AMOR À HONRA TAMBÉM PODE SER GRANDE - Oswaldo U. Lopes


AMOR À HONRA TAMBÉM PODE SER GRANDE
Oswaldo U. Lopes

O amor à honra e a própria dignidade pode ser difícil de explicar, mas nem por isso deixamos de encontrá-lo. Nem sempre depende de situações de conflito para emergir. Embora registrada e contada em guerras, revoluções e momentos de luta, às vezes a encontramos no virar da esquina, no combate de um ser humano que está ou esteve sozinho e num momento, momento muito particular disse não aos fatos e resolveu “pela sua honra” não pactuar.

Rubens era assim, o herói de um momento crucial na sua vida que, no entanto, agora corria sem muito alarde na pacata e em vista disso até conhecida como referência paulista para cidade onde nada acontece, Capão Bonito.  Estamos no ano de 1983, a sombra do chumbo sobre o país começa a esvaecer, mas para Rubens, Capão Bonito ainda é um pesadelo.

Médico com poucos recursos de laboratório, num hospital simples e sem equipamentos pouco ou nada pode fazer. Como ele gostava de explicar agora era especialista em removo-terapia, sempre removendo e transferindo doentes para centros maiores e mais bem equipados. Vivia ali, na condição de semi-exilado, desde o ano de 1972. Onze longos anos, um médico perdido no mundo, com mulher e dois filhos que dependiam dele. Bem, vamos com calma, estamos em pleno século XX, aliás, no seu epílogo. Fernanda, sua mulher, não era mulherzinha de ficar em casa, fazendo serviços domésticos. Formada em física, tinha até mestrado em física nuclear e se preparava para vôos maiores quando aconteceu aquilo. Já tinha se virado e mostrado o seu valor quando Rubens estivera preso. Agora dava aulas de aritmética na escolinha da cidade. Também sonhava com o agito de São Paulo e odiava a modorrenta Capão Bonito.

Mas o que fora aquilo que acontecera meio repentinamente? Rubens tinha um emprego como médico na clínica cirúrgica do Hospital das Clinicas, o da USP, emprego que remunerava mal, era CLT, mas que lhe dava oportunidade de exercer sua extraordinária habilidade cirúrgica e maior ainda  capacidade criativa. Conseguira reproduzir, em animais, com enorme sucesso a cirurgia de transplante do coração. Era figurinha fácil no time de transplantes.

No outro emprego no qual era efetivo, ganhava bem mais e o trabalho não era exaustivo. Médico do Instituto Médico Legal era responsável pelos laudos de causa mortis no serviço de verificação de óbitos. Para os mais sensíveis podia até ser horroroso, mas lá dentro a coisa tinha certa lógica e organização. Os funcionários, todos muito antigos, faziam a autópsia que era acompanhada pelo médico que depois elaborava um pequeno laudo. Era o típico emprego que os chefões da cirurgia arrumavam para os seus pupilos mais promissores poderem continuar seus avanços cirúrgicos, sem passar por dificuldades financeiras.

Onde e quando começaram os problemas? Rubens lembrava mal, mas sabia que fora com o AI-5. Não no começo, mas ao depois, começaram a surgir poli traumatizados, com sinais evidentes de que algo de errado acontecera. O diretor do Instituto fez reunião e deu ordens muito claras para que aqueles casos fossem identificados como atropelamento, grave acidente automobilístico, assaltante morto em conflito com a polícia etc.

Rubens era uma pessoa sensível, mas não merecia ser chamado de politizado. Não gostava dos rumos que a ditadura tomara, mas lembrava de que em 1964, afundado na residência até achara simpática a revolução de março.

Mas a coisa tomou vulto, o número de atropelados, vitimas de acidentes e assaltantes virou avalanche. Num determinado momento a honra e a dignidade começaram a gritar dentro dele, afinal ainda era relativamente jovem e não ia pactuar com aquela monstruosidade.

Começou a elaborar laudos onde frequentemente se lia:

- equimoses pelo corpo compatíveis com ferimentos provocados por agente contuso, (ponta-pé claro).
- lesões nos punhos que formam laços de múltiplas voltas provocadas por cordão fino (fio elétrico ou fio de nylon). Lesões na porção posterior de ambos os joelhos, do tipo contusão hemorrágica de cor azulada, denotando posição forçada e demorada sobre trave horizontal. Queimaduras na região perínea compatíveis com  ação de agente elétrico (pau de arara bem descrito).
- ferimento perfuro contuso com manchas escuras ao seu redor, sugestivo de uso de arma de fogo. (tiro a queima roupa)

No começo demoraram a perceber. Ainda por cima aconteceu um agravante. Atendeu no Pronto-Socorro um ferido a bala (antigo colega) fez o melhor possível, mas não fez relatório especifico e ainda voltou a atendê-lo em sua casa. Aconteceu o inevitável, foi preso e por lá ficou uns seis meses. Não, não sofreu muito, eram bem informados, claro que houve tortura, choque elétrico, mas objetivamente queriam era assustá-lo e de certa maneira conseguiram.

Saiu meio acovardado com vagos sentimentos de revolta. Isso durou pouco, logo veio o decreto exonerando-o do IML e pondo-o para fora do HC. Seus sonhos foram por água abaixo. Por mais que se interessassem os chefões não tinham nenhum poder e um bocado de medo. As vozes que se revoltavam com os desmandos, como a de Rubens ainda clamavam no deserto.

Contava com Fernanda que nunca o abandonara e juntos partiram para seguir a vida. Mais era inevitável, Rubens olhava pela janela, via Capão Bonito e se fazia a mais triste das perguntas:

Valeu a pena? mulherzinha de ficar em casa, fazendo serviços domem removoterapia, sempre removendo e transferindo doentes para centro maiore



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