COISAS DA VIDA
Jeremias Moreira
Meu
nome é Felipe Passos Cunha de Souza. O que acabo de descobrir vira a história
da minha vida de ponta cabeça. Ainda estou meio perplexo. Não sei o que pensar,
o que sentir, e sou incapaz de qualquer julgamento. Por enquanto, sinto apenas
que aconteceu comigo uma dessas peças que a vida prega, sem que se tenha qualquer
ingerência ou qualquer alternativa.
Minha
mãe, Adélia Passos, vítima de um câncer avassalador, faleceu há dez anos. O
Fernando Cunha de Souza, meu pai, que esteve presente em todos os momentos cruciais
da minha vida e que me amou como só um pai ama a um filho, no mês passado.
Estou
desocupando a casa onde ele morava e hoje encontrei uma caixa com alguns
guardados de minha mãe. Resolvi dar uma olhada e me deparei com dois livros.
Eram seus diários. A princípio fiquei constrangido em abri-los. Sentia-me como
invasor de sua privacidade! Depois, conclui que agora isso não contava, pois há
muito ela já não estava entre a gente e não faria mal conhecê-la um pouco mais.
Peguei um dos livros e me pus a folheá-lo. O diário registrava acontecimentos
de quando era jovem. As músicas que curtia; seus cantores favoritos: Elvis
Presley, João Gilberto, Celi Campello; seus atores: Tony Curtis, James Dean,
Burt Lancaster, Anselmo Duarte, Marilyn Moroe, Silvana Mangano; os filmes que
gostou: Psicose, Juventude Transviada, Dr. Jivago. Ela vibrou com a Palma de
Ouro em Cannes, ganha pelo filme O Pagador de Promessas. Falava da tensão da
época do vestibular, que prestara para a Faculdade de Sociologia. Citava alguns
namorados e, claro, o começo do namoro com meu pai. Conheceram-se numa festa em
que ela entrou de bicona. Corria o ano de 1962 e ele cursava a Faculdade de
Direito do Largo de São Francisco. Minha mãe morava com minha avó, na Aclimação
e meu pai, numa Republica de estudantes na Rua Baronesa de Itu. Além de moradia,
o local tornara-se o ponto de encontro dos amigos e das namoradas dos rapazes.
Folheando
o diário fiquei sabendo que foi lá, no dia 04 de outubro de 1962, que minha mãe
fez sexo pela primeira vez. Continuei lendo uma página aqui, outra mais a
frente, até que cheguei à data de 13 de abril de l963, um sábado de Aleluia. No
dia anterior, na sexta feira da Paixão, o Fernando aproveitou o feriado longo e
viajou para casa dos meus avós, em Catanduva. E, no sábado minha mãe
desentendeu-se com minha avó Rosa, mãe dela, e saiu de casa. Sem ter para onde
ir, foi para a República. O meu pai ocupava o quartinho de fora, na edícula,
que as casas costumavam ter e que era reservado para as empregadas. Por isso, ao contrário dos outros, que
dividiam o quarto, ele tinha aquele espaço só para si. Figurinha fácil na casa,
Adélia julgou que poderia ficar lá por alguns dias, até arrumar outro lugar ou
reatar com minha avó. Seu temor era que todos tivessem viajado e não ter como
entrar. Felizmente o Roberto, outro morador e também estudante de direito,
estava na casa. Ele atendeu a porta e minha mãe instalou-se no quartinho do
Fernando. Lá pelas tantas o Roberto ia sair para jantar e foi ver se minha mãe
não queria ir também. Ela topou, e no jantar, tomaram um pouco de vinho a mais
e voltaram meio altos. Ficaram batendo papo na sala e em determinado momento
rolou um beijo. Acabaram transando. No dia seguinte minha mãe acordou mal. Pela
ressaca e pelo o que houve com Roberto. Conversaram e decidiram que o fato
ficaria como um segredo entre os dois e que nunca mais tocariam no assunto. Engravidou.
Fernando, nunca soube do acontecido entre os dois e julgou ser o pai da
criança, no caso, o meu pai. Chegaram a pensar num aborto, mas logo
descartaram. Decidiram enfrentar a situação e explicar para meus avós. Depois
de inevitável bronca, acordaram que meu avô Juvenal aumentaria a mesada do
filho e minha avó Rosa, abriria sua casa para que o casal fosse morar com ela.
Além disso, Fernando arrumou emprego num escritório. Assim, casaram-se. No dia
08 de janeiro de 1964 eu nasci. No final daquele ano, minha mãe formou-se
socióloga e meu pai advogado. Apesar dos apertos comuns a uma família em
formação, a vida foi generosa conosco. Na sequência vieram a Naná e o Teo, que
agora descubro serem meus meio irmãos. Toda minha vida julguei ser o
primogênito do Fernando. Fomos grandes amigos. Com certeza, por sua influência
estudei advocacia e hoje sou advogado.
Conheço
o Dr. Roberto Paes de Andrade, que foi colega de republica de meu pai e que,
certamente, é o Roberto do diário de minha mãe. Ou seja, o meu pai de sangue. É
um brilhante advogado. Também conheço seu filho, o advogado Olavo Paes de
Andrade, com quem já me confundiram. Agora entendo por que!
Creio
que o Dr Roberto não faz a menor ideia do resultado da traição que, em
cumplicidade com minha mãe, cometeu contra o Fernando. Não sei se algum dia o
Fernando folheou esses diários. Se o fez nunca demonstrou.
Pensando
bem, a não ser certo desapontamento por ser fruto de uma transa inconsequente
entre dois jovens embriagados, acho que agora isso tudo não tem a menor
importância. Talvez, o fato de eu ser abstêmio ao álcool, seja uma aversão
atávica à condição etílica de quando fui concebido.
Não
julgo minha mãe por isso. Ela foi uma ótima mãe! Esquecer aquele dia, acho que
foi a melhor atitude dos dois! E assim deve continuar!
E
quer saber? Para mim, definitivamente, o Dr. Fernando Cunha de Souza será
sempre o meu verdadeiro pai!
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