Roteiros divergentes
Ises
a. Abrahamsohn
Nossa
é ela! Há tantos anos não a via! Não mudou muito, parece um pouco mais velha,
mais madura, cortou os cabelos, e já não usa mais os saltos tão altos.
Lembro-me que um dia ela me disse que me amava, e eu nem liguei para isso.
Luísa era apaixonada por mim e fazia planos para o futuro. Queria se formar na faculdade e viajar para o
exterior para fazer pós-graduação e ter uma brilhante carreira. Automaticamente
me incluía nestes sonhos futuros onde ambos
seríamos notáveis e bem
sucedidos; filhos teríamos, um ou talvez
dois, que viriam após o
sucesso profissional.
Estas
não eram as minhas ambições mas eu me deixava levar pelo seu entusiasmo .
Confesso que me agradava ser objeto daquela paixão e
quando nos encontrávamos ela me
incendiava com seus beijos e carícias. Saía
esgotado daqueles encontros e
depois ficava até envergonhado por, de
novo, não ter tido coragem de romper em
definitivo com ela.
Naquela
época eu já namorava Tereza, mais jovem,
muito bela, vaidosa, e louca
para casar. Junto a ela esperava ter a
calma vida familiar que desejava. Desejos modestos: razoável
sucesso profissional e um emprego seguro
que me permitisse conforto sem
luxos. Tereza me amava, disso tinha certeza,
com um amor cálido e exclusivo. Estava terminando o curso
normal e já adiantara que desejava ter três filhos aos quais se dedicaria em
tempo integral . Eu antevia com Tereza uma existência sem sobressaltos. Longe
das paixões e ambições divisadas em uma
vida a ser compartilhada com Luísa.
Afinal
Luísa se
convenceu de que os nossos projetos de vida eram radicalmente
distintos . Nunca mais nos encontramos. Eu casei com a minha Tereza, tivemos os três filhos almejados mas a
pacata vida que eu sonhara
não durou mais que dez anos. Tereza cansou da vida doméstica, da devoção a mim e do nosso amor sem
sobressaltos. Foi sincera e cruel: queria ser rica, viajar, se vestir bem, ir às
melhores festas ... Enfim, ter uma
vida que eu não poderia e nem
queria patrocinar. Separamo-nos. Os
filhos ficaram com ela que estava ainda
mais deslumbrante e bela aos
trinta anos. Logo arrumou um coroa ricaço
que por ela se encantou. Já faz agora
dez anos que estou sozinho.
De
uma mesa de calçada neste bistrô próximo ao Instituto Pasteur
olho Luísa pela
janela . Está sentada a uma das mesas internas e confere o celular. Ela não me vê. Passado o turbilhão das lembranças, posso observá-la com calma. Engordou um pouco, mas veste-se com
elegância. Irradia dinamismo e o rosto é
alegre e simpático como há vinte anos. Hesito, mas decido falar-lhe. De pé em frente à mesa, ela me olha
interrogativamente. Demora quase um
minuto para me recuperar entre as longínquas
memórias engavetadas há mais de duas décadas.
—
Ênio! Mas que surpresa, encontrá-lo neste lugar, após tanto tempo! Sente-se. Vamos tomar um café.
Sento-me, embalado por seu sorriso e subitamente consciente da minha
inadequação. Respondo-lhe que estou em
Paris como turista por alguns dias e sim, continuo no mesmo emprego morando sozinho num apartamento em São Paulo. Pergunta se eu
ainda conservo algum dos meus hobbies, música e cinema, e eu, com alguma vergonha interior, digo música, embora faz anos que não vou a um concerto. Luísa
se tornou uma cientista de renome. Está em Paris convidada para uma
série de palestras no Pasteur. Viajou pelo mundo todo como queria, só ou com o
marido, antropólogo. O filho faz pós-graduação em Lyon. Pouco tenho a lhe
contar e Luísa ainda me sugere algumas dicas turísticas antes de se despedir, está com pressa para um compromisso.
Fico
no café digerindo o significado desse
encontro fortuito. Uma vida com Luísa
teria sido mais feliz ?
Possivelmente não. Eu seria apenas arrastado pela força do cometa. Sim, eu a invejo. Mas este encontro pode vir a ser uma sacudidela do destino. Que diabo! Ainda sou jovem bastante para
voltar à música e estudar cinema. Ah! E também vou voltar à academia e perder essa barriga de cerveja que me
envergonha .
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