Florisbela e o espírito
José
Vicente J. Camargo
Florisbela,
ou Flor como é conhecida, andava apressada para não chegar atrasada ao serviço.
Ultimamente vinha abusando demais dos atrasos e não queria dar novos motivos
para olhares repreensivos do chefe, muito menos sorrisinhos irônicos dos
colegas que se traduziam em motel ou coisa que o valha. Na verdade, vinha do
almoço com as amigas, compromisso de uma vez ao mês que procurava não faltar. O
difícil era interromper, na hora combinada, o diz que diz das novidades, as fofocas
sempre acompanhadas do “nossa, não me diga!”, tudo regado à cervejinha bem
gelada. Caipirinha e licor eram de comum acordo abolidos. Quando chegava a vez das
piadas maliciosas, era hora de interromper e pedir a conta, repartir as
despesas e dar no pé. Mas sempre vinha uma com “escuta mais essa” ou “esqueci
de contar” e aí, o atraso era inevitável...
Da
estação do metrô onde desceu até o edifício do escritório, passava em frente de
um dos cemitérios da cidade, cercado por uma grade de ferro bem trabalhada no
estilo “arte decô” que deixava a vista os túmulos: uns de concreto imitando
pequenas capelas com torres pontiagudas terminadas em cruz, outros luxuosos em
mármores de diferentes cores, ornados com anjos e santos ou com alegorias que transmitem
a dor da família pela perda do ente querido.
Sempre
que ali passava, não deixava de refletir no contraste entre esses dois mundos separados
somente por um suave gradil vazado: de um lado, o repouso eterno dos que se
foram, e do outro, o burburinho apressado da grande metrópole cujos habitantes
tudo dariam para terem umas horas a mais de descanso, pois as que têm, são inferiores
as necessárias. Mesmo assim, tudo fazem −até matam − para não passarem para o
lado de lá: “Ironias da vida” conclui Flor...
Nesse
dia, cruzou com um cortejo fúnebre que entrava pelo portão principal. Mirando o
carro funerário, visualizou, de relance, o caixão no seu interior.
Instintivamente fez com a mão um sinal de adeus como a dizer “descanse em paz”.
No
escritório, aliviada por não deparar com seu chefe nem com os colegas
entretidos em seus a fazeres, mergulhou com vontade no computador conseguindo
terminar o que havia planejado para o dia. Ao ouvir o sinal de encerramento do
expediente, clicou no “desligar”, pegou suas coisas e tomou o rumo de casa já
pensando no empurra−empurra do metrô, no preparo da janta e principalmente na
série de TV que assistia todas as noites – mistério dos bons! – que a deixava
acordada até o final, coisa que com outros programas raramente acontecia, pois
caia no sono antes de chegar à metade.
Acomodada
“à vontade” no sofá da sala, como sempre, no melhor do filme, toca o celular.
Sem desgrudar os olhos da telinha atende:
−
Alô, quem fala?
−
Quero agradecer pelo adeus! Me comoveu bastante, achei bem sincero. As pessoas
que me acompanhavam só cochichavam, tinham o pensamento em outro lugar. Só
cumpriam uma obrigação. Mal se benzeram, foram embora...
−
Que adeus? Quem fala?
−
O adeus que recebi entrando no cemitério. Você estava apressada, mas mesmo
assim teve tempo de pensar em mim. Venha me visitar, vou ficar feliz...
−
Engraçadinho! Não tem vergonha de importunar os outros no meio da noite? Não
tem mais o que fazer? Quem lhe deu meu telefone?
−
Desculpe, aqui não sei se é dia ou noite, as horas não existem. Estou me
sentindo muito sozinho − um peixe fora d’água −talvez por ser recém-chegado...
−
Olha aqui, seu cretino. “Vá cantar a sua mãe”!
Desligando
o celular, Flora procura o número de onde veio a ligação:
“Interessante,
nada consta! – Será que o tombo que dei no celular afetou algo? Nesses momentos
é que sinto falta de um marido. Com certeza esse malandro sabe que sou
solteira, moro sozinha. O pior é que me fez perder o melhor da série. O negócio
agora é ir dormir”...
−
Trim -trim - trim
Olha
o mostrador de chamadas: “Não é possível, nada consta outra vez! Com certeza esse
cara trabalha na operadora do celular. Sabe dos truques para não ser identificado”.
−Trim-trim-trim.
Flor atende:
−
Escute aqui seu canalha! Vai se meter com malandro do seu tamanho. Vou
denunciá-lo à operadora do celular, ela consegue rastrear seu número, pedir sua
demissão...
−
Desculpe, é que ainda não me habituei com o silêncio. Sinto saudades da vida,
de ouvir uma voz, e a sua é tão suave...
−Suave
você vai ver quando a polícia lhe puser a mão em cima! Agora mesmo faço pela
internet um “BO”. E é melhor parar de encher o saco, pois da próxima vez, quem
atende é meu marido! Mentir é válido em situações de emergência pensa Flor – e
desliga. Aciona o modo silencioso e o bloqueador de chamadas e, por via das
dúvidas, guarda o celular bem longe do quarto de dormir, na gaveta do armário
da cozinha, embaixo das toalhas de mesa.
Manhã
seguinte, ao passar em frente ao cemitério, Flor apressa o passo, olha fixo pra
frente buscando a entrada do edifício onde trabalha. Na mente ainda ecoa a voz
do gozador da noite anterior. Justo com ela, veterana de tantas lábias, a
maioria, por sinal, de muito mau gosto − dizem que os italianos são os reis das
cantadas, de quebrar o rebolado da mais séria feminista. Mas o que a intriga é
o celular não acusar o número de onde veio a chamada. Para testar se o aparelho
está ok, ligou para amigos pedindo retorno. Todas as ligações retornaram mostrando
os respectivos números de origem, inclusive as ligações feitas para
“desconhecidos”.
“Já
sei, pensa Flor! Vou contar o ocorrido a Inês durante a pausa do almoço, num
momento em que estivermos a sós − deus me livre se a galera do serviço fica
sabendo, será a maior gozação por cima de mim. Ela que é espirita, vive
recitando Alan Kardec, Chico Xavier e os poderes da mente, deve ter uma opinião
se é coisa do além ou de algum bundão mesmo...
Inês
ao ouvir o relato, solta gritinhos e dá pulinhos de alegria, abraça Flor com entusiasmo:
−
Está garantida querida, parabéns!
−
Como assim? Exclama Flor. Estou é ferrada, com esse sujeito me enchendo o saco
dia e noite, me pegando no pé. Já penso em trocar o número do celular. E
depois, como você sabe que é um espírito?
−
É a energia que eu sinto ao ouvir sua estória. Eu sou receptiva aos contatos do
além. Ele se enamorou de você. Está pedindo sua ajuda para quebrar um pouco sua
solidão. Vá visitá-lo, a administração do cemitério lhe informa, pelo dia e
hora do enterro, a localização do túmulo. Peça a ele, em troca das suas
visitas, para conduzir a seus braços o maridão que você quiser! – Mas cuidado! Não
exagere pedindo um “Brad Pitt” impossível. Ele vai lhe atender, vai usar o
poder que os espíritos têm de, através da mente, influenciar e conduzir as
pessoas. Depois, espírito que tem amor, é espírito dos bons, só quer fazer o
bem.
Ao
sentir hesitação na atitude de Flor, Inês insiste:
−Para
confirmar que é mesmo a voz de um espírito, confirma no próximo telefonema que
você irá visitá-lo. Esse gozador que está passando o trote, vai sugerir outro
local, pois, nenhum paquerador que se preze, vai sentir tesão na beira de um
túmulo...
−Trim,
trim, trim
−
Alô?
−
Quando você vem? Me ajude...
−
Ok, vou dar uma de alma amiga, estarei aí no intervalo do almoço...
Flor
aguarda a réplica, nada de contestação! Desliga, pensa: “Inês tem razão, é
mesmo um matusalém! E sai às pressas para contar a ela na sala ao lado:
−
Só tem um senão se ele me trazer o maridão! Vou ficar com dois amores: um real
e um do além − vou ser a própria “dona Flor e seus dois maridos”...
−
E você quer coisa melhor? Quando um não estiver a fim, manda “baixar” o outro.
E não se esqueça que espírito é invisível e não tem ciúmes – é muito prático! E
continua:
−
Depois, essa coisa de dizer que espírito é frio, distante, sem coração, é
conversa de corola carente. Por detrás do vulto é tudo igual, ou você não
conhece a estória do peixe-boi da Amazônia? A noite ele se transforma em belo
mancebo e sai a desvirginar donzelas faceiras...
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