Terças criativas no EscreViver.

 
Contos entre amigos.


Mario Tibiriçá
Ana Maria Maruggi


Maria Luiza C. Malina

Mario Augusto Machado Pinto

Mario Tibiriçá 

Oswaldo Romano 
Suzana da Cunha Lima 


Fernando Braga

Carlos A. Cedano
José Vicente J. de Camargo 












Judith Cardoso 
Vera Lambiasi 

Luisa Helena Rodrigues Alves 



Em pé: Oswaldo Romano, Carlos A. Cedano, Jeremias Moreira, Mario Augusto Machado Pinto e Mario Tibiriçá.
Sentadas: Ana Maria Maruggi, Maria Luíza C. Malina e Vera Lambiasi.

Jeremias Moreira


Suzana da Cunha Lima
Mario Augusto Machado Pinto















José Vicente J. de Camargo

Fernando Braga

Luisa Helena R. Alves




   
Judith Cardoso

LIVRO SECRETO. - Mario Augusto Machado Pinto




LIVRO SECRETO.
Mario Augusto Machado Pinto.

Fazendo mais uma das limpezas periódicas no sótão da casa onde moro, num canto perto do beiral do telhado, chão sujo e limoso por água que devia ali se acumular, encontrei um volume, um pacote envolto e embrulhado em papel jornal velho e empoeirado. Fiquei intrigado: como é que eu não o percebera antes? Foi uma surpresa muito grande. Examinei superficialmente, estava etiquetado com escrita esmaecida pelo tempo. Poderia ser o célebre “Pra fulano”, ter data ou alguma outra coisa, mas não, nada além das notícias impressas na folha primeira.

Interessante. Dias depois comentei o achado ao telefonar e cumprimentar pelo aniversário um desses primos afastados, o Nello. Nós nos falávamos de vez em quando. É um cara aberto, sem preconceitos pra quem tem parentes é bom...de longe. Perguntou-me o que continha o embrulho. Ao responder que ainda não havia desembrulhado o pacote, quis saber se havia comentado o fato com alguém e sugeriu alegremente que poderia ser o primeiro sabedor do resultado, pois também estava sendo o primeiro a  conhecer o caso. Assim ficou combinado.

Após o telefonema, durante umas duas horas recebi seguidos chamados de parentes e de algumas pessoas esquecidas no tempo. Curiosos, os parentes voltaram à vida querendo saber tudo a respeito do conteúdo que há quanto tempo estivera ali perdido o tal do pacotão. Achado na casa que havia sido dos meus avós, diziam eles, só poderia conter coisas da nossa família. Agora existia uma “nossa família”. Os amigos queriam saber por terem sido “amigos”, ora. Ficaram desiludidos quando explicava que não sabia. Desliguei o aparelho, fone “fora do gancho”, com se diz. O Nello não devia ter dado o número do meu telefone, que diabo!

Época atarefada, o exame do embrulho foi sendo adiado, às vezes nem me lembrava dele, mas não os parentes e amigos. A insistência era sempre presente. Precisava solucionar.

Resolvi, então, examinar o pacote  começando pelo seu aspecto: bem feito, flexível, papel jornal seguro por elásticos que se romperam ao meu manuseio. Examinei a etiqueta usando uma lupa para desvendar o que estava escrito. Imaginando dava para ler o que parecia ser AVÔ. Então, se era avô, o embrulho era para seu neto: eu! Pretensão? Podia ser! E, se era pra mim, o que continha? Com muito cuidado e jeito desdobrei uma parte mínima e descobri a data na cabeça das folhas do jornal: ...embro de 1.9..0. Poderia ser de setembro, novembro ou dezembro. Para ser a mim endereçado deveria ser anterior à sua morte, de algum dos últimos decênios e poderia conter cartas, relatos, foto, coisas de nossa convivência após o falecimento de meus pais num acidente aéreo e inclui-los ou não. Minhas cartas pra ele? Que mais poderia ser ou conter? Adivinhação!

Meu avô era minucioso nas suas ações, estava sempre fazendo coisas, registrava tudo, era um escrevinhador, como dizia Vó Celina. Por ele seriam memórias de um passado que tomariam forma num presente e que provocariam nostalgia pela saudade do que viveu e melancolia do que não, teria dito ele. Que frase! Tinha dessas aos montes.

Eu trocava ideias com o Nello e ele, eu sabia, comentava com os parentes. Aí funcionava a Rede do Nello.  Dessa gente toda ele me transmitia as ideias e pensamentos. Havia até quem pensasse em testamento indicando os herdeiros de bens que ignorávamos, a partilha do dinheiro obtido com a futura exigida venda da casa em que eu morava ou meu avô m´a doou em vida por escritura, etc. Quanto a isso estava sossegado. Não comentei minha situação, mas eles ferviam de curiosidade. Era pressão constante para ter o conhecimento do conteúdo do pacote.

Nello veio com a novidade: a turma toda queria uma reunião pra saber o conteúdo do pacote.
Conversamos. Pedi, então, que transmitisse a todos um convite para um lanche às quatro horas da tarde do próximo domingo. Assim ficou combinado.

Tudo preparado, no domingo começou a chegar gente antes das quatro. Às quatro as salas da minha casa estavam lotadas. Ia faltar comida. Nello me apresentou. Após saudar a todos, fiz um resumo do acontecido nos últimos meses inclusive explicando que eu mesmo não sabia do conteúdo do pacote. Ouvi claramente Pois sim, Duvido muito. Não dei importância. Cuidadosamente e com vagareza pra manter suspense, comecei a abrir o pacote em uma mesinha preparada pra isso. Desdobradas as folhas do jornal apareceram dois envelopes: um continha um amarrado de folhas de papel com capa de cartolina e escrito: MEU LIVRO. Ao abrir o segundo, dele caíram algumas fotos. 

Começamos com as fotos, propus. Não, com a papelada, disseram uns. Estava feita a confusão. Uma senhora que se identificou como prima em terceiro grau da Vó Celina tomou a palavra e colocou ordem no pedaço e propôs que ao término de ver as fotos deveríamos comer o lanche e logo depois ler os papeis. Não deveríamos fazer desfeita ao primo proprietário.

Terminada a rodada das fotos, começaram a comer o lanche. Não era bem comer, foi um avanço geral. Todos comeram, mas houve quem não conseguiu repetir.

Terminada a comilança, aquela senhora, em nome de todos, agradeceu o lanche, Muito bom, muito bom, todos bateram palmas e ela sugeriu que eu fizesse a leitura do livro. Aprovaram com seus Hum, Hum e o Vamos logo com isso dos mais agitados.

Iniciei a leitura: era um relato sobre nós, os meus avós, meus pais e eu. Os acontecimentos, a morte deles e da minha avó, e outras coisas. Finalizava explicando que com o pacote queria despertar de propósito a curiosidade de vários parentes de última hora. Durou uns quinze minutos. Houve murmúrios, ouvi alguém dizendo Vamos ao que interessa”. Finda a leitura, verificamos que havia uma escritura: era a da doação, em vida, da casa dele pra mim. Houve certa agitação entre os presentes.

A outra pasta dizia conter o testamento dele. Houve aplausos e exclamações em alta voz. Comecei a ler: eram frases, algumas sem sentido, outras descrevendo paisagens, nomeando os animais do sitio de um amigo dele, frases desconexas e palavras soltas.         Uma dizia Comi, bebi, namorei e viajei todo o dinheiro. No meio da página estava escrito à mão NADA – NADA. Ao final instruía abrir o envelope grampeado na última página da pasta. 

Abri o envelope, tirei a folha de dentro dele, desdobrei e ao ver seu conteúdo fiquei completamente zonzo.
Havia uma grande foto, colorida dele, de frente, “dando uma solene banana” e escrito em enormes letras góticas:
ISTO É PRA VOCÊS!


OLHAR PARA TRÁS É PERIGOSO - Jeremias Moreira



OLHAR PARA TRÁS É PERIGOSO
Jeremias Moreira

Como acontece às tardes de terças e quintas, fui encontrar os amigos no salão de bilhar Taco de Ouro. Somos um grupo de seis ou sete aposentados que se reúne ali para matar o tempo. Nessa tarde, um deles, o Jurandir, que é sempre falante e o mais encrenqueiro quando perde, estava um tanto jururu. Perguntei o que acontecera. Não quis comentar. Alegou apenas que estava indisposto. Lá pelas tantas os demais se foram e ficamos a sós. Aos poucos Jurandir começou a se abrir e contou a razão do seu abatimento. Ele resolvera desfazer-se de um monte de tralhas que estavam num quarto de despejo da casa. Jogou fora diversos móveis e objetos quebrados. Algumas roupas e livros mofados. Enfim, tentou livrar-se de tudo o que fosse imprestável. Porém, um livro lhe chamou a atenção.  Pelo título “O galante Lino Catarina” e pelo autor, que era seu tio Alfredo Morais. Ele cresceu ouvindo histórias sobre o Lino Catarina, bandido que infernizou cidades e vilarejos do interior de São Paulo, no inicio do século passado. Seu tio, falecido há quarenta anos, fora jornalista e fundador do jornal “A Comarca de Borborema”. Jurandir desconhecia que ele tivesse escrito algum livro e muito menos esse, que era sobre o lendário bandido, de quem ouvia historias quando criança. Curioso, pôs-se a folhear o livro até que encontrou o nome do seu pai, citado como um dos parceiros do Lino Catarina, num acontecimento. O que leu deixou-o embasbacado.

Certa noite o Lino, seu pai e mais dois chegaram numa botequim, na vila dos Dourados, perto de Borborema, onde rolava um carteado. Numa das mesas estava o Antonio Português, dono da beneficiadora de café, que bem humorado, falava bastante.  A presença do bando deixou quem os conhecia apreensivo. O português não fazia ideia de quem eram e continuou prosa como estava. Seu pai e mais dois sentaram-se e entraram no jogo. Começaram a trapacear. Os demais jogadores desistiram, mas o português, não se deu conta e irritado por perder, e começou a elevar o valor das apostas. Continuou perdendo, mão após mão, até que chegou ao cúmulo de apostar a própria casa. Por incrível que pareça dessa vez sua mão veio boa. Porém, Lino Catarina, que assistia do balcão, atrás dele, viu as cartas. Acintosamente, sacou o revolver, aproximou-se do Antonio Português, mirou sua cabeça e disse:

- Ô Portuga! Se você virar essas cartas não vou conseguir segurar meu dedo.

Foi assim que seu pai ganhou a casa onde o Jurandir viveu sua vida toda.

Na verdade seu pai não era do bando de Lino Catarina. Eram amigos de infância e às vezes saiam juntos. Tempos depois seu pai conheceu sua mãe, tomou jeito na vida e formou-se contador. Abriu um escritório de contabilidade, criou os filhos, e para Jurandir sempre fora uma pessoa honrada.

Descobrir essa faceta da vida de seu pai o deixou arrasado. Foi tomado de uma crise moral. Pretendia localizar a família do Antonio Português, que há anos saíra da região e devolver a casa.


Fui incapaz de opinar!

A TURMA DO TABOCAS - Jeremias Moreira

 

A TURMA DO TABOCAS
Jeremias Moreira

Rrooaahh;  Nnhhéécoo;  Catchuatchum; Splanqtepum! repetia compassado o monjolo para derramar a água acumulada na concha, e em seguida
voltar para socar o pilão.

– Iiihhppiii! – Agora sou eeeuuu! – Aahiôôôô! gritavam alternadamente o Pança, o Geninho, o Tota, e a Gina naquela tarde ensolarada em que exploravam as inúmeras possibilidades de divertimento que o monjolo oferecia.

 A cidade crescera até alcançar as casas da antiga colônia do que fora a Fazenda Primavera. Além da colônia e do monjolo, permanecia um pedaço de mata virgem. Esse era o lugar preferido da turma do bairro Tabocas fazer algazarra.  Ainda pequenos, Fefeu, Xavinho e Lena ficavam no barranco só olhando a farra dos maiores. Descontentes por sempre ficarem de fora resolveram que era hora de participar das brincadeiras.

-- Vocês deixam a gente brincar também? -- perguntaram timidamente.

-- Deixamos! -- apressou-se o Pança.

-- Esperem um pouco. Eles são muito pequenos. Não dá para brincar com a gente!-- ponderou o Geninho.

 -- É isto mesmo! Só se eles passarem pelo teste da coragem! -- acrescentou Gina, dando uma piscadela sacana para Geninho: -- Vocês topam?

O Fefeu olhou para o Xavinho, que olhou para a Lena, que olhou para o Fefeu. Nenhum deles sabia como que era este tal de teste da coragem, mas os três responderam decididos:

-- Topamos! 

Geninho entrou na onda da Gina e acrescentou:

-- Só que este teste será um pouco diferente. Vocês terão que entrar na Mata-Escura e procurar a Fábrica Mágica de Jogos Eletrônicos e trazer quatro joguinhos dos gladiadores intergalácticos. Um para cada um de nós.

E a Gina zoando mais ainda:

-- Bem... já vou alertando, hein! Nunca alguém que entrou na Mata-Escura conseguiu voltar!

Agora foi a vez do Tota:

-- É que lá, mora um bichão gigante, que tem um rugido tão forte... Mas tão forte, que só de ouvir a pessoa é exterminada na hora!

Ao saberem daquele bichão gigante, com um rugido tão forte que exterminava as pessoas os três meninos engoliram em seco. Mas, se quisessem brincar com a turma no monjolo, não tinham alternativa. Assustados, os três pequenos confabularam baixinho entre si. Não queriam demonstrar que estavam com medo. Depois, com a maior cara de coragem, falaram:

- Tudo bem, aceitamos o desafio! Vamos acabar logo com isso!

Dirigiram-se todos para a entrada da mata. A garotada chamava de Mata-Escura porque era formada por enormes árvores que tinham os troncos retorcidos e os galhos entrelaçados. Além de criar formas assustadoras, a densidade das folhas impedia a entrada da luz natural.

Chegaram à entrada da mata, olharam para dentro e viram a escuridão. Os pequenos estavam se borrando de medo e já não demonstravam a mesma disposição. Os maiores começavam a sentir pena deles.

De repente ouviram um intenso rumor de farfalhar de galhos e um barulho forte de pisadas que vinha de dentro,  e que se aproximava.

Pernas pra que te quero. Dispararam, sem olhar para trás. Tivessem ficado, veriam surgir o seu Manoel Lenhador, que voltava com a cangalha do burro carregada de lenha.

Esse susto rendeu assunto por muito tempo e contribuiu para aumentar a mística fantasiosa da Mata-Escura. 

Acalmaram-se quando chegaram ao monjolo. Voltaram às brincadeiras. Os três pequenos foram dispensados do teste e juntaram-se à turma.

PEQUENA AVENTURA DE MOTOCICLISTA - Oswaldo Romano



PEQUENA AVENTURA DE MOTOCICLISTA
Oswaldo Romano  
                                                                      
            Caiuby era um magro e divertido companheiro motociclista que dominava sua Norton 500 com extrema maestria. Na velha pista de Interlagos, durante os treinos, várias vezes tentou contorná-la de pé, com os braços abertos a lá Cristo.

            Fazia parte do nosso grupo, e também fundador do Velôcino Moto Clube, com sede na Praça Cornélia. Doze malucos, que tinham o Caiuby como o artista que mais aprontava.

            Castro, um novo participante, avantajado, mais velho que os demais era a vítima do Caiuby. Sua moto, uma Ariel não combinava com o condutor, além do que, o motor de dois tempos empesteava com sua fétida fumaça quem vinha atrás.

            Castro achava que podia e quis acompanhar o grupo até Aparecida. Chegou, mas bem depois. Na volta já noite, a mando, (Adivinhe de quem?) ficou o responsável da contagem esporádica das máquinas. Nessa função, sempre fica a última moto.

            A estrada era a velha que há muito, desde o plano SALTE pedia outra. Crivada de curvas traiçoeiras, o velho Castro, novo no clube, mal acompanhava os malucos.

            Na descida da serra acelerando a Ariel, o novato endireitou uma curva. Notada sua falta, dado o alarme, o grupo retornou procurando-o. Dois quilômetros antes, uma luz brilhava fora da pista. Lá estava ele.


            No meio de um pasto, sentado, levemente ferido ao transpor a cerca. Jaqueta rasgada, a moto caída com o farol iluminando-o. Sua máquina era ruim, mas tinha que agradecer àquela luz, sem a qual não seria fácil encontrá-lo.  

COISAS DA VIDA - Jeremias Moreira


COISAS DA VIDA
Jeremias Moreira

Meu nome é Felipe Passos Cunha de Souza. O que acabo de descobrir vira a história da minha vida de ponta cabeça. Ainda estou meio perplexo. Não sei o que pensar, o que sentir, e sou incapaz de qualquer julgamento. Por enquanto, sinto apenas que aconteceu comigo uma dessas peças que a vida prega, sem que se tenha qualquer ingerência ou qualquer alternativa.

Minha mãe, Adélia Passos, vítima de um câncer avassalador, faleceu há dez anos. O Fernando Cunha de Souza, meu pai, que esteve presente em todos os momentos cruciais da minha vida e que me amou como só um pai ama a um filho, no mês passado.

Estou desocupando a casa onde ele morava e hoje encontrei uma caixa com alguns guardados de minha mãe. Resolvi dar uma olhada e me deparei com dois livros. Eram seus diários. A princípio fiquei constrangido em abri-los. Sentia-me como invasor de sua privacidade! Depois, conclui que agora isso não contava, pois há muito ela já não estava entre a gente e não faria mal conhecê-la um pouco mais. Peguei um dos livros e me pus a folheá-lo. O diário registrava acontecimentos de quando era jovem. As músicas que curtia; seus cantores favoritos: Elvis Presley, João Gilberto, Celi Campello; seus atores: Tony Curtis, James Dean, Burt Lancaster, Anselmo Duarte, Marilyn Moroe, Silvana Mangano; os filmes que gostou: Psicose, Juventude Transviada, Dr. Jivago. Ela vibrou com a Palma de Ouro em Cannes, ganha pelo filme O Pagador de Promessas. Falava da tensão da época do vestibular, que prestara para a Faculdade de Sociologia. Citava alguns namorados e, claro, o começo do namoro com meu pai. Conheceram-se numa festa em que ela entrou de bicona. Corria o ano de 1962 e ele cursava a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Minha mãe morava com minha avó, na Aclimação e meu pai, numa Republica de estudantes na Rua Baronesa de Itu. Além de moradia, o local tornara-se o ponto de encontro dos amigos e das namoradas dos rapazes.

Folheando o diário fiquei sabendo que foi lá, no dia 04 de outubro de 1962, que minha mãe fez sexo pela primeira vez. Continuei lendo uma página aqui, outra mais a frente, até que cheguei à data de 13 de abril de l963, um sábado de Aleluia. No dia anterior, na sexta feira da Paixão, o Fernando aproveitou o feriado longo e viajou para casa dos meus avós, em Catanduva. E, no sábado minha mãe desentendeu-se com minha avó Rosa, mãe dela, e saiu de casa. Sem ter para onde ir, foi para a República. O meu pai ocupava o quartinho de fora, na edícula, que as casas costumavam ter e que era reservado para as empregadas.  Por isso, ao contrário dos outros, que dividiam o quarto, ele tinha aquele espaço só para si. Figurinha fácil na casa, Adélia julgou que poderia ficar lá por alguns dias, até arrumar outro lugar ou reatar com minha avó. Seu temor era que todos tivessem viajado e não ter como entrar. Felizmente o Roberto, outro morador e também estudante de direito, estava na casa. Ele atendeu a porta e minha mãe instalou-se no quartinho do Fernando. Lá pelas tantas o Roberto ia sair para jantar e foi ver se minha mãe não queria ir também. Ela topou, e no jantar, tomaram um pouco de vinho a mais e voltaram meio altos. Ficaram batendo papo na sala e em determinado momento rolou um beijo. Acabaram transando. No dia seguinte minha mãe acordou mal. Pela ressaca e pelo o que houve com Roberto. Conversaram e decidiram que o fato ficaria como um segredo entre os dois e que nunca mais tocariam no assunto. Engravidou. Fernando, nunca soube do acontecido entre os dois e julgou ser o pai da criança, no caso, o meu pai. Chegaram a pensar num aborto, mas logo descartaram. Decidiram enfrentar a situação e explicar para meus avós. Depois de inevitável bronca, acordaram que meu avô Juvenal aumentaria a mesada do filho e minha avó Rosa, abriria sua casa para que o casal fosse morar com ela. Além disso, Fernando arrumou emprego num escritório. Assim, casaram-se. No dia 08 de janeiro de 1964 eu nasci. No final daquele ano, minha mãe formou-se socióloga e meu pai advogado. Apesar dos apertos comuns a uma família em formação, a vida foi generosa conosco. Na sequência vieram a Naná e o Teo, que agora descubro serem meus meio irmãos. Toda minha vida julguei ser o primogênito do Fernando. Fomos grandes amigos. Com certeza, por sua influência estudei advocacia e hoje sou advogado.   

Conheço o Dr. Roberto Paes de Andrade, que foi colega de republica de meu pai e que, certamente, é o Roberto do diário de minha mãe. Ou seja, o meu pai de sangue. É um brilhante advogado. Também conheço seu filho, o advogado Olavo Paes de Andrade, com quem já me confundiram. Agora entendo por que!

Creio que o Dr Roberto não faz a menor ideia do resultado da traição que, em cumplicidade com minha mãe, cometeu contra o Fernando. Não sei se algum dia o Fernando folheou esses diários. Se o fez nunca demonstrou.

Pensando bem, a não ser certo desapontamento por ser fruto de uma transa inconsequente entre dois jovens embriagados, acho que agora isso tudo não tem a menor importância. Talvez, o fato de eu ser abstêmio ao álcool, seja uma aversão atávica à condição etílica de quando fui concebido.

Não julgo minha mãe por isso. Ela foi uma ótima mãe! Esquecer aquele dia, acho que foi a melhor atitude dos dois! E assim deve continuar!


E quer saber? Para mim, definitivamente, o Dr. Fernando Cunha de Souza será sempre o meu verdadeiro pai! 

O casaco e o trem - Maria Amélia Favale

 

O casaco e o trem
Maria Amélia Favale
         
         Sentada comodamente esperava o trem, quando vejo que ele já está parando na estação. Corro para embarcar, e logo me acomodo em um banco.

         O fiscal que recolhe os tíquetes vem para ao meu encontro e pede o meu bilhete. Entro em pânico quando descubro que o deixei no bolso do casaco, que esqueci no banco na estação. Causou-me angústia, além de precisar comprar outro bilhete, o casaco foi presente de aniversário de minha mãe.

          A situação piorou, ao lembrar que o dinheiro que trouxe comigo seria para tomar um lanche e comprar outro bilhete de trem para voltar para casa.

           Como tinha várias coisas para fazer andei bastante e fiquei cansada. E pior, com muita fome. Pensei que se eu gastasse o dinheiro para comer, não sobraria para comprar a passagem de volta. Porém, como minha casa ficava no máximo uns três quilômetros dali,  decidi que poderia ir andando. Entrei na lanchonete e comi um belo Cachorro Quente, e ainda tomei sorvete. Estava sentada em um banco alto ao lado do balcão, e quando fui descer meu salto prendeu, forcei para tirá-lo, e não deu outra, fiquei com o sapato na mão sem o salto.

Hoje não era para eu sair da cama!

Tudo de errado estava acontecendo. Sai da lanchonete com o sapato na mão, fui mancando com só um pé de sapato.

             Até que uma amiga e vizinha ia passando por mim, e me viu naquela situação. Contei os detalhes, ela disse: Sua fase de falta de sorte, melhor dizendo, de azar acabou. Estou com o carro logo ali e levo você para casa.

              Minha alegria foi enorme, queria abraçá-la, beijá-la.

— Não se preocupe. Você já me ajudou tantas vezes. É um prazer corresponder os favores que têm feito para mim.


               Minha falta de sorte não foi tão ruim. Posso dizer que foi um final feliz.  

CARTAS E CONTOS - Carlos Cedano

 

CARTAS E CONTOS
Carlos Cedano

Armando, filho mais velho de seu Bruno, ficou encarregado da limpeza do sótão. Ele estava fechado há mais de vinte anos e era depósito de velharias  sem valor, além de aranhas e baratas!

Uma semana depois ainda faltava remover um antigo baú de madeira. Quando o abriu retirou dele um par de luvas femininas e um terço de metal, no fundo achou uma volumosa pasta preta de couro com numerosas folhas costuradas com muito capricho.  Quando acabou o serviço Armando mostrou a pasta a sua jovem irmã

As folhas estavam escritas com letra bem desenhada e contavam com detalhes precisos as situações que descrevia! Enquanto lia Valeria ficava cada vez mais intrigada e surpresa com seu conteúdo: cartas e contos eróticos cuja leitura faria corar leitores mais calejados nas coisas escabrosas da vida! Como essa mulher estava à frente de seu tempo meu Deus! Quem é ela?

A única coisa que sabia é que suas iniciais eram M. L., pois apareciam no final de cada conto. Onde posso conseguir mais informações sobre ela? Como essa pasta veio parar em nossa casa? As perguntas sem resposta aumentavam.

Primeiro falou com seu pai. Resumiu pra ele o conteúdo da pasta evitando os detalhes. O pai disse que atendera um pedido de sua sogra, dona Flavia, para hospedar uma moça de nome Maria Luísa e que ela foi logo avisando que não admitiria perguntas sobre seu pedido!

            — Pai, o que fazia ela durante tempo que morou aqui? Perguntou a filha.

            — Foram mais de vinte anos, ajudava muito nas tarefas da casa, era de poucas palavras e quase não sorria, parecia carregar uma dor profunda, mas nunca se abriu pra a gente! No seu tempo livre ficava no seu quarto escrevendo ou costurando. Saía muito pouco.

            — O que mais sabe meu pai? Insistiu Valeria.

            — Um dia contou que tinha sido aceita no Convento das Carmelitas, queria ser novicia! Partiu com a roupa do corpo e disse que mandaria pegar as coisas de seu quarto, mas isso nunca aconteceu! Fala com sua avó minha filha! Disse seu Bruno, com certeza ela sabe mais dela.

Foi o que fez. Ligou pra sua avó dizendo que lhe faria uma visitinha no dia seguinte.

Chegou na hora combinada e explicou o motivo de sua visita, enquanto falava percebeu que sua avó ia ficando triste, e mordia os lábios! Quando Valeria fez uma pausa a avó, após alguns segundos de hesitação, disse:
           
            — Valeria, você tocou num assunto muito doloroso pra mim! Essa mulher causou minha desgraça e é culpada pela morte de meu filho! Sua vocação religiosa causou conflito com a vida devassa e pervertida à qual essa mulher o levou! Ele morreu de exaustão e culpa!

            — Então não foi infarto? Perguntou Valeria.

            — Não! Disse com ênfase dona Matilde  chorando intensamente.

            — Uma última pergunta avó – disse Valeria – como você ficou sabendo das intimidades deles?

            — Foi depois que morreu teu tio Augusto. Num dia que ela tinha saído, entrei no seu quarto, vi uma pasta preta de couro como a que você tem agora nos braços, abri e li cartas e outros documentos, o que estava escrito me fez compreender a vida de pecado que esses dois levavam! Fiquei com o coração partido!

Agora mais que nunca Valeria queria saber o destino de Maria Luíza. Essa pessoa ganhava a seus olhos importância maior com cada nova informação sobre sua vida.

Decidiu falar com a Superiora do Convento das Carmelitas, Madre Leonor que a recebeu sem surpresa, porém com notório receio. Também observou a pasta preta que Valeria carregava, mas permaneceu impassível.

—Madre, estou procurando informações sobre Maria Luísa, uma senhora que foi recebida neste convento há muitos anos, a senhora poderia me dizer o que aconteceu com ela?

— Sim, respondeu a Superiora, seu nome completo era Maria Luísa Velloso e faleceu já faz cinco anos. Esta enterrada aqui no nosso cemitério como indigente!

Foram até o cemitério, Valeria observou por alguns momentos a rustica lápide da defunta e orou brevemente. Logo perguntou:

            — Por que como indigente se a noticia que temos é que pretendia ser novicia e estava sendo preparada para tal?

— Pois bem, disse a Superiora, dias antes do noviciado o Arcebispo Tomás pediu pra ela se confessar. Ele foi incisivo perguntando detalhadamente sobre sua vida passada e percebeu que a candidata escondia alguma coisa, suspeitou de algo grave. Foi uma das confissões mais demoradas que houve com uma candidata a novicia neste convento.

— E depois?

— Depois o Arcebispo me disse que estava estarrecido com a confissão e que não haveria o noviciado. Maria Luíza relatou pra ele situações íntimas que somente o diabo poderia tê-las imaginado, a mulher era o próprio demônio! Completou a Madre Superiora. Ah! O Arcebispo também fez menção a uma pasta de couro preta que continha os escritos dela, me parece que é a que você tem agora!

— Sim, é ela! Assentiu Valeria, mas a senhora não vai querer lê-la, né?

— Com certeza não! Respondeu a religiosa emendando a seguir - Você tem em mãos uma “bomba” relógio que pode destruir dignidades e reputações de pessoas e instituições!

— Sim! Respondeu Valeria, eu sei!


Despediu-se da Madre Leonor e saiu pensando que teria que esperar ainda muito tempo antes de publicar o livro que vinha gestando na sua cabeça.

O Rolinha - Fernando Braga



O  Rolinha
Fernando Braga

Este era seu apelido, por gostar de matá-las com estilingue para fritá-las. Tratava-se de uma figura diferente, sui generis. Era bem conhecido na cidade interiorana como corajoso, brigão, um cavalo ao jogar futebol, mas boa pessoa e mais do que isto, confiável.

Certa feita, Rolinha chegou em casa e presenciou seu pai batendo em sua mãe, o que o levou a segurá-lo e de um golpe jogá-lo pela escada abaixo. Não gostava de estudar, mas conseguiu ir até o segundo ano ginasial. Na cidade tinha muitos amigos, às vezes fumava maconha, o que era raro na época, e fazia alguns bicos. Dizia ler Aldous Huxley, o que ninguém acreditava, mas gostava de filosofar um pouco.

Aos 30 anos, ainda morando com a mãe, seu pai havia morrido, arrumou o emprego de porteiro em um clube da cidade, onde o forte era a jogatina. O jogo já era proibido, mas... Logo foi transferido para o salão de jogos, onde além de ser o cacifeiro, servia os frequentadores do carteado com bebidas, cigarros e pequenos lanches. As gorjetas fluíam.
Ficou uns cinco anos neste emprego, teve que sair por ter cantado, com êxito, algumas mulheres que também jogavam. Mas, deu na cara, e o presidente ficou sabendo.

Namorou a filha de um ex-prefeito e acabou casando-se. Logo teve um filho. Mas, desajustado em todos os empregos que arrumava, começou a jogar baralho no clube, ganhando no começo e perdendo tudo no final. Separou-se da mulher e foi embora para Cacilândia em Mato Grosso, onde aceitou um emprego rural, cuja função precípua era ficar atento, para que invasores, não ocupassem a terra. Andava o dia todo a cavalo, portando uma Winchester 22, rodeando a grande propriedade. Ganhava relativamente bem para desempenhar esta função, como de um policial.

Certa feita, algumas famílias miseráveis invadiram uma área da fazenda e lá colocaram umas cabanas. Rolinha ao deparar com a invasão, chamou os chefes, e disse:

— Vocês podem cair o fora. Se amanhã eu passar por aqui, vou começar a atirar, começando pelas criancinhas! Vendo a disposição e a cara de mau do Rolinha, acreditaram, e no mesmo dia partiram. Seu patrão ficou muito contente e aumentou um pouco o seu salário.

Dormia à noite em uma pequena pensão na cidade, onde a cama era limpa, o café da manhã bom. E mais, começou a namorar Cacilda, a proprietária. Ela era bem mais idosa, com mais de 50 anos e não era nada bonita, pelo contrário. Mas adorava sexo! Ele referia para os amigos que à noite, se deitava nu e dizia a ela:

— Agora pode fazer de mim o que quiser! E ela fazia! Com isto não pagava mais a pensão, e ao chegar no fim da tarde, sempre tinha uma comidinha quente e bem preparada.

Tudo ia bem, até que conheceu uma sobrinha de Cacilda. Rolinha logo se interessou por ela, que era moça e bem vistosa. Passaram a ter um quiproquó, até que a tia percebeu e teve certeza do que vinha acontecendo. Expulsou-o de casa e não sei o que foi feito com sua sobrinha. Além disso, sendo uma mato-grossense arretada e vingativa, contratou três jagunços para acerta-lo. E acertaram mesmo, chegando a mutilá-lo de tanto bater.

Teve que voltar para sua cidade natal e lá foi confirmada pelos médicos, uma insuficiência renal, consequência das pancadas nos rins ou de uma nefrite aguda não diagnosticada. Com os rins funcionando mal, inchaço no corpo, pressão alta, começou a fazer diálise diariamente.

Graças a um médico de São Paulo conseguiu fazer um transplante renal que funcionou temporariamente e nesta fase boa, conseguiu novamente urinar.

Quando alguém lhe perguntava como iam as mulheres, ele dizia:

— O que é isto meu amigo, nada mais de sexo, o que mais desejo agora é urinar pelo...

Após a rejeição renal, voltou para a diálise e ficou totalmente largado, sem forças para qualquer coisa. Sua mãe já havia morrido e quem o socorreu foi seu filho, agora casado. Sua nora cuidava dele, com carinho.

Certo dia sumiu de casa. Pegou uma condução para Cacilândia e foi direto à pensão de Cacilda.. Enfiou-lhe um 38 na boca e disse que queria saber o nome e o paradeiro dos bandidos que o haviam atacado. Ela então, além de confessar o mando, dedou os bandidos. Conseguiu mesmo fraco e doente, fuzilar em três dias, um de cada vez. Passando mal, montou em uma égua e saiu pela estrada, sem destino. Nunca mais ouviram falar dele em Cacilândia ou mesmo em sua cidade natal.


Ninguém, nem a polícia, soube explicar o porquê da morte dos três elementos, friamente assassinados, com exceção de dona Cacilda, que guardou segredo absoluto, com medo de ser a próxima. Rolinha sumiu.