A BATALHA DE JAMBOS - Oswaldo Romano


A BATALHA DE JAMBOS
Oswaldo Romano     

                                                                         
        Jantava depressa, sob o olhar repressivo da minha mãe, que sabia o porquê. As nove eu tinha que regressar e o tempo era curto para cumprir nossas inventivas brincadeiras.

        Ao sair, de dia ou de noite, quando não portava o estilingue como um colar no pescoço, com certeza ele dormia no bolso de trás do limpo, mas surrado calção.

        Era nossa arma, contra inocentes passarinhos ou qualquer outro indesejado. Para provar a quantidade de pássaros abatidos, sacava-se o canivete e um corte marcava o feito na forquilha do estilingue. O bom estilingue se conhecia vendo a forquilha de galho da goiabeira, o mais disputado e que tem o melhor cerne.

        Não abatíamos o beija-flor, considerado pintura de Deus. Estavam livres também os corvos. Estes eram protegidos pelas autoridades, que deixavam as carniças aos seus cuidados.

        Quando caia a noite era a hora da guerra dos jambos.

        O embate acontecia contra o grupo da Barra, lado oeste da cidade. Amigos na paz, juntos saíamos do patamar da igreja Senhor Bom Jesus, ao toque dos assobios dos líderes. Numa fuga desordenada eram escalados os jambeiros do jardim. Armados e escondidos entre galhos, em árvores diferentes, um novo apito, repetido pelo adversário, dava início a batalha.

        Jambos voavam como pássaros desordenados. Os, agora soldados, não eram vistos. Imaginavam-se seus esconderijos. E as roupas iam se manchando daquele vermelho sangue, duro de limpar.

        Quando o relógio da matriz batia nove horas, nem mais um tiro.  Rápido reencontro, gozações dos triunfos, cada qual do seu modo chispava para casa. Eu contava com a volta do meu pai com seu Ford 28 de aluguel, que deixava nesse horário o bar do Ernesto onde a noite fazia ponto.

        Só que ele não me via. Eu na surdina chocava sua saída, ia pendurado no pneu estepe. Enquanto ele entrava na garagem, aberta e recuada do portão, pulava, e segundos antes entrava em casa.

        Encontrava a mãe, rádio ligado, quase no escuro, tricotando.
        — Cadê seu pai? Você viu seu pai? – Perguntava.


        — Eu vi, mãe. Tá chegando ai. – Respondia já andando pro banho, escondendo a camisa.


Burrico Teimoso - José Vicente J.de Camargo


Burrico Teimoso
José Vicente Jardim de Camargo

Duas vezes por semana ouvia-se lá pelas dez da manhã o som ranzinzo da buzina, tipo chupeta, da carrocinha do seu Firmino: FonFon-Fonfon
Paulinho! - Gritava a mãe ─ Diga ao seu Firmino para esperar que vou querer fruta e verdura.
Lá ia eu, nos meus nove anos, pra calçada esticar o braço indicando que aqui tem freguês interessado.
A minha chatice de ter de ajudar a mãe a escolher as melhores laranjas e tomates e depois carregar pra cozinha, se misturava com a alegria de alisar a crina do burrico, sentir o ar quente das suas narinas e tentar abaixar suas orelhas espirradas para cima. Seu nome era Teimoso e, segundo seu Firmino, muito apropriado, pois, não havia animal mais burro e teimoso. Quando dava pra empacar e desobedecer os comandos do patrão, só Cristo para movê-lo.
Minha vontade era poder montá-lo, mas seu Firmino – para não desagradar a freguesa habitual - quanto muito me levava de carona no banquinho da carroça até a próxima esquina:
O Teimoso fica cansado e empaca de vez! Desculpava-se para eu descer.
No caminho de volta, quando Teimoso deixava rastros de bolinhos, ia eu recolhendo- os no balde emprestado do seu Firmino – com a promessa de devolvê-lo na próxima visita – para a alegria da minha mãe na adubação  dos seus antúrios e avencas, admiração das amigas da vizinhança.
Dado a minha intimidade com Teimoso, meus pais já comentavam com todos que eu estudaria veterinária. Além do mais que colecionava o almanaque dos animais, sabia na ponta da língua os nomes e as características dos grandes felinos e dizia não ter medo de nenhum.
De cabeça eu com tudo concordava - mal sabendo eles que passando pra real as coisas mudavam – pois, de galinhas e galos não chegava nem perto, com medo das bicadas.
Certo dia, qual não foi minha surpresa, quando, ao atender seu Firmino, deparei com um cavalo baio no lugar de Teimoso. Ele, vendo minha frustação, foi logo dizendo que burro é burro mesmo e ainda mais se chama Teimoso. Desprendeu-se da corda atada no murão da cocheira e foi pastar no capinzal do vizinho. Foi ai que uma cascavel lhe deu o bote sem salvação. Na falta do soro e de outros cuidados especiais, o jeito foi sacrificá-lo para não sofrer.
Desta vez não aceitei a carona que seu Firmino ofereceu para experimentar o trote macio do baio.
 ─ E o esterco, quando vem, é o dobro do burro ─ disse.
Não me interessei!
Meu pensamento tava no burrico, no seu olhar dócil, no seu pelo pixaim, no seu porte pequeno que combinava com o meu franzino, nas suas orelhas levantadas qual antenas em alerta.
A partir daí, meu interesse pelo almanaque dos animais diminuiu. As páginas das cobras rabisquei com tinta vermelha e informei minha mãe que não queria ser mais veterinário.
O que você quer ser então! Perguntou ela
Inventor! Quero inventar um aparelho que apita quando a cobra se aproxima.
─ Mas, os animais já tem esse sentido meu filho, eles preveem o perigo.

─ Ah! Mas, burro é burro ainda mais quando se chama Teimoso. Não dá pra confiar...

Para viver um grande amor - Oswaldo U. Lopes




PARA VIVER UM GRANDE AMOR
Oswaldo U. Lopes

        Como seria um grande amor que todos anseiam por viver? Só seria bem grande se fosse triste como queria Vinicius? Ou seria amor de amar como se aquela vez fosse a última, como entoou Chico Buarque! De que seria feito esse amor que todos nós gostaríamos de viver?

        Poderia ser o amor imenso e trágico de Pedro por Inês e estamos  a falar de D. Pedro I de Portugal e de Inês de Castro. Um amor tão extremo e denso que atravessou a morte. Afinal Inês de Castro é conhecida porque, depois de morta foi rainha e como tal coroada e honrada.

Fernando e Sonia conheceram-se quase nas fraldas. Como era costume naquele tempo ele estudava num colégio só de meninos e ela num só de meninas. É, prezado leitor, essas coisas aconteciam e existiam num tempo não muito distante. Fazia parte do contexto, alguém para segurar vela e pais muito zelosos conferindo parentes e adjacentes. Se alguém era filho de pais separados a coisa podia até emperrar.

Nada abalou Fernando e Sonia, sempre unidos e felizes, casaram-se tiveram um início, talvez difícil, mas sempre juntos. Tiveram cinco filhos e uma vida movimentada. Passaram um tempo na Alemanha onde ele realizou estudos que muito lhe valeram. Embora advogado de formação, tornou-se um senhor administrador de empresas. Sucesso e mais sucesso, dinheiro e mais dinheiro. Não gostavam de badalação nem de aparecer muito, discretos era a palavra certa para descrevê-los. Quem tem mais filhos sempre tem a oportunidade de viver múltiplas vidas e acompanhar uma diversidade que encanta. Foi o que fizeram. Chegaram a netos e bisnetos.

Nunca se ouviu falar de casos, possíveis traições e escapadas. Era um para o outro desde lá atrás até onde a vista podia alcançar, na frente. Bastavam-se um ao outro, mas com evidentes sinais de afeto e carinho.

Era um grande amor que nunca foi triste, nem foi último, bastou-se a si mesmo e não morreu no caminho. Tinha-se que ver para crer. Não é curioso espantado leitor? Esse amor existe e é possível, o amor de duas pessoas que se conheceram muito cedo e se bastara, não necessitando muitas experiências nem múltiplos parceiros para existir.


Regra ou exceção? Caso comum ou extraordinário? Cada um de nós é senhor da resposta. Isso acontece com frequência a nossa volta e nós não reparamos, ou não é bem assim, talvez um ou outro, mas no conjunto os amores que vemos são esporádicos e o que mais se vê é a acomodação e certo aborrecimento...  

Carta a João Guimarães Rosa - Oswaldo U. Lopes


Prezado João Guimarães Rosa
Em algum lugar do Universo onde a matéria se condensa

       Pediram-me para escrever ao meu escritor preferido mesmo que ele esteja morto. Não creio em vida e morte como coisas tão distintas assim e olhe que como você, também sou médico e como você, exerci a profissão com ardor, amor e dor.

       Não foi você mesmo quem disse que “a gente morre é para provar que viveu”? Pois é ai nesse embolar da ausência e da presença, nesse lusco-fusco de energia e matéria em que você se encontra que lhe escrevo não esperando resposta nem a merecendo.

       Todos sabem que seu livro maior é Grande Sertão: Veredas e a impenetrável e avassaladora criação de Riobaldo e Diadorim. De onde veio a força dessa criação? De suas famosas notas no caderninho enquanto marchava pelo sertão? João Alexandre dizia enquanto brincava, como bom pernambucano que era que: “era tudo criação sua que as notas pouco ajudaram”. Isso você nunca explicou. Explicou um pouco sua magistral dotação para línguas. Falava sete e lia onze, Benza Deus! Falo cinco e leio cinco, sendo todas latinas a exceção do inglês. Russo, sueco, esperanto, holandês nem de longe.

       Se me permite gostar mais de uma obra sua, ai vai: Sagarana e lá dentro: A hora e a vez de Augusto Matraga. Vi o filme sim, mas já tinha lido o livro. Foi um casamento feliz o que não é comum quando se faz filme de livro. Ouvi também Paulo Autran recitar aquela fala do vira onça. Momento mágico juntando criador e interprete acima do nível terráqueo.

       Daí você entende, não é inveja não é deslumbre! Médico, diplomata e escritor genial e universal. Quem foi mesmo que disse: “quer ser escritor universal, comece descrevendo sua aldeia”, Knut Hamsun? Vai comparar com médico e escritor medíocre? Não vale a pena
       O que pode dizer de seus livros alguém que foi e é citadino por natureza, que tem nas veias paulistanas óleo diesel, que fala italianado por vício e vizinhança e que só não é jejuno de sertão por causa de umas oportunidades fugidias ao longo da vida.

       Mestre Rosa meu respeito sideral e se me permite em memória de Aracy um abraço justo e medido.


Oswaldo U Lopes 

COM AMOR É MAIS CARO - Oswaldo U. Lopes


COM AMOR É MAIS CARO
Oswaldo U. Lopes

         Era uma casa, só que diferentemente da canção ela tinha cozinha, sala, banheiro e quartos muitos quartos. Dona Leia era a cafetina, ou em palavras mais sutis, era dona do bordel.

        Já estava nessa vida há muito, muito tempo, já tinha ganho muito dinheiro  e vira muitas moçoilas passarem pelas múltiplas paredes. Era enfim o que se podia chamar de prostituta antiga.

        A maioria das moças que estavam ou estiveram a seus cuidados tinham histórias semelhantes, enganadas por falsos amores, abandonadas pelos pretensos namorados, renegadas pelas famílias, acabaram ali. Não era difícil ensiná-las a não se deixar levar pelo amor, sublime amor.

        Carmem era diferente, Dona Leia sentia isso só de olhar. Voluntariosa, altiva, lábios sensuais e vermelhos, alta de corpo esguio. A sua história era parecida com a das outras, mais ela a resolvera a sua maneira. Pusera o idiota para correr de revolver na mão, deu uma banana para a família e se mandou, mas acabou ali também. História diferente de final igual.

        Rafael era engenheiro de estrada de ferro, responsável pela obra, jovem, mas já de emprego sólido. Andava com os trilhos. Para ele prostíbulo era prostíbulo e prostituta era prostituta. Ia lá quando tinha desejo. Cruzou com Carmem um par de vezes, não reparou que ela se achegava, punha a cabeça no seu ombro etc.

        Dona Leia leu a história de ponta a ponta sem precisar conhecê-la toda. Alertou Carmem e começou a forçar o rodízio das moças.

        Foi ai que o impossível aconteceu. Não dizem que o desejo antecede o amor? Rafael começou a só querer ela e ela embarcou no balanço do amor.

        Há prezado leitor dois finais possíveis, um deles é Dona Leia falando:

        - Bem que eu avisei!

        O outro é,  os dois indo embora seguindo o trem, agora o engenheiro tinha esposa e o passado ficara nos trilhos e no apito longínquo do trem.






(Este texto foi elaborado a partir do tema amor de uma prostituta proposto em classe, pela monitora Ana Maria.)

O INESQUECÍVEL ENCONTRO CASUAL - Carlos Cedano





O INESQUECÍVEL ENCONTRO CASUAL
Carlos Cedano
Desde que tinha dezenove anos decorava letras e melodias de todos os grandes tangos. Sou fanático por eles!  Agora com vinte cinco anos, possuo um repertório de cento e cinquenta deles. Costumo cantar em pequenas reuniões, com os amigos de faculdade nos bares ou na casa de algum deles.
A primeira vez que cantei para um público mais numeroso foi no aniversário de minha amiga Norma. Tinha quase uma centena de convidados, cantei cinco tangos e, enquanto isso e de relance, enxerguei uma imagem que me chamou a atenção, era uma bela mulher de rosto fino, morena clara e de cabelos pretos compridos. Seu andar, além de insinuante, era elegante!
Quando acabei minha apresentação, recebi muitas palmas, elogios e até insinuações de que deveria pensar na carreira profissional. Mas, cantar não estava entre minhas opções de vida. Discretamente procurei a moça entre os convidados e não a encontrei, deve ter ido embora pensei, e fiquei frustrado!
Um dia estava no numa conferência sobre economia, me graduaria no fim do ano, quando encontrei novamente aquela bela mulher cuja lembrança acompanhava meu dia-a-dia desde que a vi pela primeira vez.
Nossos olhares se encontraram e, nossos sorrisos também. Aproximei-me e disse:
        — Só me falta saber seu nome.
        — Elisa, Bruno! Disse simplesmente.
Sua resposta me pegou de surpresa, ela sabia meu nome e como será que me encontrou justamente aqui? Minutos depois estávamos sentados à mesa da cafeteria do hotel. Elisa percebeu minha cara de interrogação, e perguntou:
        — Surpreso, Bruno?  Foi sua amiga Norma que me disse que você estaria aqui.
        — Você também gosta de tangos? Perguntei como modo de iniciar e saber mais da linda fêmea.
— Sou professora, professora de tango, tenho uma escola com quinze alunos.
        — E como é que você virou professora de tango?
        — É uma historia não muito comprida. Minha mãe é brasileira e foi a Buenos Aires pra aprender dançá-lo, meu pai foi seu professor e, como você sabe, o tango é uma dança que aproxima muito os corpos e os corações. Casaram-se e aqui estou eu!
Não pode deixar de sorrir e dando uma de brincalhão disse lhe: você ensinaria o tango para um brasileiro que já está com as “dobradiças” um pouco enferrujadas?
        — Sim e não será tão difícil, você já tem dentro de você o principal, você canta com um sentimento que vêm do fundo do coração. Falando nisso, gostaria de te fazer uma proposta Bruno!
        — Diga Elisa! Respondi curioso.
        — Tenho dois grupos, terças e quintas, de alunos avançados às vinte horas, você canta e eu ensino, depois dessa aula começo com a sua. Duas aulas semanais de uma hora cada serão bastante, acho eu!
E assim, foi. Inicialmente meus gestos e movimentos eram desastrados, mas Elisa tinha experiência e jeito. Um mês depois tinha feito progressos e Elisa me dizia com eu era um bom “menino”, ela era irónica e nem sempre com muita sutileza! E foi passando o tempo e conseguia progredir. Passaram-se cinco meses:
        — Bruno, você já está melhor que muitos de meus melhores alunos. Acredito que já podemos passar para outra fase de seu aprendizado.
— Qual?
— Aquela que significa entender dentro de você o que o tango nos diz, o que quer nos transmitir!
        — Pode ser mais explicita Elisa? Sinto o que você quer dizer, mas não consigo expressá-lo em palavras.
        —Dançar o tango significa entrega total às fantasias que ele nos sussurra.   Significa dançar com seu amor como se fosse seu único e verdadeiro! Diz-nos também que a luta de amor entre um homem e uma mulher nem sempre tem um final feliz!  Por todo isso, ele é paixão, ele é a procura de absoluto!
Levantei da cadeira, caminhei até o controle da iluminação e deixei o salão quase na penumbra, botei o mais arrebatador dos tangos  e a convidei-a pra dançar. Naquela noite compreendi o que Elisa quis dizer, não precisamos de palavras, ao ritmo do tango nossos corpos e o palpitar de nossos corações  falaram por nos! 

O segredo de Nicholas - Jeremias Moreira



 O segredo de Nicholas
Jeremias Moreira

Sentia-se o silêncio típico de arrabaldes naquela parte do vilarejo. Havia algumas casas isoladas, feitas de alvenaria, seguidas por fileiras de outras, de madeira, geminadas. Mais adiante a rua se tornava estrada e percorria quilômetros de lavouras e pomares abandonados, campos abertos e ressequidos que se estendiam até o horizonte, num evidente sinal de decadência. Logo depois surgia o abismo.

Diziam que a região era rica em bauxita.

O geólogo Nicholas, da mineradora Brasfer, chegara há poucos dias para realizar um estudo do solo. Numa noite, no bar do Neco, ouviu a história de uma arca com valioso tesouro, enterrada entre os escombros de uma igreja incendiada.  Na tentativa de debelar o fogo, o padre, acabara engolido pelas chamas. Não sem antes amaldiçoar o lugar. No mesmo instante, uma fenda se abriu transversal à estrada. Com o passar dos anos tornou-se um profundo despenhadeiro que interrompeu, para sempre, o acesso aos destroços do santuário.

Nicholas interessou-se pelo assunto e quis saber como, até hoje, ninguém fora buscar a arca.

− É impossível atravessar o precipício. Quem ousou enfrentar a maldição foi sugado pela força magnética da cratera.

Ele saiu decidido a ver isso de perto. Subiu no jeep e rumou em direção ao local. O desfiladeiro era mesmo assustador. Alem de largo e profundo, exalava forte cheiro de enxofre. Ele desceu do carro e foi examinar.

Sem que percebesse, um vulto se aproximou. Quando se deu conta, assustou-se. Mas logo foi encantado pela figura de uma linda mulher. Ela era alta, com longas pernas e um corpo escultural. Cabelos negros como a noite escorridos pelos ombros. Olhos sedutores e lábios cereja.

Falou com uma voz melodiosa:

− O que procura meu senhor?

Meio embriagado com tanta beleza, Nicholas desceu o olhar pelo seu corpo. Quando chegou aos pés sentiu-se confuso. Não eram pés, eram patas mal disfarçadas. 

Respondeu ainda embaraçado:

− Quero ir aos escombros do mosteiro incendiado.

− Posso construir uma ponte sobre o desfiladeiro. Porém, com a condição de que, quem primeiro atravessa-la, entregará sua alma a mim.

O timbre sedutor da voz da mulher não produziu mais efeito. Nicholas deduzira que se tratava do Demônio travestido de mulher.

Pensou um pouco, pediu um tempo e foi até o vilarejo. Voltou depois de uma hora. Trazia uma mochila e um cachorro. Encontrou a mulher a sua espera e disse que aceitava sua oferta.

Imediatamente o Diabo fez com que surgisse uma ponte.

Nicholas tirou um pedaço de carne da mochila, esfregou no focinho do cachorro e atirou do outro lado da ponte.

Imediatamente, o cachorro correu para pegar a carne e atravessou a ponte. Foi o primeiro ser a atravessar.

O Diabo percebeu que formulara mal sua proposta. Irado, abandonou seu disfarce e, por ter sido ludibriado, atirou-se no precipício.

Livre do Diabo, Nicholas foi até os destroços da igreja e localizou a arca. Junto dela havia uma carta. Ele leu! Em seguida, colocou a arca no jeep e a levou para a vila.

Entregou-a ao pároco da igreja com a recomendação de coloca-la no altar e de nunca ser aberta.

Recuperado do golpe e enfurecido, o Diabo jurou vingança.

No dia seguinte, bem cedo, Nicholas foi embora do vilarejo. Não revelou a ninguém o conteúdo da carta!

Na estrada um mochileiro pedia carona. Nicholas parou o jeep e o examinou. Era um jovem e calçava botas de campanha. Nicholas abriu a porta lateral, mandou-o entrar e partiu. Logo depois sentiu um forte cheiro de enxofre.

GOLLUM E FORREST. - Mario Augusto Machado Pinto



GOLLUM E FORREST.
Mario Augusto Machado Pinto

A descoberta que tinha um irmão fez de Gollum andarilho. Andou pelo mundo buscando esse suposto irmão. Em todos os locais anunciava sua presença e o que pretendia: encontrar seu irmão. Procedia sem descanso utilizando todos os meios que encontrava; também escrevia histórias e as publicava nos jornais locais e as contava na TV.

Já noitinha, sentado em um banco descansava no pequeno jardim silencioso da hospedaria rememorando o que já havia feito em todos os anos passados. Certamente muita coisa, mas faltava uma, a mais importante: encontrar seu irmão. Já meio sonolento ficou alerta ao ouvir barulho vindo da sebe que contornava o jardim. Bem que me avisaram pra tomar cuidado com malfeitores desta região. Sorrateiramente foi naquela direção e percebeu um vulto que se afastava rapidamente. Correu, pegou, derrubou. Sou eu, seu irmão, Gotlieb. A emoção foi enorme para ambos.

Abraçados ficaram ali mesmo, no jardim, falando sobre o que fizeram em suas respectivas vidas.

Depois de muito tempo conversando, Gotlieb falou:

- Gollum, Você se lembra de um amigo nosso, que sempre fazia coisas diferentes, aquele que se aventurava a tudo e depois nos contava suas peripécias?
- Sim, claro. Ele era formidável. Nós ficávamos horas ouvindo suas histórias.
- Lembra-se do nome dele?
- Lógico: Forrest. O que tem?  Morreu?
- Não. Pra ele, pior. Está desacreditado, passando amargura. Criticam muito suas histórias e sua maneira orgulhosa, rigorosa e certinha de viver. Dizem que isso não é aceitável nos tempos atuais e vão processa-lo. Todo mundo está na gozação. O clima está de ser condenado e preso por anos.
- E daí?
- Daí que pensei que você, quer dizer, nós poderíamos ir ao julgamento e defende-lo.
- È só isso? Então é pra já. Vamos!

Partiram. Ao chegar, a Praça do Tribunal estava lotada de gente e carrocinhas vendendo de tudo um pouco. A sala do tribunal estava lotada. Só entrava alguém quando outra pessoa saía, mas os dois empurrando daqui e dali, conseguiram chegar à frente impondo sua presença e ocupando os primeiros lugares. Tiveram sorte. Saiu um grupo de pessoas e os dois entraram e se sentaram logo nas cadeiras da primeira fileira.

Depois de um tempão, os argumentos apresentados, o juiz perguntou se alguém desejava depor. Gollum respondeu que sim e aproximou-se da barra do local do réu. Pode ver o estado lamentável a que estava reduzido seu grande amigo. Sorrindo, acenou para ele e fez o sinal de positivo com os dedos.

Depois de se identificar, responder a alguma perguntas, o juiz disse a Gollum para expor suas razões.

Gollum esclareceu que era amigo de longa data de Forrest, com ele tinha passado toda sua infância e juventude, sendo exemplo de virtudes como a correção de um caráter impoluto.

- Sim, sim, obrigado, disse o juiz, mas vamos aos finalmente.

- Bem, Sr. Juiz, ouvi que tratam meu querido amigo como “Forrest Gump, o contador de histórias”. Sim, ele contava muitas histórias e nós sempre gostamos. Se repararem Srs. Jurados, ele é um homem que por trás de um olhar meio perdido e com visível lentidão de raciocínio, esconde a energia e a vontade de lutar dos grandes. A literatura mundial nos indica um livro do autor Winston Green que narra histórias com sabor de fábulas como as de Forrest que do mesmo modo expõe com suas histórias um perfil delicioso do nosso país, a América, apontando o cantor Elvis Presley, o presidente Kennedy, a Guerra do Vietnã, o movimento hippie – vejo alguns de seus representantes nesta sala – e o escândalo de Watergate. Forrest conta coisas que posso afirmar também aconteceram com o meu amigo. Exemplo? O amor de um homem e uma mulher que poderia ser imortalizado por cancioneiros. O meu amigo é um rapaz inocente com consciência de suas limitações mentais, que não faz mal a ninguém. Na praça, Meretíssimo, V. Excia encontrará rapazes maliciosos, malandros que aprontam sem medo de arriscar. Utilizam 75% do seu Q.I. e são considerados retardados. Ele, Forrest, é comovente! Prova? O que aqui foi dito do amor de Jenny: Forrest é seu porto seguro. Ele é ingênuo, mas muito especial que vê o mundo por uma perspectiva diferente.  É o símbolo de uma era – verdade - um inocente à solta num país que está perdendo sua inocência. O seu coração sabe o que seu limitado Q.I. não consegue saber. O seu compasso moral nunca balança. Os seus triunfos tornam-se uma inspiração para todos. Forrest Gump é a história de uma vida. Não é mentiroso. Para ele a vida é como uma caixa de bombons. Você nunca sabe o que vai encontrar. Obrigado Excia. É o que tinha a dizer.   

Os jurados saíram para deliberar. Voltaram com votação unânime de inocência e de ridícula a ação judicial ajuizada.

Forrest, Gotlieb e Gollum ficaram juntos durante muitos dias ao cabo dos quais cada um foi tratar de seus assuntos pessoais, mas os irmãos pediram a Forrest para sempre enviar suas histórias por e-mail.

Ao se despedir de Gotlieb, Gollum falou:

- Forrest conta histórias. Nós contamos histórias escrevendo-as.
-x-x-x-x-x-x-x-x-

Palavras: 1.132.
Páginas: 02.
Pesquisa: Forrest Gump – o filme.



FORETS GUMP – o filme.

O filme FORREST GUMP, O CONTADOR DE HISTÓRIAS nos mostra um homem que por trás de um ar abobalhado e visível lentidão de raciocínio, esconde a energia e a vontade de lutar dos grandes.
Baseado no livro homônimo de WINSTON GREEN (1.966) é uma narrativa com sabor de fábulas. Traça um perfil delicioso da América de Elvis Presley, Kennedy, Guerra do Vietnã, movimento hippie e Watergate (do qual participa por mero acaso).
Conta o amor de um homem e uma mulher como só o cinema costuma imortalizar. Impossível não se apaixonar pelo mundo de F.Gump.
Há grandes diferenças entre o F.G. do livro e do filme. O do filme é um rapaz inocente com consciência de suas limitações mentais. O do livro é malicioso, malandro, sábio, apronta para valer sem medo de arriscar. Utiliza só 75% de seu Q.I. e é considerado retardado. Não é comovente como o F.G. do filme. É só se lembrar do romance com Jenny: F.G. é seu porto seguro. F.G. é um rapaz ingênuo, muito especial que vê o mundo por uma perspectiva diferente.
F.G. é o símbolo de uma era, um inocente à solta numa América que está a perder sua inocência. O seu coração sabe o que seu limitado Q.I. não consegue saber. O seu compasso moral nunca balança. Os seus triunfos tornam-se numa inspiração para todos. F.G. é a história de uma vida. Não é mentiroso.
Para F.G. a vida é como uma caixa de bombons. Você nunca sabe o que vai encontrar.    

ERA UMA VEZ NA ITÁLIA... - Carlos Cedano



ERA UMA VEZ NA ITÁLIA...
Carlos Cedano

O avião pousou, consegui meu sonho de chegar à Itália! A partir de Roma viajei de carona para o norte o que foi facilitado pelo meu conhecimento da língua que enriquecia meu bom contato com as pessoas!
A última carona me deixou numa pequena vila perto de Arezzo, muito bonita e bem arrumada, com pequenas casas, a maioria pintada de branco, e com ruas de paralelepípedo.
Escutei o som forte de algo que se aproximava. Olhei na direção da esquina, primeiro apareceu uma cabeça que logo reconheci como sendo de um burrico. Ah!  Estava puxando uma charrete com um casal de idosos! O barulho que escutava era o contato das rodas de ferro com o chão de pedra.
Com um sorriso cordial fiz sinal pra se deterem. Cumprimentei-os e perguntei que cidade era aquela. O senhor me olhou e sorridente:  
— Você está na vila de Biaggi meu jovem. Está indo pra onde?
Expliquei que queria ir para Florença na região Toscana e gostaria saber que direção tomar para esperar por uma carona. A esposa com delicadeza me disse:
—Meu jovem, você já está na região Toscana e Florença fica a setenta cinco quilômetros ao norte. Estamos indo visitar minha filha que mora no centro de Arezzo e vamos passar o fim de semana na sua casa. Podemos leva-lo até lá onde será mais fácil pegar sua carona.
Aceitei de bom grado, mas quando ia subir na charrete pedi um minuto de licença e tirei fotos da charrete com o burrico e o casal esboçando um enorme sorriso! Era uma cena muito pitoresca e humana!
Enquanto caminhávamos lentamente pela estrada vicinal entre campos de oliveiras e vinhedos, admirava a beleza da região que mais parecia um paraíso. As flores, as casas de campo e os pássaros completavam essa paisagem deslumbrante! Sem dúvida uma dádiva dos deuses!
E eu? Bem, eu não parava de tirar fotos e me sentia frustrado de não poder captar todos os detalhes que sorriam pra meus olhos!
O casal me olhava admirado em ver minha alegria e felicidade! Durante nossa curta viagem aproveitei para contar-lhes que meus pais eram italianos, o que os deixou muito felizes. Apresentei-me:
— Mário Siena. Sou de São Paulo, uma grande cidade do Brasil.
— Siena? Indagaram ao mesmo tempo dona Luciana e o marido, seu Pietro, como querendo ter certeza do meu sobrenome.
— Esse nome é toscano! Disse o marido sendo confirmado pela esposa com vivos movimentos afirmativos de cabeça.
Expliquei que o motivo de querer ir até Florença não era somente turístico, mas que queria conhecer os parentes de minha mãe que ainda moravam numa vila perto de Florença.
Foi demais! O casal se emocionou! Podia jurar que vi correr lagrimas nos olhos dos dois. Subitamente Dona Luciana virou-se para o marido e lhe disse:
— Pietro! Não podemos deixar este jovem ir embora sem conhecer nossa família e a cidade! Seu Pietro respondeu com um largo sorriso dando a entender que estava de acordo e tocamos para a casa da filha.
Catarina e Marcos, recém-casados, era um bonito casal e acolhedor. Enquanto descarregávamos da charrete caixas e pacotes, que exalavam maravilhosos aromas de comida, respondia às perguntas que me faziam. Estavam muito interessados em saber mais de mim e de meu país e à medida que o vinho fazia seu trabalho, ficávamos mais expansivos.
O almoço que tivemos foi uma historia a parte. Dona Luciana tinha levado um bom tempo preparando os quitutes que descarregamos e foram servidos: antepastos, carnes e aves, variedade de queijos e, não podiam faltar, salames de vários tipos! Comemos como se fosse o último dia de nossas vidas, cada iguaria melhor que a anterior!
Ficamos conversando e comendo até tarde e Marcos me pediu para pernoitar na sua casa, no dia seguinte faríamos o tour della città. Acordamos às sete horas. A mesa já estava posta com um baita café da manhã com aquele pão quentinho e cheiroso que era um sonho, não economizei e mandei ver, sempre com bons modos!  
Depois fomos à missa na Basílica de São Francisco onde parecia reunir-se toda a cidade aos domingos, logo visitamos a belíssima Piazza Grande onde fiquei sabendo que o filme a Vida é Bela tinha sido filmada em Arezzo. Depois me fizeram conhecer os prédios medievais no centro urbano, fiquei admirado como conseguiram integrar harmoniosamente o passado com o presente! E mais fotos.
Por volta das dezesseis horas voltamos pra casa e comecei a preparar minha mochila, pegaria um trem comum pra Florença e a família toda me levaria na estação no carro de Marcos.
Ele estacionou seu carro perto de uma passarela. Com profunda tristeza me despedia de todos, chorei e muito e teve um efeito catalisador na família, todos choravam!  Surpreendi-me como em pouco tempo tínhamos criado tão fortes laços afetivos, e pensei siamo tutti italiani. Abraços calorosos.  Volte sempre! Foi o pedido unânime da família!
Comecei subir a passarela para atingir o outro lado da estação. Na parte mais alta escutei os gritos de Marcos que com um pacote nos braços me pedia pra esperar. Detive-me e Marcos ofegante, me disse: minha sogra estava esquecendo este “lanchinho” que preparou pra tua viagem e me o entregou, como era pesado! Estava cuidadosamente envolto num pano-de-prato branco; nos meus braços parecia que estava carregando uma criança e todo mundo me olhava!
No trem, quis ver o conteúdo do “lanchinho” e quando o abri liberei um aroma de salame e pão fresco que atraiu a atenção das pessoas na nossa pequena cabine!  Durante a viagem, de uma hora e meia até Florença, consegui dar conta do enorme salame e do pão!  Cheguei a Florença, mas as aventuras na Itália continuam...

BAMBEIA Ó PIÃO! - Oswaldo Romano




BAMBEIA Ó PIÃO!
Oswaldo Romano               

Quando ouvi as histórias do pião, pião que entrou em nossos contos, e contada por todos os presentes da nossa mesa,  fiquei sensível e tomado pelo passado.
Sei lá por que, fechei os olhos, fui transportado para o ano de 1.942.
Crianças pulavam, falavam. Gritos de meninas sobressaiam, eram os das gatinhas, os mais agudos.
Num pedaço de chão batido, envolto por terras enlameadas, eu estava ali. Calça curta, descalço, pés, pernas e a roupa suja mostravam sinais da terra vermelha.
O short branco da manhã, quando trocado pelo uniforme escolar, estava um chocolate.
Contente sim em ir para a escola, mas o pensamento permanecia voltado nas sacadas do Toquinho, o nome do meu pião.
Quando ele era jogado na roda, zumbia graças aos furos que eu fazia na sua cintura.
Roda pião roda pião, venha parar aqui, na minha mão! Como comove. Comove fundo a lembrança do tempo feliz quando eu era criança.
Também na vida da gente, não é diferente. É um pião, sempre a rodar. Um pião que também para, quando o tempo faz cansar. Cansar não é bem o termo, seria melhor quando o tempo quer findar.
Não falta muito! Hoje, os grisalhos em volta desta mesa, e não mais rodando o pião, batem no consciente as meninas de pernas finas, finas também suas vozes cantando: O pião entrou na roda pião, bambeia o pião, roda o pião.
Como comove a lembrança, não querendo, mas difícil dela fugir, nos persegue, volta à consciência. Ouvir sons que iguais, iguais, jamais ouviremos.
Restam-nos alguns anos da terceira idade. É a idade da paciência, da tolerância com os menos tolerantes. Estes estão amadurecendo.  É a idade do condor. Condor dos Andes, o andes com dor, mas ande, não desista.
Não faças como o pião que roda, roda, roda e bambeia quando solto da sua fieira. Agarre-se firme nela, e só a solte quando puxado pro céu.
Não esqueça, lá tem duas portas!                         

O naufrágio - Maria Luiza C. Malina


O Naufrágio
Maria Luiza C. Malina


Um estrondo!  Aquele navio já saíra predestinado em seu carregamento a desgraça, o desespero, como um sinal de fim de linha.
Poucos conseguiram salvar-se. Eu sou uma que, não acreditei que aquilo pudesse estar acontecendo. Reverti todas as minhas forças no sentido do encontro de uma tábua de salvação.
Tornei-me surda e muda, liberando espaço na mente, invertendo todos os sentidos, cujas ideias influenciaram a minha existência vital. Queria viver.
Apoiada a um pedaço do navio, não me recordo se haviam mais passageiros. Cheguei à terra firme. Vomitei. Fui socorrida entre perguntas irrespondíveis e inentendíveis.
Eu estava lá!
De tudo só me recordo da mão aberta em meio às vagas. Ela tinha vida. No entanto era eu, apenas eu.  Foi o momento de escolha. Esta mão impregnou minha mente. Os belos dedos com prolongamentos afilados, as unhas, desmaltadas, em muito devem ter acariciado alguma face, escrito cartas, tirado fotos, seguraram um copo com um bom drinque. Eu a vi. Fui a testemunha ocular de um adeus a ser enviado – para quem? – não o sei.
Baseada no meu sentimento pelo belo, na arte, passei a fotografar mãos, a rabiscá-las  de todas as maneiras possíveis.  Dediquei-me às mãos, na profissão de artista plástica. Isto me rendeu boas exposições.
De passagem pelo Uruguay, mais precisamente em Punta Del Este, para uma das exposições que enfeitam a cidade nas temporadas, acalmei minha alma quando me encontrei cara a cara com a escultura gigantesca – A Mão, feita em concreto na praia, em um ponto estratégico, delicadamente escolhido. O Sol de Punta nasce em meio aos dedos.
Fiquei sem palavras.
Refleti muito sobre a obra, sem quebrar a magia da criatividade, a xeretice em vasculhar o por quê dos porquês. Lá estava. Pronta na magnitude.
 As obras adquiridas antes da abertura mereceram um destaque especial na imprensa, o que causou um acúmulo maior de convidados esperado para o coquetel.
Um olhar, um senhor de porte nobre, elegante, em seus setenta e poucos anos, chamou-me atenção. Brindou o sucesso à distância. Aproximou-se. O sotaque pronunciado o delatou. Não lhe perguntei a origem, pois era um local que atraía pessoas de todas as nacionalidades, classes e posições sociais, devido ao cassino.
O folder, através dele o raio X estava completo. Sutilmente agendou um almoço para o dia seguinte, entregando-me o cartão pessoal. Talvez fosse um colecionador em seu país. Aguardei.
Na hora marcada no próprio cassino, estávamos almoçando.
Qual não foi minha surpresa ao descobrir que se tratava de um marajá, cuja esposa viajava, no mesmo navio atropelado pelo destino, em que eu me encontrava. Procurava algum sobrevivente entre os passageiros, que lhe trouxesse alguma lembrança da amada, uma vez que ela viajou em companhia de serviçais para uma temporada de férias na África. Iriam se encontrar em três semanas.
Soube, através de registros de fotógrafos macabros que, ela na tentativa de segurar-se, teve o braço amputado por uma corrente, também registrado por lentes impiedosas. A ama que a acompanhava nada pode fazer. Os serviçais foram tragados na escala do desespero.
Desde então, a imagem da mão na foto foi última lembrança que ele tive dela.
Contei-lhe minha parte.
As cartas encaixaram-se na mesa de pôquer. Ele foi o responsável pelo meio sucesso.

A Escapada de Jerê - Vera Lambiasi


                                                                                     


A Escapada de  Jerê 
Vera Lambiasi


Jeremias, “o bom”, era um sujeito sério, casado, com filhos, netos ...
Até que sonhou ser bisneto de Moisés. Dormindo, deu de cara com Tom Hanks, fantasiado com seu boné de Forrest Gump. E, depois da tempestuosa noite, resolveu correr na água.

Ninguém compreendia a mágica.

Sua esposa admirava sua elasticidade na ginástica matutina, ainda na cama. Deve ser a melancia, murmurava, já exausta de tanta disposição do marido. Mas correr na água?

Na piscina do clube, todos paravam boquiabertos, intrigados com o cineasta, agora atleta.

Não havia mais porteiras para a sua ambição. Imaginava atravessar o Ribeirão dos Porcos, que o levaria de volta à sua Taquaritinga.

Treinou bravamente, o cansaço fazia bem a Jerê. A melancolia, nunca mais deu sinal. Seu joelho esquerdo, completamente curado pela água morna.

Aos 72, estava em grande forma.

E começou a ser assediado pelas moças do clube. Além de corredor, escrevia com primor, e seus contos passaram a ser publicados na revista. Tímido, nem se dava conta de tamanho sucesso.

Até que uma ex-atriz, de um de seus antigos filmes, passou a procurá-lo pelo Facebook. A tal senhora não tinha papas na língua, e fazia declarações de amor em seu perfil público.

O manso Jeremias agora estava encrencado.

A sirigaita, tal qual vírus de computador, não desinstalava.

Bloqueada, passou a persegui-lo na rua, de carro preto insufilmado.

Encurralado, marcou de encontrá-la para um café.

Resolveria tudo olho-no-olho. Mataria as esperanças daquela incauta de uma vez por todas.

Na hora marcada, saiu pé-ante-pé de casa, para não dar na vista. Suava como um menino.

E, entrando na padaria, esbarrou em Joca, seu amigo de infância.

    Ahhh ... Você veio, né, seu cachorro?!


    Joca??? Seu Canalha!!!!