Histórias sem Fim
José Vicente Jardim de Camargo
Todos consideravam Ivan uma pessoa simpática, a não ser sua
mania de inventar histórias que o debilitava um pouco. Nem todos aprovavam essa
sua maneira de agir. O pior é que as histórias que inventava ─ bem montadas,
coerentes com fatos acontecidos com pessoas amigas ─ na maioria das vezes assustava-as,
fazendo-as passar por momentos de angústia.
Muitas até chegavam a chamar a polícia, pedir socorro.
Ele saboreava o desenrolar da história curtindo o pânico
alheio, deixando as coisas andarem até que, quando a situação chegava a um
ponto crítico, vinha ele sorrindo consertar o estrago contando que tudo não
passava de uma brincadeira.
Certa vez seu melhor amigo, em viagem de negócio ao exterior,
teve a residência assaltada por ladrões armados no meio da noite. Fizeram sua
mulher e duas filhas menores reféns, exigindo para libertá-las, dinheiro, joias
e o que de valor houvesse na casa. A mulher apavorada tudo entregou, que não era muito. Os assaltantes
exigiram mais senão iniciariam os maus tratos. A mãe se apavorou e, aos gritos
se atracou em luta corporal com um deles. Sentindo que o barulho poderia chamar
a atenção dos vizinhos, resolveram amordaçá-las e as trancaram-nas no lavabo. Colocaram
tudo que encontraram de algum valor no carro do marido ausente, e fugiram.
Antes, porém ameaçaram as vítimas de voltarem para matá-las caso os
denunciassem a polícia.
Somente no dia seguinte com a chegada da empregada, as três
foram libertadas, e em estado de choque precisaram ser hospitalizadas. Polícia
e marido foram avisados e os tramites legais de reconhecimento dos ladrões se
seguiram.
O trauma foi tão grande que comoveu os amigos, inclusive Ivan
e família, e uma corrente de
solidariedade se formou entre todos.
Dias após o ocorrido, numa blitz, a polícia prende o carro
roubado e um dos ladrões que, num interrogatório, delata os demais. A mulher
vitima, apesar de temer pelas ameaças recebidas, faz o reconhecimento dos
ladrões. À noite, recebe um telefonema informando que está com os dias contatos
por ter chamado a polícia e feito o reconhecimento.
A coitada, ainda traumatizada, tem um ataque de nervos que precisa
de nova internação. A corrente de solidariedade se mobiliza indo à mídia falada
e escrita a exigir do governo medidas de proteção. O alerta ─ dado ao ano
eleitoral ─ toma conotação política, repercute rapidamente atingindo proporções não imagináveis.
Ivan, não esperando tal repercussão, sente-se constrangido e
temendo a reação negativa da família e dos amigos, não relata ser o autor do
telefonema misterioso.
Contudo a culpa pelo sofrimento causado a família amiga, lhe
pesa na consciência. Não consegue dormir, tem insônia. Quando dorme tem
pesadelos com assaltos, armas disparando, gritos de socorro. Durante o dia começa
a ver pessoas suspeitas lhe seguindo. Em casa instalou alarme e câmara de
vigilância. Comprou carro blindado. A
esposa se preocupa com suas atitudes exageradas, sua perda de peso, sua
preocupação excessiva por assaltos e roubos e lhe marca consulta com um psicólogo.
Este lhe sugere que conte ser o autor do telefonema que
desencadeou seu problema psíquico, quase paranoico. Que não mais invente
histórias que molestem terceiros. Que bulling não fica bem numa pessoa de sua
idade e posição.
Sua esposa e filhos ao ouvirem sua confissão entram em
choque, ficam desapontadas por tal atitude infantil e de desconsideração ao
próximo. Sabiam da mania, mas não imaginavam que poderia chegar a este extremo.
Os amigos também o condenam e procuram se afastar.
Ivan sofre calado. A terapia do psicólogo lhe diminuíram os
pesadelos e a insônia, mas a vontade de inventar histórias continua latente.
Chega a conclusão que é um vício mais forte que ele.
Já começara a tomar antidepressivos, quando, ao comentar o
caso com uma colega do escritório, esta o convida a participar do seu grupo anônimo
de terapia. Meio relutante, mas sem alternativas a recorrer aceita.
Na primeira reunião, ouve uma ladainha de histórias sobre
problemas de todos os tipos que lhe vão entrando pelas entranhas e, aos poucos,
levantando seu animo decaído. Na sua vez de falar levanta-se e, com voz firme –
ao contrário dos demais que balbuciaram suas angustias tremulamente ─ discursa não sobre suas aflições, mas como os
presentes deveriam agir para conseguirem se livrar de seus pesadelos, que caminhos
deveriam seguir. Quanto mais expunha seus pensamentos, mais boquiabertos
ficavam os ouvintes, confirmando com acenos positivos suas concordâncias. Sua apresentação terminou
com aplausos. Sorrisos transformaram o ambiente de abatido em esperançoso.
O coordenador do
encontro, após elogiar sua maneira objetiva de expressar-se, lembrou-lhe que
ele ainda não tinha dado o motivo da sua presença.
─ É este! Respondeu ele. É esta a minha terapia! Dar vazão a
minha imaginação de inventar histórias aos acontecimentos, de dar outros rumos
aos fatos. E aqui posso fazer isso sem precisar me esconder.
─ É a minha salvação!
O coordenador então diz que não se preocupe, que seu
problema será logo resolvido, pois sua terapia
será complementada com a participação ativa dele no grupo dos Alcoólicos
Anônimos e, havendo ainda necessidade, na dos “Cornudos Mansos” ou na dos
“Recém Assumidos” ou na dos ...
─ Basta! Grita Ivan. Quero ir pra casa e contar a família meu
pronto restabelecimento:
“E desta vez, lógico,
sem inventar ramificações espinhosas”...
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