NÃO
ERA NOITE, NÃO ERA DIA
Oswaldo U. Lopes
Hoje Jorge Antônio estava em casa, tentava ler
sentado na poltrona favorita, mas o pensamento insistia em ir lá para trás,
para o ano de 1967. Mês, o de novembro, dia quinze.
Embora jovem era um assistente respeitado. Muito
respeitado! Apesar de sua aversão ao militarismo, todos diziam que era reconhecido
pela sua capacidade de assumir e de fazer as coisas e não de mandar à
distância. Não designava patrulhas, comandava patrulhas.
Quinze de novembro foi um feriado morno, caiu numa
quarta-feira e não deu emenda para nenhum lado. Como sempre não ligou para
isso, encarava o trabalho com amor e convicto de que tinha gente que ia
precisar dele.
O III Festival de música popular da Record mal
acabara no mês de outubro e ele ficara com aquela música na cabeça:
MARIA CARNAVAL E CINZAS, cujo fragmento em especial lhe tocava fundo:
“Não era
noite, não era dia”
Nem todos lembram com clareza, mas os ditos anos de
chumbo começaram mesmo em 1968. Não se trata de desculpar os militares e seus
asseclas, Jorge Antônio não era homem para isso. Estivera até preso por
socorrer feridos da assim chamada guerrilha e passara por momentos tristes e
inesquecíveis, mas o conjunto histórico deve ser preservado. A ditabranda
existiu entre 1964 e 1968, há inclusive registros dos festivais da Record em
que se vê um Chico Buarque, menino ainda falando e dando entrevistas.
Entre os jurados desse festival havia nomes como:
Chico Anísio, Sandino Hohagen, Júlio Medaglia, Roberto
Corte Real, Raul Duarte, Ferreira Gullar, Tereza Aragão, Carlos Manga, Roberto
Freire, Luís Guedes, Carlos Vergueiro, Sebastião Bastos, Franco Paulino, Sergio
Cabral, Salomão Schwartzmann.
Tem muita gente que considera aquele festival um
ponto muito importante de flexão na chamada MPB, música popular brasileira.
Havia certo conflito entre a música chamada do yeyeye e os autores ditos de música
brasileira mesmo.
Só
para lembrar as quatro primeiras vencedoras do festival foram:
PONTEIO – Edu lobo
DOMINGO NO PARQUE – Gilberto
gil
RODA VIVA - Chico Buarque
ALEGRIA, ALEGRIA –
Caetano Veloso
A quinta foi a favorita de Jorge Antônio: Maria
Carnaval e Cinzas. Foi nesse festival que Sergio Ricardo jogou o violão na
plateia.
Para tentar amenizar a briga da turma do yeyeye com
os jovens universitários patriotas intransigentes, Roberto Carlos foi convidado
para interpretar a musica de Luís Carlos Paraná, já famoso boêmio da época e
dono de bares que marcaram época.
De uma parte disso lembrava Jorge Antônio, sentado
na poltrona, de outras aprendera no decorrer dos anos. Que Luís Carlos Paraná
morrera em 1970 vitima de cirrose hepática, devida à boemia? Talvez. Em 1970
quando ele faleceu a censura já era brava.
Porque a música o tocara tanto pensava Jorge Antônio?
Não era noite, não era dia, só madrugada
só fantasia. Era naquela hora entre noite e dia, madrugada no bairro de
Pinheiros que o médico fazia a contabilidade do plantão que passava.
Com o feriado aumentara o número de bêbados. Havia
um costume que nunca entendera direito. Na quase totalidade os homens não
usavam cueca, mas um calção, de modo que ao serem despidos para tratamento de
eventuais ferimentos e equimoses restava o tal calção. Em geral ficavam
curtindo a bebedeira deitados numa maca, só de calção. Devido às noites
tipicamente frias de São Paulo eles puxavam o lençol acima da cabeça. Era
também uma maneira de evitar passar vergonha se algum conhecido aparecesse.
Naquele tempo coincidira a mudança do capelão do
HC. Jorge Antônio conhecera bem o velho capelão. Gostava muito de subir ao 10º
andar e meditar ou rezar como queiram no interior da capela que considerava de
incrível beleza na sua simplicidade.
O velho capelão se aposentara e fora substituído
pelos jovens padres camilianos que como todos sabem são especializados em
doentes e hospitais. Dai começaram incríveis brincadeiras. Eles chegavam ao
pronto-socorro e perguntavam ingenuamente:
— Tem algo para mim, como se fossem especialistas
procurando um caso de tórax ou cirurgia plástica, a resposta era invariável.
— João (técnico de enfermagem) vê se tem algum
moribundo para o Padre Juvenal?
Eles passaram então a evitar a pergunta e muitas
vezes como os mortos eram recobertos pelos lençóis, simplesmente levantavam a
coberta e começavam a benção dos moribundos usando a água benta que levavam num
frasco portátil. Às vezes faziam o ritual num pobre bêbado que acordava com
aquela chuva de água e orações e tomava um susto danado.
Fora o que vira Jorge Antônio lá pela meia-noite. O
bêbado achando que estava nas portas do céu ou do inferno, levantou-se
assustadíssimo e passou correndo em direção à porta só de calção, e nunca mais
foi visto. Susto também cura bebedeira.
O que mais registrara a sua contabilidade, duas
facadas que resultaram em ser necessária uma laparotomia exploradora. Um
ferimento por arma de fogo que também foi para o centro cirúrgico e dois casos
de dor abdominal que estavam em observação.
Ainda tinha o inferno do PSO. Pronto Socorro de
Obstetrícia que lidava com cem casos de aborto para um realmente de
obstetrícia. Queria que um desses padres
anti-aborto ou um desses crentes da
mesma espécie passassem uma noite naquele cubículo vendo e ouvindo as histórias
mais tristes que se possa imaginar. Ele tinha um “quê” cativante que fazia as
pessoas de imediato confiarem nele e abrirem corações contando tudo tintim por
tintim. Naquele tempo de triste memória aborto era crime e uma história de
aborto deliberadamente praticado resultava em processo em que o investigador de
plantão começava o romance e a coisa ia até o juiz que podia ser um carola
empedernido e considerar a mulher culpada.
Ouvira coisas de arrepiar gente, como ele, muito,
mais muito experiente. Histórias de quartinhos mal arejados, agulhas de tricô
ou crochê, cabides entortados, nenhuma palavra de conforto e a observação
final:
— Se sangrar muito vai para o HC e diz que foi
espontâneo. Não conta nada senão você acaba presa.
Queria ver Jesus ali rodeado de gente simples e
talvez até pecadora, mas precisando de conforto e não de lições de moral. Gente
pobre e sofrida carregando sua cruz naquele Gólgota imenso e cheirando
desinfetante. Era naquele lusco-fusco que não era noite não era dia que se
juntavam as perdidas, os bêbados, os valentões, as putas esperando conforto e
não sermão.
E olha que 1967 foi de pegar leve. 1968 era o ano
para entrar na história. A primeira queima de sutiãs pelas feministas, a
saudação de pantera-negras feita por John Carlos e Tommie Smith na olimpíada do
México. O discurso de Marcio Moreira Alves sobre as comemorações de setembro e
por fim o verdadeiro estupro que foi o AI-5. Ia começas a noite sem fim da
ditadura.
Mas, era 15 de novembro de 1967, feriado numa
quarta-feira e Jorge Antônio repassava o plantão:
Não era noite, não era dia
Só madrugada, só fantasia
Somente restos de fantasia
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