Conto de férias - UMA CIDADE DESTRUÍDA Oswaldo Romano


UMA CIDADE DESTRUÍDA

Oswaldo Romano  

         Deixando para trás as alegrias que a cidade oferece, permanece no povo paulista, não só o orgulho de viver na maior metrópole do país, como na capital da maior economia da América do Sul.

         Uma cidade garimpada pelo mundo, não se inibe em recebê-lo de braços abertos. Não se importa com a cor, a religião, o uso do quipá, do turbante, da vestimenta.  Ninguém liga para o boné, gorro ou qualquer casquete.

         Aqui suas divergências, são resolvidas num abraço de primos.

         Paira em São Paulo da garoa, um ar de intenso sossego e calma.

         Hoje, sei lá porque, os pássaros e os animais se movimentam desordenados, orelhas nas escutas, todos participando de um movimento lacônico, cavernoso, quebrado apenas pelo ruído do vento.

         Imperceptível som ao longe semelhante a enxames é notado por mim quando meu cachorro aguça as orelhas. Olhando para elas, aconteceu a explosão.

         Como um sopro, apaguei.    

         Recobrei perguntando-me: “Onde estou? Fim do mundo? Estou vivo?”. Mal enxergo, tudo é pó. Minha roupa está em farrapos! Posso andar, que bom! Não estou ferido. Nuvens, nuvens grandes. Parece garoa, mas tem cheiro ruim! Está escuro, é noite? Ouço lamentos, ao longe, gritos. Grito também. Minha voz não sai! Alguém me escuta? Alguém me escuta? Minha família?...

         —Sim, eu estou escutando. Sou o Frei Humberto. Você quem é?

         — Frei Humberto! Nem o vi chegar. Está escuro, essa nuvem...  Fred. Frederico é meu nome. Sua imagem! Vestimenta... Estou confuso! O Frei está só?

         — Não Fred. Deus sempre me acompanha.

         — Mas aqui está um inferno! Estou sendo enganado pelo Capeta? Frei, Frei Humberto. Ele me acompanha também, mesmo neste inferno?

         — Claro, claro, acompanha todos os seus discípulos, onde quer que estejam.  

         — Os Santos, onde estão os Santos? Frei, Frei tudo está virando, estou levitando, Frei - vou desmaiar...

         — Calma, calma! É a prova, prova de que estamos vivos. Mortos não desmaiam.

         — Quantas coisas estranhas estão me acontecendo num só momento.

— Vejo que você pode andar, Fred? Tem outros irmãos perdidos por aí. Vamos...Vamos caminhar, enquanto lhe esclareço.

— Tá. Minha família, onde está minha família? Melhor irmos, em dois. Temos mais segurança.

— Dois não Fred, três. Deus nunca nos abandona. Foi bomba, foi uma diabólica bomba. Caiu longe, eu pude ver o chamado cogumelo. Caiu no centro.

— A Igreja não é lá? Como o senhor...

— Eu sou peregrino. A mão de Deus me tirou de lá. Minha missão continua...

— Agora entendo, Padre. Era aquele som! Mexia com as aves, tudo. Com certeza uma nave, devia ser muito grande. Pouco podemos fazer. Mas o que podemos ver é muita, muita destruição. Ouça, vem alguém aí:

— Pelo amor de Deus! – Chegou chamando, um homem pela voz.

— Quem é você? Perguntou o Fred.

— Um trapo. Perambulo por aí não sei se é dia ou noite. Estou quase cego. Seria melhor ter morrido!

— Junte-se a nós, disse o Frei. Diga quem é?

— Marcos. Minha família! Perdi minha família. Você é Padre, ou estou alucinado, vagando, vendo um dos doze apóstolos? Desculpe, eu...

— Sou o Frei Humberto, este é Fred e pelo que parece sofremos um bombardeio. Terremoto não foi. Pior, foi atômico! Acompanhe a gente.
— Sim, aonde vamos?

— Só Deus sabe. Ele nos guiará.

Nesse momento Marcos, envolto pela degradação generalizada, pensou estar no purgatório, sendo levado para purificação. Entender aqueles momentos, completa confusão mental, preferiu ouvir a voz da alma e seguir o Frei.

O Frei falava:
                                  
—Como mensageiro de Deus, estou sempre imaginando outros mundos, mas agora não é imaginação, não. Ouço vozes, choros. Olhem... lá estão alguns irmãos.

— Outros mundos?! ...-Marcos ficou de novo vacilante, será que...

Fred vê crianças. Vem à mente seus filhos. Adiantando-se, a passos largos, chama:

—Floripes... Luciano. Chama de novo gritando: Floripes... Luciano, sou eu, seu pai. Filhos, são vocês? Esperem, estou chegando...

Aos tropeços, Fred alvoroçado, chega até o grupo. Pega a menina, e antes de abraça-la observa seu rostinho. Demora um pouco, sua vista esta turva. É ela. Ela vê proteção: — Pai! Pai! Me ajude pai...

Fred sentia-se culpado, não sabia o que fazer, a não ser abraça-la. Choro? Não cabia mais, viajava com eles.

Luciano assistia aquela cena boquiaberto! Assustado, agarrou-se nas pernas do pai.

—Pai, eu estou aqui pai. Vamos morrer?


—Oi filho, não! Estou abalado, como Deus é grande encontrar vocês. Sua mãe? Onde está sua mãe, onde esta?

—Pai, ela disse que viu você pedindo socorro. Falou que você estava em baixo de tijolos da igreja e gritava por ajuda. Ela esta doente, pai.  Ela foi te buscar.

Fred ficou sem chão, como vinha acontecendo. Sem segurança, confuso balbuciava, invoca Deus...

—Filho, olha o padre chegando.

— Padre?! Padre?! Minha mãe. O senhor viu minha mãe? Ela foi lá. Cadê minha mãe?

— Logo vai chegar, filho. - Disse o Frei para acalma-lo, passando a mão, nos seus cabelos emaranhados, acreditando ter dado a resposta.
— Porque ela largou o senhor?

Frei Umberto, movendo a cabeça para os lados, sem firmeza disse: — Procura seu pai. Ela não sabe, filho, que ele está aqui.

O padre, pergunta ao Fred:

—Você sabe quem são os outros?

— Não, Padre.

Surpreso, só olha para o padre. Sente que o Frei Humberto mesmo sentindo-se mais forte, com Deus, parece demonstrar que ainda não entendeu tudo o que aconteceu. Estava inseguro, sentidos confusos. Pensando, Fred deduz: "devo estar igual, só não percebo. Muito grave, estou entorpecido, me sinto dopado. Luto para não perder o chão. Mas até quando, se só vejo desgraça?".

 O ambiente não era para menos. Olhando aquelas figuras, pareciam brotadas da terra. Difícil distinguir quem era quem. Tinham medo de se tocar, de se falar.

Frederico recuperando-se dessas emoções, olha para o mais alto e pergunta:

— Quem é você?

Este ainda parecendo mumificado, movimenta-se gagueja nas palavras e responde:

Desculpe, estivemos juntos eu sou o Marcos Silveira, este trapo. Minha família sumiu. Minha família ficou no hotel. Não vejo mais hotéis, sequer, prédios na cidade. Minha câmera foi sugada, talvez por ser eletrônica.

Mal escuto o que você diz - disse Fred.

Marcos, segredando:

Não quero falar alto o que penso, mas, a radioatividade logo vai acabar com todos.

É verdade! Aprovou Fred.

Estavam a uns quinze quilômetros do centro. No grupo um nissei, questionado pelo Fred, foi dizendo:

Eu sou Nakajima, brasileiro, não? Ia para chácara, né! Quase chegando quando fui arrastado. Nakajima rolou, rolou, - japonês virou muito. Machucado, não.

Ouvindo isso, outro, todo chamuscado que os observava, deu uns passos esquisitos, dobrando as pernas e se virando chamou a atenção, provocando risos das crianças. Fato inusitado nessa hora, fez com que parasse e se manifestasse:

Sei que fiz graça no momento errado.  Sou palhaço de circo e teatro. Eu devia estar chorando porque não acho minha companheira Maysa. Estou, com o coração ferido, penso que todos. Meu nome é Piolho. Piolho jamais soube sofrer sem alegria. Viajei pelo mundo afora fazendo graça. Conheço centenas de lonas e palcos, sempre recebendo palmas. Eu e minha querida Maysa. É ela quem cria as estruturas para meu trabalho e contracena comigo.

       —Maysaaaa, Maysaaaa. Deixem-me gritar. Quando eu grito seu nome, sinto-a mais perto de mim. Maysaaaaa, Maysaaaaa, estou aqui…

                   Sua voz estava rouca. Um silêncio aguardou a resposta que não veio.

Huhuumm, está chegando outra sobrevivente. - Falou Fred. Mal anda.

Se aproxima dizendo:
Que calamidade, horrível gente. – Pensei que fosse um pesadelo… Mas infelizmente é verdade.  

Profetizei estarem aqui. Meu nome é Miranda, sou Vidente.

Então diga-nos alguma coisa boa!

Ganhei essa sensibilidade depois de ser desenganada pelos médicos, e ficar em coma mais de trinta dias. Nasci para sofrer. Previ, encontrá-los no desmaio que tive. - Apontando o Fred, ainda disse - Esse moço me dá confiança. Ele é guiado pelo devotamento desse sacerdote. Posso ficar?

Deus te ouça. Devemos caminhar por aqui, disse Fred. É caminho para o norte.

Como sabe? - Perguntou o japonês Nakajima. - Se você estiver certo, vamos passar pelos lados da minha chácara.

Fred interveio, explicando:

— Na poça d’água, uns fragmentos de ferro, pregos também apontavam o Norte.

Oi, vocês aí? Oi gente, gente... Sou eu quem chama. Aqui, aqui!

         — Escutaram! Tem gente chamando. -  alertou Marcos.

         — Não, não ouvi nada, respondeu Fred. Na explosão, com a dissipação do ar, nos deixou surdos, ou quase surdos.

É verdade! - disse Miranda. Só ouço quando vocês falam alto. Não previ essa bomba. Os Búzios e o Tarot falharam comigo. Onde estavam os Arcanos que não me acudiram?

Um olhar de interrogação do Frei, por cima dos óculos, disse tudo que sentia. E mais:

Todos estamos assim. Há tempos eu manuseio as contas do Santo Rosário e seus mistérios dolorosos. Isto que se vê, é a agonia dos jardins, um jardim de destruição da vida. Rezando, imagino as rosas, elas me consolam. Tento organizar meu pensamento. Sofro ao ver a fome e a sede que estamos passando. Me cala fundo o choro dessas crianças. O Fred, se esforça para acalma-las, pouco vale.

Vamos acampar aqui, poupar nossas forças. – E continuou:

— Gostaria de numa prédica poder jogar bênçãos, evocar Cristo e conseguir nesta hora um acontecimento fora das leis naturais. Um milagre! Mas na teologia, não se espera cair do céu sem que haja um forte motivo, qualquer dom milagroso. Somos enviados para pregar, induzir a crença, não fazer promessas vãs.  Não vender ilusões. Cabe a cada um de nós, evocando Deus, acompanhar o tempo. Devemos seguir nosso destino, e não amaldiçoar o dos que nos fizeram mal.

“Deus, me ajude neste momento segurar a força da fé. Não permita que percam a razão, que se revolvam com este brutal acontecimento, como vencidos. Dê-nos paz. Amem”

Gente! Gente! Oi! Me escutem. Estou perdido.

 Fred ouve o chamado.

Silêncio! Chamam, lá está! Vem vindo!

         — Pelo amor de Deus, gente. Estou com sede e fome. Nem quero falar o que me sustentou até aqui. Meu nome é Cássio, perdi o que de melhor tinha, meu carro, meu ganha-pão, perdi tudo.

Cassio, disse o Fred - todos estamos no mesmo barco. No seco. Agora precisamos no mínimo tentar manter-nos vivos. Seu desespero é o nosso desespero. E queira Deus, o suportemos. É tão grave a situação que os daqui já entenderam. Quase nada podemos fazer. Fique calmo. Naquelas pedras você encontra agua. Um fio de água desce da montanha. Está muito salobra, carrega um gosto ácido. Evite tomá-la, só molhe a boca. Ficamos longe, evitando o desejo de usá-la.

 Nakajima viu o desespero do Cassio e achou que ele poderia ser mais util. Ainda se mostrava forte. Foi quando lhe falou:

— Cassio, olhe os demais. Estão em condições piores que a sua. Mantenha-se. Ajude-nos.

—  Fred, estou reconhecendo aqueles montes. - Disse Nakajima - Minhas terras ficam por detrás deles. Lá tem agua boa. Bombeada do Guarani. Talvez consiga comida.

Então Nakajima, veja se consegue chegar lá! Nós esperamos.

Sim, mas não só. Quero alguém comigo. O Cassio, é o mais forte, venha Cassio.

         — É, quero ajudar, claro! Vou sim.

 Caminhando naquela direção encontraram abatidas e encostadas num pequeno barranco, duas mulheres. O estrago causado pela bomba foi maior que o recebido pelo grupo do Fred. Estavam irreconhecíveis. Foram atingidas como pecadoras entrando no inferno, claro, como aconteceu com todos. Viam-se entre as queimaduras, cabelos escorridos grudados na cara. Desfiguradas, no pouco que aparecia na menos atingida, via-se intensa maquiagem.  Os dois pararam, olharam, nada podiam fazer. Uma pode falar:

Eu sou Margot. Não posso andar. Ela é Madalena, e só disse: dói, dói muito. Não falou mais nada, mas respira.

Cassio disse:

— Estamos procurando comida, Margot. Estamos também na pior situação. Acho que não podemos ajudar agora. Fazer o que? Nunca vi coisa pior. É o fim do mundo. Essa bomba foi jogada pelo inimigo, claro. Mas inimigo de quem? Das crianças? Das mulheres? Enfiaram uma faca em nossos corações. Por quê? Alguém me explica?  Madalena pode morrer, nos vamos morrer. O que houve? Darei o último suspiro perguntando:
O que é que eu fiz? Tenha esperança, Margot.
        
Deixando esta triste cena, pouco depois encontraram a chácara. Totalmente arrasada. Destruída. Destruída, mas havia alimentos que a desgraça não pode alcançar.

Mandioca, por exemplo, ainda não atingidas. Quando Cassio arrancava mandioca, Nakajima logo alertou do perigo que oferecia a crespa e acida. São as perigosas macaxeiras, venenosas, que se infiltram. “Usamos para farinha, né

Foi bom você avisar. Chega de veneno.

 Na cisterna tinha muita água. Construída funda, a água ainda estava boa.

       Com a torneira seca, foi uma desilusão. Mas a água estava ali, a não mais que dez metros, bombeada do Aquífero Guarani. De cima via-se a tampa de inspeção.

      Como abri-la? Como tirar essa água sem energia?

       Eram dois homens debilitados, quase inúteis, atingidos de modo cruel.  Cassio conseguiria descer numa corda e abrir o tampão.

E aí, como subir? Não teria forças. Depois de várias sugestões encontraram a mais viável. Uma viga de madeira, pedaços de sarrafos, pregos. Material que tinham a vontade diante daquela destruição. Foi só pregá-los em espaços, e a desejada escada em cruzetas estava pronta. Cassio desceu, pendurando a escada. Aos cinco metros firmou-se, soltando a escada para os outros cinco. Usando um caneco na ponta de um cordão, encheram um vasilhame.

 Água tinham a vontade. Levariam para os que ficaram com o Frei Humberto.

Só depois desses primeiros momentos, saciadas a fome e a sede preocuparam-se em ver o que restou da sua chácara. Onde estaria o caseiro que cuidava de suas plantas? E o Teco, seu cachorro? Perguntava essas coisas ao Cassio que olhava o japonês e tentava uma explicação. No tamanho do estrago não cabia mais espanto, nem perguntas.

Nakajima, olhe para você, olhe para mim. Esqueça o resto que vê. Muitos perambulam por aí. Perderam tudo, e como almas perdidas, nem sabem quem são.

—Talvez fosse melhor assim. Nós estamos pagando por estarmos conscientes.

— Você está certo. Saber que vamos morrer bem antes do nosso tempo, e deste jeito, preferia também ter ficado desprovido da razão, se é que ainda tenho.

— Quantas vezes você pensou na morte...

— Muitas, japonês, muitas. No volante imaginava: qual desses carros que trafegam contra meu destino, tem um doido e vai me atingir? Esse pensamento me acompanhava. Agora, perdi carro, perdi tudo.

Essa destruição deixa um vazio incrivelmente sentido pelos moribundos, entorpecidos e envolvidos nesse desaparecimento de tudo como um sonho, uma mentira.       Os seus não participavam desse pesadelo.

— Cassio, não entendi. Você está bem? Porque está misturando palavras...

Oh japonês, desculpa. Estou bem, me perdi. Então, vamos até lá?

Voltavam para o Fred e seu grupo. Traziam um pouco de água, e algumas mandiocas. Suas forças também estavam fracas. Difícil de carregar até o próprio corpo.

Cassio no caminho ainda encontrou e deu água para a Margot, já quase inconsciente. Falava com dificuldade. Cassio perguntou:

E sua amiga Madalena, dorme?

Não, está morta! Logo vou também, me aperta o peito, não posso respirar, já senti o tremor da morte. É meu fim.

Cassio ajoelhou-se, para enxergá-la melhor. Margot ainda sussurrando pode dizer:

         — Eu era bailarina do Municipal. Me ajudem.

         — Bailarina?!

         — Vamos mandar ajuda, fique calma.

A imensidão, em todas as direções era uma visão só: destruição, nenhuma esperança de ajuda. Ficar calma, como?

            Alcançando o grupo, Fred, que os esperava, vendo-os chegar, foi logo perguntando: — Acharam, acharam?

Nakajima adiantou-se oferecendo água e ouviu do Fred: — Estamos sem sorte, perdemos o Piolho.

            — Fred, - disse o japonês. Foi uma pena! Um dia o Piolho me contou um pouco da sua vida. Ele viveu bem Fred. Muitas viagens, bebidas, e mulheres nunca lhes faltaram. Agora descansou.

            Trouxemos água e raízes que se podem comer. Estão com o Frei Humberto para dividi-las.

            Nakajima, depois de breve descanso, chamava:

 — Venham, lá tem água, raízes, batatas, vamos. Quem vai, quem vai...

            — Nakajima, calma! Pediu o Fred. Passem uma noite aqui. O pouco que comem, amanhã terão mais disposição. Nem todos podem andar.

            — É, você tem razão, é bom também para o Cassio.

            — Eu vou ficar aqui - falou o Frei Humberto, olhando para o Fred.
Fred não queria acreditar no que ouviu. Disse:

            — Frei, amanhã a gente se fala. Deve ir também. Muitos outros estão precisando do senhor.

            — Sim, você disse bem “do Senhor”. Todos somos irmãos. Temos esperanças perante Deus. As pessoas que você vai levar estão ansiosas por terem encontrado um lugar que promete sobrevivência. As que ficam, ficarão comigo e Deus. Não podem andar. Estão debilitadas. Todos contaminados, nos sobra apenas esperar.

— Padre. Fico vendido, sem palavras, e pensando na sua atitude fico surpreso.

À noite, como outras, foi de gemidos.

De manhã, antes de saírem, o Frei pedindo que se aproximassem, pregou: — Tivemos a proteção divina, agraciada para vivermos mais um pouco. Olhem, vejam o que sobrou da nossa cidade. Onde está a torre da igreja? Imaginem quantas centenas de irmãos foram dizimados. Infelizmente não podemos marcar nosso destino. Nosso destino à Deus pertence.  Sei que perguntam:

        — Porque eu, porque nós. A resposta, acreditem, todos vamos encontrar do outro lado. Acreditem em mim...

            — Padre, a Vidente Miranda está muito mal.

            — Deite ela, apoie sua cabeça. Um pouco de água, vai reanima-la.
Senhor Meu Deus! Me ajude:

            Acolha com seu manto nossas orações e as penitências que nos foram impostas. O castigo na terra é obra do próprio homem. Deus deve perdoa-los porque não sabem o que fizeram. Vamos esperar nossa vez e nos entregar em suas mãos. Nelas nos agarraremos com fé, e juntos antes de nos separar, eu como Frei, fiel discípulo, com devoção, peço unirmos nossas vozes e pedir:

            Pai nosso que estais nos céus,
            Santificado seja o vosso nome,
            Venha a nós o Vosso Reino,
            Seja feita a vossa vontade...

            — Padre. Encontraram forças para rezar e com apelos! – Admirado falou o Fred.

            — Encontramos forças para rezar esta oração porque contamos com o Pai, O Filho, o Espirito Santo.  O pequeno livro Missal Romano nos ensina alcançar objetivos, e a bem-aventurada esperança.

            Agradeço ao Nosso Senhor ter me colocado entre vocês, onde posso transmitir com humildade suas bênçãos. As portas vão se abrir, mas não se esqueçam de começar os apelos, sempre com o Pai Nosso. Esta reza é a chave que abre as portas aos fieis. Tenham fé, Jesus nos dará uma nova vida. Vamos conhecer a paz no Reino do Céu, e de lá, perdoar essa absurda maldade dos homens.

            Irmão Fred: Leve esses abnegados. Deus irá   acompanhá-los. Aqui, eu me ajoelho enquanto vocês caminham, e aos que ficam, quem tiver condições, ajoelhem também. Evoquemos todos os Santos. Um deles, deve nos tirar deste sofrimento.

            Senhor, perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido, e não nos deixe cair em tentação,
                                                                                                             Livrai-nos do Mal.

            — Padre, não posso me levantar! – Lamentando-se em choro falou o Marcos.

            — Então deite, filho. Todos nós vamos nos deitar e esperar o socorro.

                                    Venha da terra ou do céu, será bem recebido.
                       Amém a vida.

Dias depois...

            Fred inicia o retorno, cumprindo sua promessa. Trás, junto com o Cassio alimentos para os que ficaram com o Frei Humberto.

            Estavam preocupados com o que iriam encontrar. Na caminhada passando pelo local onde estavam Margot e sua companheira Madalena, uma surpresa: Não estavam mais lá. Fred trocando um olhar com Cassio, ambos permaneceram calados. Fred quebrou o silêncio:

             — Vamos, Cassio… 

            De longe foi visível a pedra que marcava o lugar onde Frei Humberto e os outros ficaram. Pouco antes de chegarem não puderam ver qualquer movimento. Aproximando-se mais, foram tomados pelo choque. Choque por estarem todos mortos. Deitaram-se, como preconizou o Frei Humberto.
            Não viram o Frei. Seria facilmente identificado pelas roupas. Não, não estava entre eles. Saíram a procura nas imediações. Fred foi até aquele fio de água, nas pedras. Era tão ruim, intragável. Imprestável, mas não deixava de ser água.

            Nada do Frei. Ali, pensando noutras possibilidades, antes de voltar, correu os olhos pelo espaço. - Veio a surpresa! Numa pedra acima, apareceu estendida, o habito do Frei. Sua cor castanho, se confundia com a pedra.

            Fred, alvoroçado virando-se, gritando, chama pelo Cassio.

Olhando aquilo, ficaram atônitos. Eram os dois procurando respostas.

            — E agora? Perguntou o Cassio.

            Fred olhando-o não respondeu. Sua aparência funesta assustou o Cassio.

            — Fred?! Você esta bem?! Não me deixe só, agora. Vamos, vamos voltar... Ou melhor, quer que eu suba, tente chegar lá?

            — Não Cassio. Vai ver o quê, mais um corpo?

            —Talvez! Ele podia deixar um aviso escrito. Ele sabia que a qualquer momento nós viríamos. Disse o Cassio.

            — Escrito com que? Perguntou o Fred, já refeito.

            — Jeito tem. -  respondeu o Cassio.

            — Cassio vamos, vamos embora.

            — E vai ficar assim, nada vamos fazer?

            — Fosse um só corpo? Cavar com que? Perguntou o Fred.

            — Já não sei o que falo, o que faço... vamos embora. Não deve demorar socorro para estes lados.

            — Socorro, pra que?

             Com certeza, o próprio socorro deve estar fugindo deste inferno. Amaldiçoado envenenamento. É radioativo, me atinge por dentro. Rói minhas entranhas. O socorro não chega, e se chegar, pouco vai adiantar. Já estamos condenados.

            — Estou vendo São Paulo...

            — Vendo o que?

            — Um imenso cemitério, Fred. Você acredita que um antepassado pode voltar, trazer mensagens, pregar esperança...

            — Chega Cassio, vamos embora. Estou cético.

Voltaram, passaram onde deveriam estar as moças. Estavam ainda anestesiados com o que haviam visto.

            — Fred, estamos chegando, vá pensando o que vamos dizer?

            — Que mudaram de local, ou foram socorridos, falar o que? Que todos morreram! Que o Frei sumiu deixando a túnica!

            Os dois chegaram acabados, desanimados.

            — Pai, minha pele esta saindo. Nós também vamos ser socorridos?

            — Claro filha! - disse o Fred alto para todos ouvirem- Vai demorar um pouco, tem muita gente esperando.

            Cinco dias depois foram castigados por inesperada queda da temperatura, o céu nebuloso prenunciava augúrio, não cabia mais desanimo. Restava rezar no improvisado altar, uma cruz de taquara, atrás de um poluído pano.

            O novo dia amanheceu com intensa cerração.  Uma brisa irregular vagava, ora aqui, ora ali, chamava a atenção.

            Uma delas mostrava uma sombra por trás. Parecia um vulto, ondulava-se com o nevoeiro. Os movimentos oscilantes daquelas nuvens se confundiam.  Clareando aos poucos, eis que surge caminhando em pessoa, o Frei Umberto!!
           
            Recebido com surpresa e alegria por pessoas tristes, referencia-se a todos. Olhando para o Fred sorri, escuta lamentos, apelos, choros, apertos de dor. Fred, atropelado, incrédulo o vê distribuindo acenos e bênçãos. Ato contínuo, volta o olhar para o Fred. Fred esperava que se aproximasse. Mas não. Como pedindo licença, dirige-se para o improvisado altar. Passa pela ruída cortina, que a soltando o escondeu. Inicia um Pai Nosso. Os de fora aos poucos acompanharam. Abobados com sua aparição, entreolham-se, elevam-se à Deus, renasce a esperança. De dentro, na voz do Frei, ouve-se um canto canônico sombroso. Chega acompanhada de nuances sonoras, e ao fundo um rumorejo de coral.

 De súbito, nada mais se ouve. Paira um silêncio, uma expectativa.

            Fred olha indeciso ao redor, olha para a cortina e chama:

            — Frei... Frei Humberto?! Chama de novo: Frei Humberto?!

            Não obtendo resposta, levanta-se, se refaz um momento e vai ao seu encontro:

Abre o pano, não o vendo, chama:

Frei, Frei Humberto...

                  ... Fred paralisou.  Silenciou. Via somente a túnica sobre a rústica cruz de taquara.


 

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