UMA MARIA POBRE
Oswaldo U. Lopes
Maria era uma mulher pobre, muito
pobre não seria exagero. Vivia com e como os “povos de rua”, mas era um pouco
diferente ou muito diferente dependendo do olhar do observador. Não porque não
tivesse família, tinha e era de classe média alta o que acarretava a existência
de parentes que, no entanto nunca via, como alias muitos dos que constituem os
povos de rua. Não falava deles de modo a se subentender que não os procurava
nem ansiava por vê-los.
Não
tivera filhos e era implícito que não mais poderia te-los; tivera, isso sim, uma educação
do tipo que chamaríamos esmerada,
primorosa. Lera, entre muitos outros, Machado de Assis e como ele poderia
dizer: “não leguei a ninguém minha miséria nem minha angústia abissal.”
Maria
era então pobre, singular, maltrapilha e convivia com os povos de rua. Conviver
é uma boa palavra, pois, implica em viver com, viver junto, andar em grupo. Não implica
partilhar, pertencer ou solidarizar-se, pelo contrário, era viver em solidão
andando em bando. Até
ai temos uma mulher chamada Maria, pobre e que vivia na rua com outros
semelhantes. Como eles era errante, indo de uma parte da cidade a outra,
dormindo ao relento ou embaixo de viadutos, pouco falando de si ou de seu
passado que , no entanto, brotava de observações e gestos que fazia como que a
lembrar que a aniquilação total só viria com a morte.
Bem
agora Maria esta ficando diferente, única. Mas, como diferente? Seus
companheiros de caminhada viviam ensimesmados, por vezes, muitas vezes, falando
sozinhos, demonstrando pouco ou nenhuns apreço pelos circunstantes, mesmo para
com aqueles que os ajudavam. Maria, torno a repetir, era diferente,
interessava-se pelas pessoas, fossem elas povos de rua, gente que ajudava,
gente que atrapalhava, gente que distribuía sopa ou simplesmente gente que
passava.
Tinha
o dom ou traço do calor humano. Sabia olhar as pessoas e ver nelas o positivo
que havia na sua condição de ser único, miserável ou glorioso. Ela era
diferente porque falava e enxergava esses traços, mesmo quando nada parecia
aflorar daqueles passantes.
Mistério
intrigante? Farrapos errantes que ondulavam sem nexo? Milagre das vestes de
estopa e aniagem? Não! No mundo da miséria os milagres são raros. Maria era de
classe média abastada, bem nascida e bem criada, estudara muito e fora aluna
brilhante de psicologia. Formara-se com louvor e elogios pela sua intuição
clínica e capacidade de observação.
Tivera, como profissional, atuação marcante e rapidamente distinguira-se dos
colegas de mesma idade. Até o nome não era simplesmente Maria, era Maria
Eugenia.
O
mistério não era sua capacidade de entender e falar com as pessoas, de ver
nelas aspectos tão bonitos e positivos. O mistério era porque se tornara povo
de rua.
O
MISTÉRIO DE MARIA
Maria Eugenia era psicóloga clínica
respeitada e atuante, com reputação consolidada no que fizera e futuro
promissor no que prometia fazer. Desde o curso na PUC, manifestara muito
interesse pelos jovens e pelas questões de gênero. Essas questões que hoje frequentam as primeiras páginas e as manchetes não eram assim tão faladas num
tempo que já se fez antigo. Maria ainda lembrava de uma matéria que lera,
quando era aluna, na revista Realidade e que versava sobre: “Há 17 sexos qual é
o seu?”
Essas
questões de gênero a encaminharam, para não dizer a empurraram para os
adolescentes que desde sempre buscam sua identidade ou identificação, na
feminilidade ou na masculinidade ou no intervalo dos 17 sexos. A expressão
bullying (do inglês bully = valentão, esta hoje disseminada entre nós e logo
estará nos dicionários; poderia ser trocada por assédio, mas o vocábulo inglês
já ficou corriqueiro), não era ainda de uso corrente, mas sua prática era comum
como, alias sempre foi na história da humanidade.
O
mistério de Maria tinha nome, sobrenome, endereço, CPF e RG. Chamava-se Joaquim
de Sanctis Tavares, morava no Jardim Paulista, como Maria era de classe média
abastada e como tal já fora a Dysneilândia e por ter passaporte tinha também
CPF e RG. Tinha traços muito bonitos, quase femininos e ali nascia o problema
ou os problemas. Era o quarto irmão de três irmãs mais velhas e por tanto
rodeado de belas roupas, tecidos suaves e sensuais. Já se arriscara a olhar no
espelho com as roupas da mãe e já fora surpreendido pelas irmãs. A coisa brotou, para desespero do pai que
queria um filho másculo e promiscuo e via um jovem tímido e de finos traços.
Renegado
pelo pai, Joaquim mais e mais se internizava, fugindo de todos e de tudo.
Colocado num colégio só de meninos o bullying começara e tornara-se violento.
Por sugestão de amigas a mãe o encaminhou para Maria Eugenia. Gostava de ir e
gostava dela. Maria Eugenia achava que Joaquim não tinha nada de bicha, apenas
era um adorador, admirador das mulheres. Seria um eterno gostador e amador delas,
seus hábitos suas roupas e seus gestos.
Algo,
porém deu errado. As relações com o pai azedaram de vez e o cerco no colégio
descambou para a brutalidade. Joaquim voltou para casa de roupa rasgada e olho inchado. Não suportando
tanta pressão, buscou uma corda da cortina e enforcou-se pendurado no lustre do
quarto.
Mareia
Eugenia recebera a noticia em
casa. Em verdadeiro estado de choque saiu pela porta com a
roupa que estava. Nunca mais voltou nem para casa nem para o consultório.
Recuperou aos poucos a consciência e seus sentimentos mais íntimos, mas tentou
e tentava apagar tudo. Tornara-se a Maria dos povos de rua.
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