Mulher Sentada Cadeira Espelho Pintor Johnson
Escambo
Ises de Almeida Abrahamsohn
De uma citação de Thomas
Mann – em “José e seus irmãos”
Lisboa,
março de 1946. Pela terceira vez eu entrava no casarão na Baixa, sede do Serviço
de Inteligência dos aliados. Buscava a autorização para embarcar de volta ao
Brasil. Na ultima vez um arrogante coronel inglês reteve meu passaporte, já com o visto brasileiro. Nas
entrevistas ele não ocultara a suspeita de que eu era uma espiã alemã tentando
escapar. Esperei a chamada pelo nome e um soldado escoltou-me pela longa escada
e corredor assoalhados de madeira escura. "Espere
aqui, o coronel chegará em alguns minutos" disse, indicando a cadeira
à frente da enorme escrivaninha no escritório vazio.
Voltei a
pensar que uma vez mais poderiam adiar ou mesmo negar a autorização. A demora
do coronel seria de mau agouro? Eu já tinha a passagem para um navio que
zarparia em uma semana. No silencio do casarão começou a infiltrar-se no meu
cérebro o ruído de passos subindo as escadas: tat/tat/ta-tá; tat/tat/ta-tá. A memória me levou ao passado ..... Eu já
ouvira alguma vez aquele pisar compassado.
Era em
outro pós-guerra, 1923. Vinte e três
anos antes em Essen, onde morávamos sob a ocupação pelo exercito francês. As cenas, qual filme, surgiram em meu cérebro.
A campainha da porta soando estridente... O soldado francês ordenando em alemão
que abrissem a porta e forçando o seu corpanzil para dentro do vestíbulo. Minha
mãe, miúda, frente ao oficial que lhe recitava em francês: "em nome das forças de ocupação eu requisito
esta casa para moradia..."
Mamãe, respondendo-lhe em francês algo como: "Oui, Monsieur Captain, já que
não nos resta alternativa, vamos tentar acertar uma convivência sem atritos".
O jovem oficial estabeleceu que ocuparia um
quarto e a mansarda era para o ordenança. Este prepararia as refeições na nossa
cozinha; o banheiro seria ocupado aos sábados pela manhã. Durante os seis meses
de ocupação francesa no vale do Ruhr, convivemos com o capitão Etienne Monget
oriundo de Andernay na Lorena, filho de um médico do exército. Era muito alto,
teria uns 28 anos e ostentava um pequeno bigode castanho bem cuidado. Era um
homem bastante atraente, mas tinha a perna esquerda mais curta; a pesada bota
corretiva o fazia mancar com um andamento musical em compasso ternário: tat/tat/ta-tá, tat/tat/ta-tá, mais acentuado
ao galgar as escadas.
A
alimentação racionada do pós-guerra era um problema para todos. Nossa família
conseguia algo extra de um sítio onde havia algumas cabras e galinhas e uma horta. Manteiga ou queijo, só no mercado
negro. Por outro lado, os oficiais franceses recebiam farta ração de queijo,
manteiga e vinho, mas quase nenhum alimento fresco. Logo na segunda semana o
capitão, ao ver o nosso horrível desjejum de margarina e chicória sugeriu que seu
ordenança poderia "arrumar” alguma manteiga. Estabeleceu-se a partir daí, entre
mamãe e o ordenança, um escambo entre ovos e verduras negociados por manteiga e
queijos.
Ao final da
ocupação, o jovem capitão se despediu polidamente e nunca mais ouvimos falar
dele.
O ruído da
porta do escritório acordou-me da viagem ao passado. Levantei-me e cumprimentei
em inglês com um genérico "Bom dia,
coronel" . Era ele mesmo, ainda muito atraente e tinha ainda o mesmo
bigodinho agora levemente grisalho. Não me reconheceu. Sentou-se e em português
com forte sotaque comentou: Cá está o seu
dossiê, vamos ver... Deseja embarcar para o Brasil.... Após alguns minutos, disse em voz alta,
primeiro em francês: "profond est le
puits du passé". A seguir, em
um português algo hesitante: "profundo
é o poço do passado" como escreveu o seu conterrâneo, Mademoiselle
Fest. E acrescentou meio sorrindo: Troco meio queijo Munster por meia dúzia de
ovos.
Saí de lá
com a minha autorização de embarque assinada pelo Coronel Monget, membro do
comando francês no escritório das forças aliadas em Portugal.
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