JOANA DOS ARCOS. - Mario Augusto Machado Pinto



JOANA DOS ARCOS.
Mario Augusto Machado Pinto

Há muito não a vejo. Anos. Dela tenho notícias escassas e ocasionais pelo Zeca, seu irmão que hoje me contou que ela voltou e há um tempinho mora na casa dele. Meu corpo reagiu como as cordas de uma imensa harpa. Queria cantar. Alegria! Alegria! Controlei-me para não demonstrar o que me tomou conta. Eu mesmo me surpreendi. Não esperava reação tão intensa.

— E você me conta isso só agora? Ô Zeca, você sabe. Por que demorou?

Companheiros de infância, ela e eu passeamos, corremos, descobrimos que gostávamos de estar juntos, que nossos corpos eram diferentes e que às vezes não sabíamos o que fazer com eles quando aconteciam coisas diferentes e riamos um riso nervoso por ficar sem jeito, mas gostamos quando soubemos. E foi aí que descobrimos como nos queríamos.

Com perene bom humor e de risadeira solta como ela só, Jô marcou sua presença em nossa juventude. Ela e eu tínhamos um chameguinho que nos atraia fazendo de nossas vidas uma mala cheia de alegrias misturadas com algumas poucas tristezas como aquela quando eu soube que iria se mudar pra longe, pra Bahia.

Zeca completou a notícia tendo o cuidado de me alertar:
—Vocês dois sempre foram muito ligados.

Hum, ele escutou o som da harpa.

Comecei a dizer que era coisa de jovens, sabe como é?

— Não, não, não precisa explicar. Eram, não eram? Quero que saiba que nem tudo está bem com ela.

— Não me diga.

— Já disse.

— Por que não me contou antes? O que ela tem? Zeca, eu gostaria de ver a Jô, falar com ela.

— Você entenderá. Olha, é bom ouvir isso, mas veja, será difícil ela falar. Pra você ter ideia, vive deitada, calada a maior parte do tempo. Acordada, sonha sonhos os mais esquisitos. É quando fala descrevendo tudo que fez com seres imaginários. Então exige silêncio. Se interrompida, fica irritadíssima, grita e tenta agredir as pessoas. É perturbador. Não é espetáculo muito agradável pra se ver. Conto isso porque quando chegou ela falou em você e, em minha opinião e para o bem dela, você deveria ir vê-la. Que lhe parece?

Respondi que me parecia ótimo. Queria ter tempo livre para pensar, por isso avisaria quando.

O que eu queria mesmo era me acostumar à ideia do seu estado de saúde, imaginar como conter minha reação ao ver a Jô de agora. Não estava metido em uma camisa de onze varas, era de dez, tamanho P. Caramba! Que coisa!

Sabendo que iria sofrer, mesmo assim em três dias mergulhei de cabeça no assunto, revi todos os álbuns com as fotos da Jô, reconheci as roupas que vestia, reli as cartas, examinei as lembrancinhas. Retornei a um passado envolto em nuvem perfumada que sem conseguir clamou por ser ouvido, visto e acarinhado.

Vou lá.

Sábado, dez da manhã.

Toco o botão da campainha da casa do Zeca e ele mesmo vem me receber.

— Oi, tudo bem?

— Oi. Tudo. Como ela está?

— Esperando por você. Rapaz! Melhorou cem por cento desde quando contei pra ela que você vinha. Não teve mais nenhuma crise. Tá alegre, até canta! Verdadeiro milagre.

— E...

— Não se preocupe, tudo nos trinques, e me levou pra dentro.

Meu projeto. Conheço bem a casa. Entro na sala intima e lá está ela, de costas, alta, mais cheinha de corpo, cabelos ondulados, longos como sempre. Eu dizia “pretos como a asa da graúna”. Ela gostava, mas pedia pra não dizer em público. Fiquei olhando, admirando.

— Jô...

— Não diga nada. Quero sentir a sua presença. Quanto tempo. Ela ainda está aqui, grudada, no meu corpo, sabe? Nunca me deixou e se abraçava.

Virou-se. Beleza de mulher vivida. Chegou bem perto e tocou meu rosto. Quis fazer o mesmo, ela impediu e olhou-me com aqueles olhos pretos que eu havia esquecido de como eram brilhantes e que sempre me prendiam.

Levou-me pela mão dizendo Vamos sentar aqui no sofá.

Enlaçou meu braço, encostou sua cabeça no meu ombro, achegou-se perguntando se me recordava como fazíamos no sofá de balanço no alpendre.

— Claro que sim. Na sua ausência, passava tudo isso na minha mente.

O Zeca sumiu. Atitude bacana.

Falava muito. Voz trêmula. Só ela. Estranhei. Contou coisas que eu embevecido pela sua voz mal acompanhava e aí, de repente, beijou-me na boca. Deu-me aquele beijo que chamávamos “francês com chocolate” e que só ela sabia como dar. Quis segurar seu rosto. Impediu e falou:

— Está contente? Era isso que esperava encontrar? Gostou? Reavivou sua memória? Tenho certeza de que vai se lembrar disto por todo o resto da sua vida! Passei todos esses anos guardando na memória o que dissemos e fizemos. Escrevi um sem número de cartas. Coitada de mim! Tenho, se tanto, duas dúzias das suas e eu sei que você podia escrever mais, muito mais! Você foi mau, muito mau.

— É que eu lia as suas cartas enviadas pro Zeca e pedia pra ele escrever umas coisas que eu ditava! Jô, eu não via a hora de poder ir lá na sua casa.

- Sim, eu sei! Como? O Zeca escrevia, não? Ué, vocês não dividiam tudo? Namoravam em dobradinha? Não passavam o bico? Eu sabia de tudo, vida e milagres.

Gesticulava e aumentava o tom à medida que falava já quase gritando. Certeza de que iria gritar.

— Não tinha tempo? Claro! Andava buscando mais um broto pro seu ramalhete!  E eu vivendo de lembranças, inventando estórias, falando alto pra ninguém, passando por amalucada! E você vem aqui tremelicando como garoto que vai ter sua primeira transa, com essa cara de quem vai comer o manjar dos deuses, Ambrosia, o Baba de Moça. Vai dar certo! Deu? Cretineria! Sim, a cretina aqui esperava, esperava. Quem espera sempre alcança! Uma ova! Você é a prova. Para alcançar isso? Nem morta!

Já quase sem folego, parou de falar. Arfando, suspirou fundo e com raiva incontida gritou:

— Agora mocinho, “põe a viola no saco e pega a estrada”! Some da minha vista! Zeca!  Leva embora este infeliz.

Sem me olhar passou por mim como verdadeiro furacão, não, como um tremor, tão fortemente bateu a porta da saleta.


— Zeca! Ô, Zeca! Cadê você?

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