O mensageiro
Ises
de Almeida Abrahamsohn
Kikunio
acordou sobressaltado. Ao seu lado os dois filhos ainda dormiam encolhidos
junto à fogueira quase apagada. Agarrou a lança e aguçou os ouvidos. Coaxar
de sapos e o delicado adejar das asas
dos insetos. Os pássaros noturnos haviam silenciado. Apenas uma claridade tênue
de lua crescente filtrava-se até a clareira. Na mata em volta mergulhada na
escuridão mesmo os olhos treinados do
índio sequer conseguiam distinguir os troncos das castanheiras. Levantou as narinas e aspirou os miasmas
úmidos da selva. Não sentiu o bodum de onça, mas sentiu o humano. Ficou
absolutamente imóvel enquanto girava a cabeça para captar a direção do cheiro.
Vinha apenas de uma direção. Se fossem
cinta-largas teriam se disposto em círculo para depois atacar. Nenhum
ruído se ouvia daquela direção; poderia ser apenas um homem ou vários
agrupados. O índio agarrou a borduna e continuou armado nas duas mãos, imóvel, com os músculos
retesados pronto o salto felino na
antecipação do ataque. Pensou em acordar os rapazes e desistiu. O movimento indicaria
a localização ao inimigo. Não havia nada fazer senão esperar. Mais duas horas
até começar a cacofonia do alvorecer.
Acordados
pelos ruídos dos macacos caiararas os
jovens imitaram o pai e, silenciosos, esperaram a luz se espalhar pela clareira.
Kikunio apontou a direção na mata e os três avançaram ocultados pelas árvores. Tikunio, o filho mais velho avistou primeiro o
estranho ser encostado a um tronco de um
açaizeiro. Era gente e estava coberto por um grande pano marrom com listas
negras de onde emergia a cabeça. O pano cobria parcialmente os braços. Ao lado
tinha um comprido cesto de palha
trançada. Os três espiaram e não lhe viram nenhuma arma. Reconheceram na
pele acastanhada e nos cabelos pretos lisos um da mesma espécie.
Kikunio
poderia tê-lo abatido com só golpe de borduna, mas ficou fascinado pela
roupa do intruso. O estranho tinha aberto os braços e repetia algo
incompreensível ao apontar o pé direito, torcido para o lado e inchado de tal
modo que impedia o caminhar. Os filhos queriam abatê-lo e se apoderar dos
pertences. O estrangeiro tirou do cesto uma faixa tecida em cores que ofertou
ao pai. Decidiram poupar o acidentado. Fixaram-lhe o pé com bandagem de folhas
e cipó e, apoiado em um galho, ele conseguiu andar. Chegaram à aldeia ao
entardecer.
A chegada do estrangeiro causou
curiosidade e tumulto. Os homens, agitados, rodeavam o forasteiro
e não paravam de mexer no pano da vestimenta. O cacique se apoderou do embornal onde achou
alguma comida e duas faixas coloridas . O pajé reclamou a sua e ambos amarraram
as faixas na cintura. Os dois queriam a morte do intruso mas Kikunio argumentou que mais valia
mantê-lo vivo para que lhes ensinasse o segredo das faixas coloridas. Resolveram
que o estranho ficaria na aldeia sob vigilância. A contragosto dos demais
índios, preservaram-lhe a cobiçada vestimenta. O pajé, após algumas
invocações, apontou o prisioneiro como
impuro. Apenas ele, o cacique e a família de Kikunio poderiam ter contato com o
forasteiro. Deram-lhe o nome de Apopetu, aquele
que chegou.
Após
uma semana o cativo já conseguia andar até o rio com a ajuda de tosca bengala,
e em duas semanas já conseguia se fazer entender na língua local. Ao seu
protetor transmitiu que era do povo Ashaninka das terras altas onde fazia frio.
O captor estranhou ao ver que Apopetu
trazia pendurado ao pescoço um pequeno saco de fibra que jamais deixava molhar
e do qual nunca se separava. Kikunio apontou o saco e fez sinal de que queria
ver o conteúdo. Apopetu recusou e deu a entender que quando a lua estivesse
alta no céu mostraria a Kikunio. Este não se atreveu a usar a força para
arrancar o objeto; não iria desafiar os espíritos da selva.
Mais
duas semanas se passaram até a lua cheia. Os dois foram até um roçado de mandioca afastado das ocas. O estrangeiro abriu o saco
pendente do pescoço. Kikunio não escondeu a decepção e a raiva. Apenas dois punhados
de sementes. Apanhou uma pedra para atingi-lo, mas Apopetu desviou o corpo, se afastou e gritou que aquelas
sementes eram o que tinha de mais valor.
Fez sinal de que esperasse e começou a espalhar as sementes em covas que abria
com as duas mãos. Parecia não se importar mais com a presença do captor que o
seguia, curioso parecendo ter desistido completamente
da agressão.
De
volta à aldeia, Kikunio, desconfiado, prendeu o cativo por dois laços de lianas
até a manhã seguinte. Exigiu de novo que lhe mostrasse o segredo da faixa
tecida. Foram os dois para a mata à procura de material. Apopetu escolheu cipós
finos e galhos lisos de embaúba. Dos buritizeiros pegou as folhas e frutas
e sementes de plantas diversas para o tingimento. Kikunio levou o estrangeiro
para uma oca longe da aldeia, conhecida apenas dele e dos filhos. Lá Apopetu
montou o tear. Muito mais rústico do que os da sua tribo, mas teve que se haver
com o material disponível. Usando fibras
de buriti tingidas mostrou a Kikunio como operar o tear quadrado e obter listas
coloridas.
Ficaram
na oca por dez noites seguidas sob o pretexto de uma expedição de caça. Ambos, captor
e cativo sabiam que ao voltar à aldeia Apopetu seria morto. O pajé era o que mais incitava o extermínio do
intruso. Kikunio já o havia defendido junto ao cacique da sanha do feiticeiro.
Esta
noite seria de lua nova. No dia anterior enquanto Kikunio se embrenhara na
selva para caçar, Apopetu foi caçar tartaruga e peixe para se alimentarem.
Achou o caminho até o igarapé onde deixara escondida a canoa. Ainda estava lá e
em bom estado. No fundo da canoa, protegido
da chuva, encontrou o extrato de cipó mariri. Não queria matar Kikunio, apenas
adormecê-lo. Preparou o peixe com ervas
e açaí socado que misturou ao extrato. Encontrou raízes de uariá para cozer na
fogueira. Ao anoitecer Kikunio chegou com a caça para levar à aldeia. Estava
contente, tinha conseguido dois macacos e dois mutuns e estava com fome. Comeu
o peixe assado deixando o uariá para o
cativo. Esticou-se ao lado do fogo e caiu no sono agitado por visões. Acordou
ao alvorecer com o barulho dos guerreiros da tribo batendo as bordunas. Vinham
com o cacique e com o pajé em busca do Ashaninka.
Seguiram-lhe o rastro até a margem do igarapé onde apenas alguns galhos
quebrados e uns cipós de amarração denunciaram a rota de fuga. Atordoado,
Kikunio contou-lhes as visões terríveis noturnas que tivera e que atribuía aos
sortilégios de Apopetu. O pajé decretou-lhe confinamento por duas luas para que
se purificasse dos maus espíritos.
Ao
terminar o confinamento, Kikunio lembrou-se das sementes no roçado de mandioca.
Dois tipos de plantas tinham germinado. Depois de quatro luas cheias era
possível ver as hastes com flores e os frutos se formando. Kikunio e os filhos
nunca haviam visto aquelas plantas antes. Uma era alta de folhas longas e pontudas tinha brotos grossos e alongados com um penacho
escuro saindo da ponta. Ao arrancarem as folhas externas viram os frutos pequenos
macios e suculentos em fileiras simétricas. Eram comestíveis e de gosto
agradável. Observaram ainda que, quando secos, ficavam amarelos e podiam ser
socados e estocados. A outra planta que germinara e crescera formara um arbusto
baixo. Tinha lindas flores brancas e um fruto meio redondo e esverdeado que não
conseguiram comer. Porém passadas algumas semanas no lugar dos frutos
apareceram chumaços brancos como os das paineiras da floresta. Perceberam que
era possível emendar e enrolar os fios dessa estranha planta. Kikunio percebeu
que este deveria ser o material do manto de Apopetu.
A
tribo se maravilhou com as plantas trazidas pelo estrangeiro. Kikunio e o
cacique e mesmo o desconfiado pajé passaram a considerar Apopetu como um
mensageiro do deus da floresta.
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