singular impeliu, poderiam igualar as maravilhosas fantasias descritas nos livros de aventuras dos escritores da mais rica fantasia imaginativa. O aparente prosaísmo da vida real é bem mais interessante do que parece. Lembrei-me que, se anotasse diariamente, com lealdade e sinceridade, os fatos da minha vida como quem escreve para si mesmo, e não para o público, teria aí um largo repositório de fatos a examinar e uma lição contínua da experiência a consultar”.

Os diários de Getúlio, iniciados naquele dia em que explodiu no Rio Grande o movimento que o levaria ao poder, fazem eco aos diários de Fernando Henrique Cardoso que agora são publicados. O próprio Fernando Henrique, no primeiro de seus registros, invoca os diários de Getúlio. Por coincidência, os diários de Getúlio foram publicados ─ primeiro em excertos, em VEJA, depois em dois nutridos volumes ─ naquele mesmo ano de 1995 em que Fernando Henrique cumpria o primeiro ano de seu mandato. São dois presidentes conversando consigo mesmos e com a história.

Várias vezes, FHC citará GV. “No avião, li na VEJA fragmentos do diário de Getúlio”, escreve Fernando Henrique, em dezembro daquele ano. “É admirável, ele era distante, frio, não registrava os principais acontecimentos, registrava coisas de ordem pessoal (…) Fora disso, algumas observações duras, cruéis, sobre o ser humano. Ele era muito cético, sobretudo com Oswaldo Aranha, que era seu grande amigo e, ao mesmo tempo, sua grande sombra.”

Getúlio escrevia, Fernando Henrique ditava ao gravador ─ sinal dos tempos, mais vagarosos no primeiro caso, atropelados no segundo. É surpreendente como Getúlio conseguiu perpetrar treze longos parágrafos naquele primeiro dia, enquanto as coisas pegavam fogo ao seu redor. Getúlio capricha na linguagem. FHC vai aos trambolhões. Getúlio anota, no dia 27 de maio de 1934: “O Oswaldo convidou-me para conspirar no sentido de uma revolução para outorgar uma nova Constituição ao país, pela dissolução da Constituinte e outro processo que a substituísse” ─ e em seguida muda de assunto.

FHC, num assunto dessa gravidade, explodiria em perplexidade, indagações, indignações. Tanto quanto um é seco e preciso, o outro é emotivo e esparramado. A certa altura FHC registrou em seu gravador: “Interessante, o Getúlio montou o sistema que eu estou tendo que desmontar, porque a história é outra hoje, mas temos que desmontar usando métodos não muito diferentes daqueles de Getúlio, ou seja, tendo um arco muito abrangente de alianças para poder governar, jogando com uns e outros, não abrindo o jogo com ninguém, ficando no isolamento das minhas decisões (…) e fazendo com que, de alguma maneira, o jogo escoe naturalmente para o lado que eu quero”.

Os dois registram banalidades. Getúlio escreve, no dia 5 novembro de 1930: “Pela manhã leio os jornais nos aposentos, faço ‘toilette’ e dirijo-me a um gabinete particular no mesmo andar do dormitório, para despachar a correspondência”. E no dia 26 de agosto de 1933: “Não havia água para banho em palácio. Pela manhã, fui para o Jaceguai cortar cabelo, tomar banho e mudar de roupa”. FHC registra fielmente o hábito matinal da natação e especifica com frequência os cortes de cabelo. “Hoje vou cortar o cabelo e fazer a unha do pé”, registrou no dia 2 de abril de 1996. Cortou o cabelo também em 8 de novembro e, de novo, no dia 21 do mesmo mês.

De forma mais pesada, a sombra de Getúlio será invocada por FHC em dois momentos de dificuldades. O primeiro foi durante uma brigalhada entre os assessores mais próximos ─ “Com o Getúlio também foi assim, alguém quis protegê-lo, o Gregório tentou matar o Lacerda, isso não dá” ─ e o segundo numa hora de cansaço pessoal e “hesitação” no governo: “Há momentos em que a gente pensa: já fiz tanta coisa, será que não dá para parar? É como se houvesse um começo de sentimento de morte, que eu nunca tive. O Getúlio, entretanto, li em seu diário, fala sempre em suicídio. Sempre fui o oposto, não penso em nada disso, penso em quanto a morte, no passado, era encarada por mim como uma coisa terrível e agora, pouco a pouco, vai me parecendo natural”. De certa maneira, para parodiar o livro famoso de Zuenir Ventura, o 24 de agosto de 1954 é um dia que não terminou.


Origem:



O Sequestro - Maria Amélia Favalle

O Sequestro
Maria Amélia Favalle

Julio e Murilo eram irmãos e moravam juntos.

Julio era o tipo bom administrador, responsável e pouco papo.

Já Murilo era  o inverso, risonho, brincalhão e mulherengo.

 A vida deles corria em uma farta rotina. Até que Murilo desapareceu e Julio recebeu um bilhete dizendo de um sequestro e pedindo resgate: "Venha sozinho” - dizia o final do bilhete.

O carro de Julio ia lentamente pela via pública, enquanto pensava no que teria acontecido para que Murilo tivesse sido sequestrado, quando estacionou ao seu lado uma viatura e o policial pediu que descesse do veículo.

O  jovem saiu do automóvel sob uma garoa fina e fria, que batia em seu rosto. "Já não basta a preocupação com meu irmão e agora este tempo inclemente e esse policial abusando de minha paciência".

Com o capô levantado o policial quis saber o que havia de errado com o veículo. No momento Julio pensou em pedir ajuda. Mas, logo se lembrou do bilhete que exigia: "Não avise a polícia, venha sozinho".

No entanto Julio não se sentiu apto a resolver a questão, então o jovem disse:

— O problema com o motor é de menos. Tenho um problema muito maior, que talvez o senhor possa me orientar.

E assim, Julio contou tudo o que acontecera ao policial. O profissional logo viu que havia necessidade de interceder, pois Julio não seria capaz de fazer o que era preciso. E além do mais era um caso de polícia, e decidiu:  

— Vamos trocar nossas roupas e eu mesmo levarei a maleta até o local indicado. Mostre- me uma foto do Murilo e me dê a maleta e o bilhete. Vou surpreendê-lo e logo trarei seu irmão de volta.

Apesar de a proposta ser arriscada Julio concordou e lá foi o destemido policial com a arma escondida sob a camisa, presa no cós da calça.

Ao  chegar ao local, logo o criminoso veio ao encontro com a mão estendida para a maleta, ele queria a grana. Mas o policial com uma destreza invejável o mobilizou imediatamente e o algemou.

Leve-me até a vítima se não quiser levar uma bala na cabeça. Desta maneira frustrou-se o que seria um pagamento de resgate.

Murilo estava abatido com as roupas rasgadas, mas ainda sorria para o policial.
Quando se encontraram os irmãos se abraçaram chorando. E agradecidos ofereceram parte do dinheiro ao policial como forma de gratificação pela vida de Murilo.


No entanto o agente de policia recusou dizendo que ele já era pago para fazer o seu trabalho.

O imprevisto acontece - Ledice Pereira


O imprevisto acontece
Ledice Pereira

Jorge resolveu viajar àquela hora adiantada da noite. Estava sem sono e preferia pegar a estrada quando havia menos movimento. Era caminhoneiro há mais de vinte anos e conhecia as estradas como a palma de sua mão.

Pediu o carro de seu irmão, pois queria chegar logo ao destino, a cidade onde Letícia se encontrava.

Haviam discutido, como sempre, por um motivo qualquer e sem importância e ela virou as costas e foi se embora.

Fazia já uma semana e ele achou que devia procurá-la.

O carro era antigo e fazia ruídos que ele desconhecia. Além disso,  falhava muito. Ele estava acostumado ao seu caminhão que sempre respondia rapidamente ao seu manejo.

A estradinha que acessou para cortar caminho, estava deserta e a garoa fina que caía deixava a visão prejudicada, já que o limpador de para brisas não funcionava adequadamente.

Sintonizou uma estação de rádio, a única que pegava, e que naquela hora tocava música sertaneja. O apresentador conversava com o público fiel daquele horário. Uma monotonia.

De repente,  surgiram não se sabe de onde quatro homens encapuzados e armados com metralhadoras que apontavam diretamente para ele. Não teve alternativa, senão parar.
Enquanto um dos homens apontava para ele, os outros vasculhavam o automóvel para ver o que ali encontravam.

E dentro de um dos pneus encontraram o que desejavam,  dois pacotes de cocaína e um de dólares.

Como pode ser? Quem poderia ter colocado ali? Meu irmão? Mas como esses homens sabiam que encontrariam? E como sabiam que o carro estaria nessa estrada? Que loucura!

Jorge estava perplexo. Era um homem simples, mas trabalhador. Viajava por essas estradas entregando mercadorias de segunda a segunda. Jamais poderia se imaginar vítima de uma situação dessas.

Os homens levaram o carro e o deixaram ali. Pensou que fosse morrer, mas eles tinham o que queriam.

O dia estava amanhecendo. Jorge, com pouco dinheiro, com frio, molhado pela garoa e assustado começou a andar em direção à estrada principal. Seu velho celular estava sem bateria.  Dirigiu-se ao primeiro posto de gasolina que encontrou depois de uns dois quilômetros onde havia vários caminhoneiros tomando café.

De lá ligou para o irmão que não o atendeu. Conseguiu uma carona até a delegacia mais próxima onde fez um boletim de ocorrência.

O delegado comentou que esse bando estava agindo por aquelas pequenas estradas e que ele havia tido sorte, pois costumavam machucar ou até matar os motoristas que se negavam a cooperar.

Jorge disse que não sabia como a droga e o dinheiro tinham  ido parar ali. Não podia atribuir ao irmão, homem direito e trabalhador.

Desistiu de continuar até a cidade da namorada e voltou pegando carona com alguns caminhoneiros que o deixaram perto de casa.

À noite o noticiário policial informou que a polícia havia prendido uma quadrilha de traficantes no interior de São Paulo.

O bando agia colocando drogas e dinheiro nos pneus de carros antigos, estacionados nas ruas, que não chamariam atenção, para transportar e entregar ao chefe, que da prisão onde se encontrava, comandava toda a ação. Junto com a droga foi instalado um rastreador, que tornava possível o posterior ataque.

Jorge, o irmão, e Letícia, que ao saber do fato, se reconciliou com ele, mal puderam acreditar que saíram ilesos daquele episódio que poderia ter tido um final trágico.