Vida no circo - Ises de Almeida Abrahamsohn

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Vida no circo
Ises de Almeida Abrahamsohn

Aos dez anos Genilda começou a perceber algo diferente no corpo. As outras crianças da sua idade que moravam no circo tinham a pele bem lisinha. No inicio percebeu apenas uma penugem mais escura no rosto, braços e pernas. Porém, à medida que o tempo passava, a menina observou que os pelos engrossavam e ficavam cada vez mais escuros. No rosto começaram a aparecer espinhas. Nas brincadeiras  a meninada debochava: 

̶  Genilda, tá virando rapazinho, vai criar pintinho !

A garota tinha sido entregue “para criar” pela mãe ao casal dono do circo mambembe quando tinha quatro anos. Nem se lembrava mais da mãe biológica que ficara com os outros oito irmãos numa cidadezinha esquecida do interior do Piauí. Pelo menos no circo fora alimentada e com as outras crianças mais velhas aprendera a ler e a escrever o nome. Como todos lá,  trabalhava no que conseguisse fazer e era treinada para atuar no circo. Da mãe adotiva não recebia muita atenção, nem pancada e nem carinho, apenas as ordens para o trabalho. Do pai adotivo tinha medo. Medo de não conseguir aprender uma arte e de ser abandonada em alguma cidade por onde o circo passasse. Não tinha jeito nem corpo para ser dançarina ou equilibrista. Agora estava sendo  treinada para jogar malabares. Por mais que se esforçasse não era capaz de controlar os movimentos. Tinha dificuldade de enxergar os objetos quando lançados em sua direção. A cada fracasso  era ameaçada pelo pai que a chamava de imprestável e mulher-macho, xingamento cujo significado ela ainda não compreendia.  

Genilda  após um ano tinha crescido pouco, engordado muito e no rosto a penugem se transformara em barba e bigode. No resto do corpo pelos grossos e pretos espalhavam-se incontroláveis. Genilda  raspava  o que conseguia  com os aparelhos de barba descartados no lixo pelos adultos.  Rosto e braços mostravam os  cortes infligidos pelas  lâminas já gastas.

A garota desesperada se armou de coragem e foi falar com a mãe. Esta olhou de perto pela primeira vez o rosto e os braços da menina. Ordenou-lhe que se despisse  e aí viu, horrorizada, os tufos negros que lhe tomavam o peito, a barriga, coxas  e costas. Criatura pouco instruída, mas de saberes práticos atinou que a garota tinha alguma doença, aquilo não era normal, mesmo em meninas na puberdade. Tinha visto no sertão muitas mulheres com mais pelos no rosto, às vezes até um bigodinho cuidadosamente raspado, mas nada naquela intensidade.

 Para médico, nem a mãe e menos ainda o pai estavam dispostos a levar a menina. O dinheiro era curto e nas pequenas cidades onde passavam teriam que tirar um dia para a garota ser atendida, se é que seria, e se Santa Casa lá existisse. O pai cogitou de abandonar Genilda  em algum povoado remoto,  solução que a mãe adotiva recusou. Guardava ainda alguma decência apesar de não ter muito apego à infeliz.

Ao dono do circo veio a ideia que considerou brilhante. Resolvia o problema e acrescentava uma nova atração ao espetáculo. Genilda seria apresentada como a mulher barbada vinda das selvas da África.  A menina não gostou muito do arranjo mas se conformou. Assim, em todas as apresentações lá estava Genilda no palco. Na semi-obscuridade, ao som de tambores,  mostrava-se vestida com um biquíni de folhagens.  Num tosco cenário, cercada de folhagens e palmeiras de plástico, exibia para o respeitável público a  pelagem escura que lhe crescia no corpo e nas faces. O público, não tão respeitável, aproveitava e extravasava a agressividade por meio de uivos , assobios e insultos. No geral o quadro fazia sucesso  e com esse trabalho Genilda foi pagando a sua permanência no circo. Tinha frequentes dores de cabeça  mas nem pensar em procurar  auxilio médico.

Até que um dia ao se vestir teve um desmaio. Acudida, ficou confusa e queixava-se de intensa dor de cabeça. Por sorte, estavam próximo a uma cidade média no Ceará onde a abandonaram para ser atendida na Santa Casa. O jovem clínico constatou que a pressão arterial estava elevadíssima e que o coração batia de maneira irregular. O aspecto da jovem e o exame físico conduziram à primeira suspeita  diagnóstica; tumor de suprarrenal. Controlada a pressão alta, o médico conseguiu  a remoção de Genilda para o HC de Fortaleza.


         Lá, após muitos exames, Genilda foi operada para remoção do tumor. Foi devidamente tratada e submetida a diversas sessões de  remoção definitiva dos pelos. Teve alta seis meses depois, aos dezoito anos sozinha no mundo. Havia gostado do pessoal do hospital e feito amizade com as enfermeiras. Empregou-se lá mesmo, primeiro na cozinha e, após um curso prático, como atendente de enfermagem.  Casou-se e teve filhos. A ninguém contou a sua  triste infância no circo, nem mesmo ao marido. A nova família  apenas  estranhava a não explicada implicância com os circos que passavam pela cidade. Recusava-se a ir e proibia aos filhos de irem às apresentações.

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