CABEÇA
DE ADOLESCENTE
Jeremias
Moreira
“Há muito não a via! Já tinha
esquecido como eram convidativos seus olhos! Nem mais me lembrava de como era
cativante sua voz! Esqueci quase completamente de sua boca e dos beijos que ela
sabia dar.” - concluiu saudoso Militão. Ele e Osmar encontraram-se casualmente, depois
de cinco anos, na estação Sé do metrô, em São Paulo. O assunto que
inevitavelmente veio à tona foram os eventos ocorridos, naquela época, em Taquaritinga,
e que tiveram efeitos significativos nas suas vidas.
Era
final de novembro de 2009 quando, por volta das duas da madrugada, Osmar
levantou-se da mesa do bar com certo esforço, despediu-se dos amigos e, tropeçando
nas pernas, tomou o rumo de casa. Deveria ter feito isso bem mais cedo e não
devia ter bebido tanto. Logo pela manhã teria prova de física e, certamente,
estaria de ressaca. Diante de casa, demorou a acertar a fechadura. Quando encostava
a porta atrás de si percebeu o vulto, na outra calçada, que aparecera do nada. Olhou
melhor e reconheceu Militão, o mecânico da oficina do meio da quadra. “Que diabos. De onde surgiu esse cara se não
havia ninguém na rua? Intrigado, olhou novamente e viu o Militão, já na
frente da oficina, levantar a porta de enrolar. Continuou, ainda por um tempo,
tentando entender o aparecimento súbito do mecânico, depois fechou a porta e atravessou
a loja de ferragens do pai para alcançar a casa, que ficava nos fundos. Tomou
um remédio para ressaca. Não parou de pensar no surgimento repentino do
Militão. “Caramba, de onde ele surgiu?”
Chegou ao quarto, atirou-se na cama
de roupa e tudo e logo adormeceu. Ao contrário do que previra, o remédio não
evitou totalmente a ressaca, mas ele não foi mal na prova.
Após a escola, foi
para casa almoçar e, em seguida, ficar na loja para o pai, também, almoçar e
tirar seu cochilo costumeiro. Levou o livro de matemática, a matéria da prova
do dia seguinte. Ainda com o que restava da ressaca, tentava solucionar uma
equação quando ouviu a voz de Helena, a mulher da loja de móveis da frente. Ela
devia ter uns vinte e oito anos e era casada com o Frederico, com quem tinha
dois filhos pequenos. Frederico aparentava ser bem mais velho que ela e era o
dono da loja de móveis. Ele era um tipo espertalhão e meio sovina por quem
Osmar nutria certa antipatia. Em compensação, com seus dezoito anos e com a
testosterona transbordando, sentia muita atração por dona Helena. Achava um
desperdício aquela mulher bonita e sensual casada com um cara balofo como o Frederico. Por isso, quando a ouviu perguntar se
tinha fita isolante, quase caiu da
cadeira. Levantou meio sem jeito e teve dificuldade para localizar o
produto. Embaraçado, sentia que ela se divertia com isso. Às vezes, quando
Osmar substituía o pai coincidia de Helena estar na loja de móveis em vez do
marido. Nessas horas, assim a distância, Osmar a olhava até com certo
descaramento. E ele pressentia que seu olhar de desejo era percebido. Porém, não sabia interpretar se ela retribuía ou
reprovava.
Ainda
procurando a gaveta onde estava a fita isolante ouviu a voz dela novamente.
—
Você chegou tarde essa noite, né?
Ainda zumbeta, demorou a atinar a pergunta:
— É... é... fiquei com uns amigos no Bar do
Leco... quando vi já era tarde.
—
Criança não pode ficar até tarde na rua. Tem que dormir cedo! — provocou
Helena.
Osmar
ficou vermelho como um pimentão. Enquanto embrulhava a fita isolante, balbuciou
alguma coisa sem nexo, de volta. Jocosa, ela pegou o pacotinho, pediu para
marcar e saiu. Atravessava a rua quando Osmar sacou o ridículo que fizera. Foi para trás da pilha de latas de tintas e
xingou com um berro contido:
—
Idiota! Babaca!
Exorcizou
seu fiasco e voltou para o livro. Porém, não conseguiu mais se concentrar.
Estava furioso consigo próprio. Perdera a oportunidade de se mostrar
espirituoso e impressionar Helena. De repente, atinou para algo que não havia
percebido: “Como ela sabe que eu cheguei
tarde?”. Lembrou-se do Militão aparecer do nada, no meio da noite. Seu
pensamento tentou associar Militão a Helena, porém achou absurdo. Militão era
um sujeito tosco. Uma mulher como dona Helena não teria o mau gosto de se
interessar por ele. Mas, vai saber o que se passa na cabeça de uma mulher. O
Frederico era dado à jogatina e costumava frequentar um clube de carteado até
altas horas. Quem sabe ele não dava conta do recado e dona Helena aceitava de
Militão o que não tinha em casa.
Depois
do retorno do pai e já em seu quarto, não conseguiu mais estudar. Não parava de
pensar na mulher. Enquanto esses pensamentos povoavam-lhe a cabeça, Osmar deu-se conta de que sempre vacilou com ela.
Lamentou não ser mais agressivo e tê-la cantado na cara dura. Certamente Helena
gostava de homens decididos, atrevidos, brutos. Pôs-se a fantasiar que numa das
vezes em que ela entrasse na loja, ele a levaria para o depósito e transariam. Excitado,
se masturbou. Relaxado, dormiu.
Acordou
com sua mãe batendo na porta. O Militão procurava por ele. “O Militão quer falar comigo?”.
Ficou apreensivo “O que será que ele
quer?”. Passou uma água no rosto e foi encontrar Militão.
—
O cara! Tá com o rosto inchado. Eu te acordei? — brincou Militão.
—
Não... tudo bem... eu preciso estudar
mesmo. — respondeu.
—
Cara... fiz um negócio num carro lá na oficina e queria sua opinião. Dá pra dar
uma chegadinha lá?
—
Ok, tudo bem! — respondeu achando aquilo estranho.
Assim
que entraram na oficina, Militão virou-se para ele. Osmar estava ressabiado.
—
Eu precisava falar com você e tinha que inventar um motivo. Desculpe aí, tá!
—
Tudo bem, o que você tem para falar comigo.
—
Bem, ontem à noite você chegou em casa bem na hora que eu saí da casa do
Frederico.
A
revelação foi como uma tapa no rosto. Atordoado, Osmar demorou a encontrar uma
resposta.
—
Eu não vi você sair da casa do Frederico. Quando percebi, você já estava na
rua. Até encafifei de onde você surgiu, assim do nada.
—
Que merda! Devia ter ficado quieto. Bom, agora já falei e o negócio é o
seguinte: a Helena acha que você vai contar para o Frederico que me viu saindo
da casa deles às duas da manhã.
Outro
tapa! Osmar reagiu.
—
Ela acha isso? Porque eu contaria?
—
Foi o que eu falei para ela, que você é ponta firme. Mas ela está receosa.
Indignado,
com muita raiva, respondeu exaltado:
—
Olha Militão! Ontem bebi um pouco demais! Cheguei em casa tarde e não vi você
saindo da casa do Frederico! Se você quiser eu nem te vi na rua! Tá bom?
—
Tá bem, cara! Não precisa ficar bravo! Eu apenas queria que você guardasse isso
só pra você. Legal?
—
Legal! Da minha parte ninguém vai saber, mas acho que você deveria ser mais
cuidadoso!
Depois
do sábio conselho Osmar voltou para casa bastante irritado. “Então é verdade, a dona Helena transa com o
Militão? E ela acha que eu sou um bunda mole que vai espalhar por aí?” – pensou. Por essa, ele não esperava. Sentia uma
grande decepção. Decidiu que não comentaria a história com ninguém.
Entrou
na loja e encostou-se no balcão enquanto seu pai atendia um freguês. Olhou para
o outro lado da rua, para a loja de móveis, e lá estava dona Helena. Ela o
encarava. Ficaram um bom tempo se olhando e, dessa vez, finalmente, ele
conseguiu ler o que os olhos dela diziam. O olhar frio e enigmático que ele
nunca conseguira decifrar, percebeu agora, expressava tristeza. Dona Helena era
uma mulher triste. Ele sentia muita tesão por ela, mas apenas tesão, e ela
devia ser uma mulher sedenta de amor. Ficou com pena dela e aliviado por ser
acanhado. Previu que o caso com o Militão, certamente, acabaria mal.
O
cliente despediu-se e saiu. O pai passou por ele e foi para o caixa. Osmar
aproximou-se, esperou que anotasse a venda e falou:
— Pai, amanhã será minha última prova do ano. Com
isso, termino o colegial! Na semana que vem eu vou embora pra São Paulo! Vou
aceitar o emprego que o tio Claudio me ofereceu no escritório dele e prestar
vestibular para a faculdade de Direito!
Como previra, um ano depois, o caso entre Helena e
Militão estourou e tornou-se, por muito tempo, motivo de fofoca na cidade.
Helena jurou inocência e que isso não passava de falatório de pessoas maldosas.
Para Frederico foi conveniente acreditar, mas mesmo assim contratou dois brutamontes
para dar uma surra no Militão. Avisado, ele se mandou para São Paulo. Aceitou
um emprego na oficina de um primo, no Tatuapé, onde está até hoje. Seu caso com
Helena terminou assim, melancólico como uma fotografia que vai esvaecendo.
Osmar formou-se advogado. Está se preparando para fazer
o exame da OAB. Mas, já advoga no escritório do tio.
Despediu-se de Militão. Não comentou que saiu de
Taquaritinga porque previu que, de alguma forma, se envolveria naquela
história. Também não contou que fantasias eróticas com Helena povoaram sua
cabeça de adolescente.
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