PEGADAS NA AREIA - Suzana da Cunha Lima



PEGADAS NA AREIA
Suzana da Cunha Lima

Ainda dormindo, rolou na cama, buscando por ela,  mas seus braços só alcançaram o frio de um travesseiro vazio. Seus olhos piscaram e encontraram a luz vermelha do relógio informando que eram 5,30 da manhã. O que ela estaria fazendo a essa hora? Talvez com fome? Inquieto, olhou para o banheiro e logo depois  arrastou seus chinelos pela escada até a cozinha.

A casa silenciosa e até então escura, começava a  clarear com a luz e calor do sol entrando sem cerimônia pelas janelas.  Os pintassilgos vieram  alegremente buscar os farelos que ela deixava no peitoril. Uma brisa perpassou pela cortina de renda e fez o móbile gemer seu carrilhão. Ao longe já se podia ouvir os barulhos dos automóveis na rodovia.

Sorriu contente, tudo parecia normal,  menos a ausência dela. Abriu a porta dos fundos que dava direto na areia e viu seu vulto branco na orla do mar. Respirou aliviado. Ela era meio desligada, sua Luana amada, mas artista é assim mesmo, pensou. Tantas vezes falara que queria acordar cedo para ver o nascer do sol, que, finalmente chegara este dia. Lá estava ela, embevecida, apreciando seu momento.

Ponderou se valia a pena ir ao seu encontro,   mas havia muito sono ainda em seus olhos, resolveu voltar para a cama. Acordou mais tarde do que o normal  com o silêncio.  Silêncio pesado, fluindo por todos os espaços. Sentou-se inquieto na cama. Não a ouviu cantarolar como sempre fazia de manhã, ao preparar a refeição matinal, nem sentiu o cheiro de café subindo as escadas para acordá-lo. Tomou o remédio maquinalmente, e já apreensivo,  desceu e abriu a porta dos fundos,  colocando seus pés descalços na areia. Ela já não estava lá.

Andou até a orla, sentindo o frescor da água a lhe banhar os pés. Esticou os olhos até o horizonte, varrendo todas as possibilidades e ela não se encontrava em nenhuma delas. As gaivotas voavam em elaboradas manobras riscando o azul do céu. A natureza permanecia indiferente à  sua crescente aflição.  As pequenas casas de veraneio daquele balneário eram distantes umas das outras e ele não conhecia nenhum v izinho. Não havia ninguém na praia àquela hora.  Voltou para a casa quase correndo na areia fofa, pensando o que fazer, em telefonar para a polícia, para alguém...

Mas não chegou a entrar, cambaleou, levou a mão ao peito e caiu. E ali ficou inerte, um boneco desarticulado, de olhos espantados.

O delegado chegou com dois investigadores. Mandou-os interditar a casa e buscar indícios ou pistas ao redor. Havia pegadas na areia. Telefonou para a perícia e se dirigiu às duas pessoas sentadas na varanda. Perguntou o nome a  um senhor bem apessoado, na casa dos cinquenta, sentado junto à mulher no banco. Nelson, respondeu ele, esclarecendo que era vizinho e que Luana estivera na casa dele completamente histérica pedindo ajuda. Não sabia o que tinha havido,  assim resolvera acompanhá-la, visto ser grande a distancia de uma casa para outra..  Logo que chegara, havia percebido que o marido estava morto, então resolvera telefonar logo para a polícia.  Só entrara na cozinha para pegar um copo de água para Luana, depois haviam se sentado para esperar.

Fez muito bem, assentiu o delegado. Tinha notado algo diferente na cozinha, coisas espalhadas no chão ou fora do lugar? Nelson assegurou-lhe que tudo estava como devia estar, só havia pegado o copo e água do filtro e veio logo acalmar a senhora, que estava fora de si.

O delegado resolveu interpelar  a mulher, que parecia mais calma. - Onde estivera até àquela hora? A mulher soluçou um pouco, era bem bonita, notou o delegado, vestida simplesmente uma curta camisola branca, deixando à mostra suas belas pernas bronzeadas. Contou que havia saído bem cedo para visitar o velho farol,  porque haviam lhe dito que o nascer do sol daquele ponto era espetacular. Quando voltara, o marido estava no chão, o olhar morto, a fisionomia crispada.

O que ele havia comido ao jantar? Era doente, cardíaco ou diabético? Haviam brigado, discutido, se irritado um com o outro?

Ela abanou a cabeça, tristemente. - A gente se dava muito bem, delegado. Ele era muito saudável, corria pela praia inteira de manhã e ainda nadava um pouco antes do jantar… - ela tentava segurar os olhos pesados de lágrimas àquelas lembranças.

— O que faziam aqui, neste lugar tão acanhado? - Tiramos duas semanas de férias, eu precisava de paz para compor e ensaiar. – A senhora é artista?- Sim, sim, respondia tentando não chorar. – Violão, explicou em voz baixa. – um silêncio pesado - Tenho um show para daqui a duas semanas.  

 O detetive mandou os investigadores darem uma vistoria na casa. Os peritos chegaram e se encarregaram do corpo, das pegadas na areia e tudo mais que parecia lhes interessar. O delegado entrou na casa e buscou a cozinha. Tudo arrumado, no seu lugar. Não havia louça para lavar. Pelo visto, ninguém tomara café da manhã.  A sala era bem ampla e dava para a varanda em frente ao mar. Subiu ao primeiro andar, havia apenas dois quartos. Um bem pequeno, com uma mesa cheia de partituras, o violão encostado num canto. E outro bem maior, ligado a um banheiro enorme com hidromassagem. 

A mulher o acompanhava e ia respondendo às suas perguntas. - Que remédios ele tomava? - Apenas um remédio para a tireoide, logo cedo, em jejum.  E algumas vitaminas. - Ele examinou as mesinhas de cabeceira e viu o vidro do remédio, em cima de uma receita.

Perguntou se era o tal remédio e ela assentiu.  Vou levar para examinar, não se preocupe, é rotina. Tem o telefone do médico dele?

 Está aí, na receita, informou ela. 

 E seu marido fazia o quê?

—  Era meu agente, respondeu.

Vivia à custa dela, pensou Castro e começou a ficar aborrecido consigo mesmo porque a estava tratando como uma criminosa. A mulher tinha acabado de perder o marido, poxa! Jovem, bonita, artista, se preparando para um show. Um casal bonito, saudável. - Onde você está com a cabeça, homem? Isto é investigação de rotina, você não está mais nos Homicídios. Resolveu abrandar o tom de voz e ser mais gentil.

   Depois que viu o corpo a senhora subiu? - Não senhor, nem entrei em casa, fiquei com medo. Corri para o meu vizinho mais próximo, Dr.Nelson e pedi ajuda, não sabia o que fazer.

 O delegado concordou: Uma esticada e tanto, não é? Mas fez muito bem, já conversei com ele. - Deu outra olhada em tudo, na vista magnífica que se via do janelão do quarto, pensando nas injustiças da vida. O casal alugara aquela linda casinha somente para a mulher poder compor sua música em paz. Quer fato mais idílico? E ele morre estupidamente, certamente de coração.  Suspirou - Desculpe se estou sendo rude, senhora e por fazer tantas perguntas, é parte de meu trabalho.

 Eu entendo, disse ela no meio de um soluço comprido e pegou um lencinho de papel na cabeceira da cama para enxugar os olhos: posso? Aquilo o comoveu: Claro, senhora. Bom, não posso deixá-la sozinha aqui, vou levá-la à cidade. A Pensão de d.Rosita é um bom lugar, tem telefone e internet.  É melhor se vestir e pegue também algumas roupas. Lá vai ficar bem e aproveite para tomar algumas providências, chamar alguém para lhe ajudar nisso, parentes, amigos, não sei. Só sei que a senhora vai atravessar uma fase bem difícil. Logo vão liberar o corpo de seu marido. Tudo faz crer que foi um ataque cardíaco fulminante. Isso acontece muito, mesmo em pessoas saudáveis e esportistas. E conte conosco e com a Equipe para qualquer coisa. - Desceram e ele reuniu os homens para irem embora.

Entrou no final da tarde na delegacia pressentindo que aquela investigação ia levar a nada. Uma semana depois, a sensação de ter esquecido algo, ou não observado algum detalhe começou a lhe perturbar. Vício talvez do tempo que passara só investigando crimes e ocorrências funestas.

Chamou Leôncio, seu investigador. - Havia notado algo diferente naquela situação? A mulher sair da cama e ir de camisola e descalça até o forte, que ficava a um quilômetro daquela casa para ver o nascer do sol? Sem avisar nada ao marido? A hora da morte foi calculada entre 10,00 e 11 horas da manhã. Ela já devia ter voltado.  Onde havia ficado este tempo todo? Certamente não no velho forte, carcomido pelo tempo, sem nenhum atrativo maior do que ver nascer o sol, que durava no máximo uma hora.

Estivera na casa de alguém? Havia algo entre ela e o Dr.Nelson? Por que escolhera logo a casa dele que ficava tão distante? Reparara que ele não era casado e a tratava de Luana. Entrara na cozinha dela com desenvoltura como se a isso estivesse acostumado. – estacou, lembrando algo: ele disse que levou um copo de água para ela, não foi? E não entrou mais na casa. E onde estava esse copo? Na cozinha não havia nenhuma louça aparente. – O que você acha, Leôncio? 

— Doutor, quem sabe ela largou o copo lá na mesa da varanda ou no chão, ela é muito informal. E a necropsia deu morte por causa desconhecida, um infarto. Nada que sugerisse substâncias venenosas ou ilícitas. E o remédio era para tireoide mesmo e foi o que deu na análise dos comprimidos. - suspirou aborrecido.

— Porque ela escolheu a casa do Dr.Nelson?  Vai ver que naquela aflição foi a única que ela viu que lhe pareceu mais perto. É difícil calcular distância na areia batida de sol, o senhor sabe.

— Eu sei que não existem coincidências em situações de crime, isso sim. Algo para mim está soando muito mal. Se fosse na Homicídios a gente ia investigar direitinho o dr.Nelson, e o suposto show dela, as finanças do casal, se haveria seguro de vida, estas coisas. Passava um pente fino em tudo. Ah, Leôncio, você nem imagina o que se descobre nestas investigações. – reclamou o delegado sentindo-se impotente e tolo.

— Os exames não revelaram nada, Dr. Castro. Leôncio estava ficando impaciente com aquela obsessão do delegado. - Não foi comida, não foi veneno.  Teve um ataque cardíaco fulminante e pronto. Mulher sair sem avisar é mais comum do que parece, doutor. Vai ver não queria acordar ele, ou queria que fosse um momento só dela. Cada casal tem sua própria dinâmica. Nada daquilo que o senhor falou agora é crime, nem um vizinho solícito é um cúmplice ou um amante. Vamos encerrar o caso e tratar dos outros.   

— Está certo Leôncio.  Mas somos detetives, nós dois. A gente consegue ver além do que aparenta normalidade. Pode ser que seja viez da profissão, pode ser, a gente desconfia de tudo mesmo.

— Doutor, somos bem poucos aqui, neste balneário, porque nada quase acontece. O chefão perguntou o que deu isso tudo e já tem coisa para a gente investigar. Bebedeira no bar do Tonhão, com muita pancadaria. É a nossa realidade, Dr.Castro.

O processo foi fechado dando “causa mortis” desconhecida, o corpo cremado, Luana foi-se embora. O tempo passou. Semanas depois, em Juquei,  jantando com a família, no final das férias, Leôncio avistou o Dr. Nelson com uma bela mulher ao lado,  num cantinho do restaurante, bem amorosos um com o outro.

Logo reconheceu os dois e filosofou: uma mulher daquelas não ia ficar sozinha muito tempo mesmo. E ele deve tê-la ajudado a passar aquele momento difícil.  Muito natural estarem juntos. - Buscou a carteira e o celular, enquanto pedia a conta. - Bem, volto ao batente amanhã, mas vou já passar um whatsapp para o Castro, ele é capaz de ficar apoplético quando eu contar que vi os dois pombinhos juntos.

Ligou o celular de trabalho, desligado no tempo de férias, e ficou estarrecido com o que leu. Era uma mensagem do Dr.Castro e estava ali há dias.  Ele informava que lera numa revista científica, que havia sido descoberto, já há alguns meses que um isótopo especial agindo como catalisador,  colocado dentro de um comprimido, provocava morte em meia hora no máximo, como se fosse um ataque do coração e não deixava rastros. E um comentário dele: Eu não disse que ali havia coisa?


Leôncio pensou: Um isótopo! Acho que Dr. Castro não vai deixar aqueles dois em paz, não. Mesmo que o caso esteja encerrado e o corpo cremado, vai mandar fazer uma varredura completa na vida do casal – vá que houvesse mesmo um seguro de vida?  E na do Dr. Nelson. Ele era médico do que mesmo? 

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