AS GENTES
Conto de férias criado por Mario Augusto Machado Pinto
—
Será que ela vai aguentar esse mal estar que só lhe permite cochilar, que lhe
provoca reações perto da violência, choro lamentoso e chamar seus amigos de
infância, aqueles que na mocidade
passaram juntos por dificuldades, atribulações, contrariedades e sacrifícios?
Será que suas lembranças estão intactas ou já sofreram o desgaste e as mudanças
ocasionadas pelo tempo?
—
Não sei, mas posso dizer que esta mulher fez tudo que podia para amenizar a
vida do seu próximo, jamais molestando quem lhe dirigia chacotas e, no mais das
vezes, ofensas e agressões cujos sinais estão impressos até hoje em sua pele qual
manuscrito.
Desde
a mais tenra idade, Miranda sonhava com coisas que aconteciam posteriormente.
Vivia angustiada temente do pior, da desgraça dos outros e dos seus. Perdeu a
mãe ao nascer e só havia seu pai agora na guerra (onde está?) para falar sobre essas
manifestações. Nenhum parente. Amigos? Uma vez ao comentar com um deles a
respeito do sonho que tivera recebeu ralha e foi chamada de mentirosa. Suas invencionices eram motivo de gozação
entre os colegas da escola e dos amiguinhos da redondeza da sua casa. Não
comentou mais, mas ganhou apelido: Miranda
Jones - a terrena cega, psicóloga, da série de TV Star Trek, que salvou a vida do Commander Spok a bordo da nave
espacial USS Enterprise comandada pelo Capitão Kirk. Falou com o Capitão?, e o Spok, como vai? Puxou as orelhas dele?
Isso era o mínimo. Recusava-se a escutar. Tapava os ouvidos, corria fugindo da
gozação.
Cresceu
ouvindo os clássicos tocados pelo pai num pequeno órgão e, depois, num piano. Aprendeu nele e dele ganhava seu sustento. Admirava
Bach sobremaneira. Os fatos mais importantes da sua ainda curta vida eram
sempre antecipados em sonhos pelas composições de Bach, principalmente as Sonatas
e o coral da 32ª Cantata e Fuga. Agora era tempo de guerra, não de concertos.
Acordou
com ele, o som surdo dos bombardeios cada vez mais alto e mais próximo,
chegando perto demais qual zumbido de milhões de abelhas atacando, seus ferrões
atingindo vitimas quaisquer. Termina o sonho repetido há meses, mas o corpo continua
na posição fetal, tremendo, suando, atento, tenso e à mente voltava a questão:
era sonho, mas havia um mensageiro que sempre
repetia: reúna as pessoas, fale
com elas sobre o perigo que se aproxima, leve-as para traz do morro buscando
proteção; afaste-as dos dois rios e da ponte em “T”; salve-as! Como? Porque
eu? Pai, ai pai, volta pai, me ajuda!
Nessas horas, sem saber bem porque recorria a Jesus pedindo ajuda, proteção e
as recebia.
Sentia
a constante opressão para fazer algo a favor das gentes. Lembrou-se do aviso e
resolveu chamar a atenção da população para a necessidade de estocar água,
comida enlatada e açúcar, arrumar agasalhos e remédios. Saiu à rua, andou por
toda parte, percorreu os mais imundos becos do seu bairro e avisava: dizia que
avisaria a tempo de todos fugirem dos bombardeios antes deles chegarem. Riam-se
da sua pregação. Jones vai lavar, vai
cozinhar. Maluca de uma figa: toca o piano!
Acordou
nas primeiras horas da noite ouvindo novamente o som da orquestra e das vozes
do coral estourando seus ouvidos. É chegada a Hora, é a certeza que lhe dá o
som nunca antes ouvido tão intensamente. É o sinal, o aviso. Arrepiada, levantou-se
rapidamente, tonteou, enjoou. Banhou-se. Vestiu-se qual cebola, comeu sem saber
o quê, pegou sua maleta e saiu correndo para avisar. Corria e gritava pelas
ruas clamando às gentes para que fossem para trás do morro Sibu, que levassem
suas coisas e tomassem conta de seus filhos e se ajudassem, mas que fossem
rapidamente. Haveria bombardeio logo pela manhã, seria longo, intenso e
devastador.
As
gentes olhavam e riam-se do que fazia a tresloucada Miranda Jones, mas após
notarem os pequenos aviões sobrevoando a cidade, com receio do pior começaram a
sair de suas casas seguindo em direção ao Sibu. Aos poucos já se formava fila de caminhantes idosos,
mães e filhos. O difícil era convencê-los a deixar para trás suas camas e
móveis colocados que estavam sobre carroças, menos as aves e animais que tinham
tirado dos seus galinheiros.
Ela
sabia que seria mesmo no começo da manhã. Tudo confirmava: o céu ainda acinzentado, não havia vento nem a revoada dos pombos, os pássaros não
piavam, rabos entre as pernas os cães
uivavam conversando entre si e a
poeira como que se escondia agarrada ao solo e à relva do caminho. E continuava
a música insistente tocando intensamente nos seus ouvidos sem parar por um
momento sequer.
A
quantidade das gentes era bem grande e não parava de aumentar junto com suas
tralhas e comida; mais, sempre mais.
Amanhecendo
passaram alguns aviões sem lançar bombas. No horizonte já se viam alguns
clarões no céu, estrondos amortecidos pela distância.
As
pessoas se juntavam como ovelhas no redil. De Inicio, falantes; depois,
murmurantes; por fim, caladas, silentes. As crianças indiferentes e alegres correm,
jogam bola, cantam e dançam como aprenderam em casa ou nas escolas. Adultos, olhos
apavorados, procuram, procuram o grande zangão. Apesar da certeza, não sabem quando
será, mas até ao horizonte buscam um sinal, aguardando, aguardando... aí
chegou. O voador enorme zumbe, busca presas. Estrondo! Corpos amontoados a se
proteger. Choro. Gritaria. Correria buscando o melhor abrigo. Corpos jogados à
distancia pelo ar deslocado pela explosão empilhados formando cones de pernas, braços qual formigas passando umas
sobre as outras. Gritos lancinantes de dor e obras do medo de morrer juntam-se
ao latido dos cães, ao miado dos gatos, ao grasnar dos abutres, ao guinchar dos
gaviões, ao chilrear das corujas formando a cacofonia de uma sinfônica tocando
desafinada por músicos perversos gargalhando ensandecidos pelo som dos bumbos,
tímpanos, trompas, tubas, fagotes...Loucura!
Miranda
pensa que sua cabeça vai explodir com o som interior ensurdecedor, tapa os
ouvidos com as mãos. Tratando das crianças somente agora procurou abrigo. Olha
ao seu redor e vê alguns dos pequenos apontando ao céu, rindo-se. Acabou, pensa
ela. Não, não acabou. É a figura no ar,
parece um cogumelo revirando sua forma como a esticar massa para fazer as balas
de mel e cerejas. Sente a música querida diminuir e chegar outra, suave e
embaladora. É como se mil harpas e violinos tocassem acompanhando o enterro de
entes queridos jogados ao léu, pelo chão. Olha ao seu redor: não há mais
prédios, casas. A cidade, terra arrasada, sumiu devorada pelas labaredas
monstruosas da BOMBA! Foi uma só! Lúcifer regeu sua sinfonia, agradeceu o
choro, os gritos e os impropérios. Retirou-se. Iria reger em outro lugar.
Durante
dias, desorientadas, confusas, as gentes buscam solução para problemas os mais
diversos. Deixar Situ era vontade quase geral. Algumas saíram e voltaram para
ali morrerem após alguns dias, corpos desfigurados, inanes, descarnados
sofrendo dores incríveis. Sem saber o que ocasionava essas desfigurações, Miranda,
a muito custo, conseguia mantê-las ali protegidas pela encosta da montanha.
Apontava os que voltavam como exemplo do perigo. Conseguiu manter a ordem e a
disciplina entre todos. Era respeitada e admirada. Muitas vezes, abraçada aos
desesperados, chorava por elas e pela falta do pai. Onde estaria?
Com
amigos e conhecidos formou grupos de atividades diferentes. Assim, Nakajima e
sua família de agricultores tinham o encargo da alimentação do grupo. Kassi, com seu caminhão e alguns ajudantes,
buscava alimentos no lado protegido do Sibu. Frei Humberto, visitante do
mosteiro de sua ordem religiosa, sem saber uma palavra sequer do idioma local
confortava e distribuía bênçãos. Os jovens e as crianças acompanhavam e participavam
das atividades de uma trupe formada pelo cômico Pi Olho e a bailarina Margot.
Ainda
era atormentada pelas visões em seus sonhos. Sabia que Nakajima iria para hum
pais longínquo; em breves dias Kassi iria para a capital e o Frei, por
consequência de seu contato com as gentes morreria sem conhecer seus pares.
Havia outros, mas se forçava a esquecê-los. Tinha, porém um consolo: não mais
ouvia Bach substituído que fora por músicas suaves de autores que não conhecia.
Não
se perguntava até quando duraria essa situação, se e como sobreviveria, qual
seu futuro, se é que existiria algum, onde estaria. Preocupava-se em fazer os
outros gozarem a vida, serem felizes nessa enorme desgraça que a todos atingiu,
em fazer o BEM enquanto durasse. Queria SER.
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