O CADÁVER ESTAVA NU
Jeremias Moreira
O desenvolvimento do município veio a galope quando a Petrobras
instalou uma refinaria. Os royalties recebidos
da petroleira geraram progresso e entusiasmo, atraiu todo tipo de negócios e novos
moradores. A cidade cresceu. Expandiu até alcançar a divisa da Fazenda Primavera.
Afonso Camargo, o fazendeiro, um sujeito arrogante, perdulário, verdadeira raposa,
viu oportunidade na efervescência expansionista e fez um loteamento de parte das
suas terras. Exatamente a área onde havia um bosque, e onde o riacho, que cruza
a fazenda, formava um pequeno lago e uma água espraiada. Onde, também, a
garotada da região burlava a vigilância, e transformava o local em cenários de
suas brincadeiras. Nessas fantasias o bosque se transformava em floresta
habitada por animais selvagens, o laguinho, em mar infestado de destemidos
piratas e a prainha, em deserto, dominado por valentes beduínos.
Sem saberem que os dias de brincadeiras estavam contados e ninguém
querendo chegar por último e ser “a mulher do padre”, Pikachu, Tié, Sabará e Kindó
atravessaram o bosque como raios e saíram para o descampado do areal. Mal
chegaram, estancaram chocados.
Sob o sol escaldante, completamente nu e de bruços, jazia o
cadáver de um homem! Suas roupas estavam perfeitamente dobradas e depositadas
sobre os sapatos, ao lado.
Intrigante, o caso foi entregue ao delegado Sampaio, experiente
agente da capital. O corpo fora identificado como o de Afonso Camargo.
Na roupa, ao lado corpo, não havia nenhum tipo de sujeira ou
mancha e todos os pertences, como documentos, dinheiro e joias encontravam-se nos
bolsos.
Ele apresentava uma contusão na parte posterior do crânio
provocada por instrumento não pontiagudo. O relatório do legista apontou morte
por Trauma Crânio Encefálica. Afonso Camargo fora morto por uma forte pancada
que fraturou a parte posterior do seu crânio. E o fato ocorrera entre dez e doze
horas antes de as crianças o encontrarem.
O delegado Sampaio avaliou que estava diante de um caso
bastante complexo. Sentado em sua mesa, com o resultado da autópsia nas mãos,
fez uma série de anotações:
Primeiro: Afonso fora morto ali ou em outro lugar? Havia inúmeras
pegadas no local.
Segundo: O corpo estava nu e as roupas limpas. Ele fora
morto com ou sem roupa?
Terceiro: A casa mais próxima ficava a quatrocentos metros e
a do próprio, a mil e duzentos. Seu carro encontrava-se na garagem, sinal de
que não saíra. Como Afonso fora transportado para lá? E de onde? Vivo ou morto?
Quarto: O cadáver pesava oitenta e dois quilos. Quantos
homens seriam necessários para carregar alguém com esse peso?
Quinto: Ele tinha inimigos? Quem e quantos?
Sexto: Quem se beneficiaria com a morte de Afonso Camargo?
No decorrer das investigações o delegado descobriu que
Camargo fora casado três vezes e teve inúmeras amantes. Tinha um filho de cada
casamento e uma filha com uma das amantes. Portanto quatro filhos.
Depois de interrogá-los soube que era detestado por todos e que,
dele, só queriam o dinheiro. O mesmo sucedia com as ex-mulheres.
Esse era o grupo que tinha maior interesse na sua morte,
pois eram os herdeiros. Porém, todos apresentaram álibis consistentes e convincentes.
Mas, na sua longa carreira Sampaio aprendera a não descartar
qualquer possibilidade e checar tudo com muita paciência.
Dito e feito! Uma semana depois e algumas indagações descobriu
que o álibi de Cezinha, o filho mais velho, não batia.
Ele disse que estivera no Clube Imperial jogando cartas. Na
realidade ele passara por lá, mais ou menos na hora do crime. Saldara uma
dívida de quinze mil reais e fora embora.
Imediatamente Sampaio o deteve para averiguações. Após incessantes
interrogatórios, ele continuava negando, o fim, qualquer participação no crime.
Também se negava a dizer onde estivera.
Quatro dias depois, Sampaio foi procurado por Aurora Santoni,
jovem esposa de um comerciante da cidade. Ela testemunhou que tinha um caso com
Cezinha e que eles estiveram juntos na noite do crime. O dinheiro com que saldara
a dívida, fora ela quem emprestara. O silêncio de Cezinha tinha a finalidade de
preservá-la.
O caso voltava à estaca zero. A partir daí foi um marasmo
só. Nada levava a lugar nenhum! Passaram-se os dias, depois semanas e já estava
no terceiro mês e o delegado se decepcionava com a investigação que não saia do
lugar. Um mistério total!
Não sabia por quê, vira e mexe, a figura do Cezinha surgia
em sua mente. Mas, não fazia sentido. A mulher arriscara sua reputação, tanto
que o marido pedira o divórcio depois do seu testemunho. Então, o cara devia
estar limpo mesmo!
O delegado não se conformava em só patinar. Como não
conseguir avançar um milímetro, resolveu dar um passo para trás e ver se
encontrava alguma luz. Foi ao almoxarifado, dessa vez ele próprio, reexaminar as
roupas e os pertences de Afonso. Com extremo
cuidado, verificou as peças como se elas fossem capazes de segredar como os
fatos aconteceram. Funcionou! Escarafunchando o bolso do casaco percebeu um
pedaço descosturado. Forçou a mão pelo forro e deu com um ingresso de uma
partida de futsal para aquela noite, não usado.
O jogo acontecera próximo à hora da morte de Camargo. “Por que motivo ele comprou o ingresso e não
entrou no ginásio para assistir ao jogo?”
Não sabia em que esse ingresso ajudaria, mas, mesmo assim,
ficou furioso com a negligência do pessoal da perícia por não encontrar esta
evidência antes.
Depois partiu para os objetos. Havia uma carteira com
documentos e duzentos e vinte reais, divididos em três notas de cinquenta, três
de vinte e uma de dez. Um anel de ouro com uma pedra de rubi. Súbito teve um
estalo. Não havia relógio, nem celular. Como deixara passar isso? Agora ficou
furioso consigo. “Coisa de amador!”
Imediatamente saiu a campo e descobriu que Afonso Camargo possuía
um IPhone 4 e um relógio de pulso Cartier, de ouro. Um relógio valiosíssimo.
Sem perder tempo deu alerta para todas as delegacias questionando
se alguém, com um relógio Cartier, fora detido nos últimos três meses.
O ingresso para o futsal era para o jogo entre o Jabuca,
time local, contra uma equipe de Araçatuba. O bilheteiro do ginásio lembrava-se
de Afonso Camargo:
− Ele vinha sempre nos jogos do Jabuquinha!
Sampaio já se afastava quando o bilheteiro gritou:
− Ele comprou dois ingressos!
Dois ingressos, e onde estava o segundo ingresso? Quem
estava em sua companhia? Sua equipe interrogou dezenas de pessoas e ninguém viu
Camargo nas imediações do ginásio. Os ingressos não eram numerados, não tinha
como checar se a outra pessoa entrara.
No dia seguinte uma boa notícia - o centro de detenção de
Guarulhos dava positivo à consulta sobre o relógio. Pedro Cavalo e Zé Pelica,
bandidos perigosos, foram presos num assalto a banco, em Osasco, ocorrido há um
mês. Pedro Cavalo trazia um relógio Cartier, na ocasião do flagrante.
Sampaio foi a Guarulhos interrogá-los. Depois de um acordo
com a promotoria, abriram o bico. Foram contratados por um homem, ainda jovem, para
fazerem o serviço. A ideia de deixar o corpo nu fora do Zé Pelica. Achava que
assim confundiria a polícia.
O delegado mostrou uma foto do Cezinha e pimba! No alvo!
Aquele era o mandante do serviço.
O delegado prendeu Cezinha e, por intuição, Aurora Santoni,
também.
Foi ela quem deu o serviço.
De olho num polpudo resgate, Cezinha planejou um sequestro
do pai. A morte foi um acidente. Depois da fatalidade, deveriam enterrar o
corpo, mas os criminosos fizeram à maneira deles.
No mesmo dia, Cezinha, Aurora, Pedro Cavalo e Zé Pelica
foram indiciados pelo assassinato de Afonso Camargo.
Em seu relatório final Sampaio descreveu como se deu o
acontecido:
“Na noite do assassinato Cezar encontrou-se
com o pai no jogo de futsal. Depois do pai comprar os ingressos, Cezar o atraiu
até o carro, que estava atrás do ginásio. Lá, os bandidos atacaram. Pedro
Cavalo atingiu Camargo com um golpe na cabeça. Usou para isso uma barra de
ferro, mas empregou tanta força que fraturou
o crânio de Camargo e ele caiu morto. Cezar
entrou em pânico. Os bandidos controlaram a situação e ordenaram que levasse o
carro do pai para a casa dele e forjasse um álibi. Para isso ele foi ao Clube
pagar a dívida. Em seguida puseram o corpo no banco traseiro do carro e foram enterrá-lo.
Os dois avançaram demais, atravessaram o bosque e deram com o areal. Zé Pelica
teve a ideia de deixar o corpo nu sobre a areia. Não levaram o dinheiro imaginando
confundir a polícia. Quanto à participação de Aurora tudo indica que ela acreditava
tratar-se de uma simulação de sequestro. Foi ela quem providenciou o dinheiro
para Cezar pagar a dívida. Depois, com o resgate haveria muito dinheiro. Fazia
parte do plano dos dois, ela se divorciar e ficarem juntos.”
Depois de redigir o relatório Sampaio pensou na ironia da
situação e na lógica burra dos bandidos. Deixaram o dinheiro, difícil de ser rastreado
e levaram o relógio, a chave para a solução do caso.
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