LIVRO SECRETO. - Mario Augusto Machado Pinto




LIVRO SECRETO.
Mario Augusto Machado Pinto.

Fazendo mais uma das limpezas periódicas no sótão da casa onde moro, num canto perto do beiral do telhado, chão sujo e limoso por água que devia ali se acumular, encontrei um volume, um pacote envolto e embrulhado em papel jornal velho e empoeirado. Fiquei intrigado: como é que eu não o percebera antes? Foi uma surpresa muito grande. Examinei superficialmente, estava etiquetado com escrita esmaecida pelo tempo. Poderia ser o célebre “Pra fulano”, ter data ou alguma outra coisa, mas não, nada além das notícias impressas na folha primeira.

Interessante. Dias depois comentei o achado ao telefonar e cumprimentar pelo aniversário um desses primos afastados, o Nello. Nós nos falávamos de vez em quando. É um cara aberto, sem preconceitos pra quem tem parentes é bom...de longe. Perguntou-me o que continha o embrulho. Ao responder que ainda não havia desembrulhado o pacote, quis saber se havia comentado o fato com alguém e sugeriu alegremente que poderia ser o primeiro sabedor do resultado, pois também estava sendo o primeiro a  conhecer o caso. Assim ficou combinado.

Após o telefonema, durante umas duas horas recebi seguidos chamados de parentes e de algumas pessoas esquecidas no tempo. Curiosos, os parentes voltaram à vida querendo saber tudo a respeito do conteúdo que há quanto tempo estivera ali perdido o tal do pacotão. Achado na casa que havia sido dos meus avós, diziam eles, só poderia conter coisas da nossa família. Agora existia uma “nossa família”. Os amigos queriam saber por terem sido “amigos”, ora. Ficaram desiludidos quando explicava que não sabia. Desliguei o aparelho, fone “fora do gancho”, com se diz. O Nello não devia ter dado o número do meu telefone, que diabo!

Época atarefada, o exame do embrulho foi sendo adiado, às vezes nem me lembrava dele, mas não os parentes e amigos. A insistência era sempre presente. Precisava solucionar.

Resolvi, então, examinar o pacote  começando pelo seu aspecto: bem feito, flexível, papel jornal seguro por elásticos que se romperam ao meu manuseio. Examinei a etiqueta usando uma lupa para desvendar o que estava escrito. Imaginando dava para ler o que parecia ser AVÔ. Então, se era avô, o embrulho era para seu neto: eu! Pretensão? Podia ser! E, se era pra mim, o que continha? Com muito cuidado e jeito desdobrei uma parte mínima e descobri a data na cabeça das folhas do jornal: ...embro de 1.9..0. Poderia ser de setembro, novembro ou dezembro. Para ser a mim endereçado deveria ser anterior à sua morte, de algum dos últimos decênios e poderia conter cartas, relatos, foto, coisas de nossa convivência após o falecimento de meus pais num acidente aéreo e inclui-los ou não. Minhas cartas pra ele? Que mais poderia ser ou conter? Adivinhação!

Meu avô era minucioso nas suas ações, estava sempre fazendo coisas, registrava tudo, era um escrevinhador, como dizia Vó Celina. Por ele seriam memórias de um passado que tomariam forma num presente e que provocariam nostalgia pela saudade do que viveu e melancolia do que não, teria dito ele. Que frase! Tinha dessas aos montes.

Eu trocava ideias com o Nello e ele, eu sabia, comentava com os parentes. Aí funcionava a Rede do Nello.  Dessa gente toda ele me transmitia as ideias e pensamentos. Havia até quem pensasse em testamento indicando os herdeiros de bens que ignorávamos, a partilha do dinheiro obtido com a futura exigida venda da casa em que eu morava ou meu avô m´a doou em vida por escritura, etc. Quanto a isso estava sossegado. Não comentei minha situação, mas eles ferviam de curiosidade. Era pressão constante para ter o conhecimento do conteúdo do pacote.

Nello veio com a novidade: a turma toda queria uma reunião pra saber o conteúdo do pacote.
Conversamos. Pedi, então, que transmitisse a todos um convite para um lanche às quatro horas da tarde do próximo domingo. Assim ficou combinado.

Tudo preparado, no domingo começou a chegar gente antes das quatro. Às quatro as salas da minha casa estavam lotadas. Ia faltar comida. Nello me apresentou. Após saudar a todos, fiz um resumo do acontecido nos últimos meses inclusive explicando que eu mesmo não sabia do conteúdo do pacote. Ouvi claramente Pois sim, Duvido muito. Não dei importância. Cuidadosamente e com vagareza pra manter suspense, comecei a abrir o pacote em uma mesinha preparada pra isso. Desdobradas as folhas do jornal apareceram dois envelopes: um continha um amarrado de folhas de papel com capa de cartolina e escrito: MEU LIVRO. Ao abrir o segundo, dele caíram algumas fotos. 

Começamos com as fotos, propus. Não, com a papelada, disseram uns. Estava feita a confusão. Uma senhora que se identificou como prima em terceiro grau da Vó Celina tomou a palavra e colocou ordem no pedaço e propôs que ao término de ver as fotos deveríamos comer o lanche e logo depois ler os papeis. Não deveríamos fazer desfeita ao primo proprietário.

Terminada a rodada das fotos, começaram a comer o lanche. Não era bem comer, foi um avanço geral. Todos comeram, mas houve quem não conseguiu repetir.

Terminada a comilança, aquela senhora, em nome de todos, agradeceu o lanche, Muito bom, muito bom, todos bateram palmas e ela sugeriu que eu fizesse a leitura do livro. Aprovaram com seus Hum, Hum e o Vamos logo com isso dos mais agitados.

Iniciei a leitura: era um relato sobre nós, os meus avós, meus pais e eu. Os acontecimentos, a morte deles e da minha avó, e outras coisas. Finalizava explicando que com o pacote queria despertar de propósito a curiosidade de vários parentes de última hora. Durou uns quinze minutos. Houve murmúrios, ouvi alguém dizendo Vamos ao que interessa”. Finda a leitura, verificamos que havia uma escritura: era a da doação, em vida, da casa dele pra mim. Houve certa agitação entre os presentes.

A outra pasta dizia conter o testamento dele. Houve aplausos e exclamações em alta voz. Comecei a ler: eram frases, algumas sem sentido, outras descrevendo paisagens, nomeando os animais do sitio de um amigo dele, frases desconexas e palavras soltas.         Uma dizia Comi, bebi, namorei e viajei todo o dinheiro. No meio da página estava escrito à mão NADA – NADA. Ao final instruía abrir o envelope grampeado na última página da pasta. 

Abri o envelope, tirei a folha de dentro dele, desdobrei e ao ver seu conteúdo fiquei completamente zonzo.
Havia uma grande foto, colorida dele, de frente, “dando uma solene banana” e escrito em enormes letras góticas:
ISTO É PRA VOCÊS!


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