O enigma do manuscrito do inconfidente Aires Gomes
Ises de Almeida Abrahamsohn
(Conto vencedor o I CONCURSO LITERÁRIO ESCRVIVER –
2017)
Eu gosto muito de ler
romances históricos. Também adoro histórias de mistério e crimes. Durante as
ultimas férias aconteceu algo inesperado que, sem dúvida, ajudou na decisão de
me tornar historiadora.
Eu tinha pela frente quatro
semanas sem escola e sem muito que fazer. Algumas amigas minhas iam viajar para
comemorar os aniversários de quinze anos. Mas em casa a situação estava
complicada. Não havia grana para viajar, nem para uma excursão a Santos. Quando
minha tia perguntou se eu queria ir junto para uma fazenda no interior de Minas
aceitei na hora. Foi meio por falta de opção, mas também porque essa tia é
super legal e a gente nunca se chateia na companhia dela. Minha mãe diz que ela
é uma pessoa não convencional. O que ela quer dizer é que Rosália - eu a chamo
de Rosa - tem maneiras diferentes de pensar e olhar as coisas e, além disso, é
muito independente e curiosa. Acho mesmo que a mãe inveja um pouco a irmã
caçula.
Tia Rosália se formou
em história, mas o que ela faz para ganhar dinheiro é escrever biografias de
outras pessoas. É por essa razão que nós vamos passar uma semana na fazenda
Borda do Campo. A fazenda fica em Antônio Carlos, a umas duas horas de carro de
Belo Horizonte. A Rosa vai escrever a história de família de um tal de José
Aires Gomes. Era um fazendeiro rico que participou da Inconfidência ou
Conjuração Mineira. Eu e a maior parte das pessoas nunca ouvimos falar dele na
escola. Mas os conjurados, incluindo Tiradentes, costumavam se reunir na
fazenda de sua propriedade. Ele, apesar de rico, também se revoltava contra o
aumento dos impostos cobrados por Portugal. Quando a conjuração foi descoberta,
o Aires Gomes foi condenado ao degredo por toda a vida em Angola, mas depois a
pena foi mudada para oito anos de prisão em Moçambique e lá ele morreu. Suas propriedades
foram tomadas pela Coroa portuguesa, mas a mulher, que ainda tinha ficado com
muito dinheiro, conseguiu reaver a fazenda quando foi posta em leilão. Pois é
para essa fazenda que nós fomos e a Rosa explicou que na biblioteca ainda havia
muitos documentos, cartas, álbuns etc. dos vários membros da família. Ela
precisava de ajuda na pesquisa do material.
O lugar é muito
bonito. A fazenda agora é dos Andradas, um ramo dos descendentes do Aires
Gomes. Quem nos recebeu foi dona Inácia Andradas. Aliás, Inácia era o nome da
mulher do inconfidente. Ficamos hospedadas na própria casa da fazenda, bem
conservada e com muita mobília antiga. Tudo em volta era muito bem cuidado e a
varanda dava para um lindo jardim. O administrador nos levou para uma volta
pela fazenda. Ainda há muita mata e pelo menos duas cachoeiras e umas prainhas
de rio. E muitas árvores com flores nos caminhos. O nosso guia foi dizendo os
nomes: acácia, paineira, mulungu, jacarandá-mimoso e outras cujo nome não
guardei.
Logo no dia seguinte
começamos a trabalhar na biblioteca. Era bem grande e três paredes eram só de
estantes do chão até o teto. As estantes eram de jacarandá maciço com portas de
vidro jateado formando um lindo desenho de flores, como explicou a Rosa. No
centro da sala havia uma grande mesa da mesma madeira e defronte à janela uma
escrivaninha antiga escura enfeitada com pequenas plaquinhas brancas. A Rosa me
explicou que é um trabalho de marchetaria com marfim e o móvel é muito
precioso. É cheio de pequenas gavetas, nichos e deve ter compartimentos secretos.
Uma maravilha! Um dia, quando eu ficar rica, terei uma igual.
Dona Inácia nos indicou onde estavam os livros e o
material que interessava. Grande parte das estantes era ocupada por livros de
direito, filosofia e medicina e romances do século XIX e XX, a maioria
encadernada. Eu tinha esperança de achar ali ainda algum livro raro ou
documento de valor, mas D. Inácia me desiludiu.
̶ O pessoal do
patrimônio fez pente fino aqui, menina. Não tem mais nada de valor. O que tinha,
está no museu em Ouro Preto.
Todos os dias depois
do café íamos para a biblioteca. Havia algumas árvores genealógicas escritas à
mão que nós fotografamos e, com a lista dos descendentes do Aires Gomes, o
trabalho era procurar fatos da vida dessas pessoas nas cartas, diários e álbuns
de fotos ou recortes guardados. Nas tardes a Rosa fazia sessões de entrevista com
dona Inácia ou organizava o material da família e eu ficava livre para passear
e tomar banho de cachoeira. Fomos a Ouro Preto numa tarde pesquisar no museu e
nos arquivos do jornal.
No dia antes do
retorno a São Paulo aconteceu algo incrível. Estava chovendo e eu estava
sentada à escrivaninha folheando uns livros da estante. Foi quando notei que
uma das gavetinhas do lado direito estava meio torta. Puxei e ela deslizou para
minha mão mostrando atrás uma placa de madeira. A gaveta estava vazia como
todas as outras, mas era mais curta que a de cima. Empurrei a plaquinha que se deslocou
para baixo e sim, lá estava um compartimento secreto. Enfiei o braço até o
fundo e percebi um papel endurecido. Meu coração começou a bater rápido enquanto
pensava que podia ter descoberto algo muito importante.
Era um rolo de papel de cor amarelada. Chamei a Rosa
que ficou como que paralisada de emoção quando viu o papel.
̶ É..., É... Papel
de trapos, século XVIII ou de antes, menina, gaguejou, meio siderada. Acho que
você encontrou algo importante.
Delicadamente fomos desenrolando a folha. Estava
coberta de palavras em escrita miúda e tinta desbotada em uma língua que Rosa
no primeiro momento não reconheceu. Foi buscar a lupa e depois de alguns
minutos exclamou:
̶ Está escrito
em tupi, o que é muito estranho. As pessoas letradas escreviam em português ou
francês, mas não na língua de índios. Por que escreveriam um documento tão
longo em tupi e, ademais, foi cuidadosamente escondido. Eu não conheço tupi,
mas aqui tem uma palavra que eu conheço: amanda que significa chuva e outra,
olhe na linha seguinte, amberê que é lagartixa. Está vendo? Espalhados na
página há vários nomes de bichos: jacu, jaboti, irara, mandi. Só que eu acho
que não tem nada a ver com bichos. Escondido assim como estava, deve ter sido
escrito em código e em tupi para que, se caísse em outras mãos, não seria
entendido. Precisamos avisar D. Inácia.
A fazendeira, incrédula, veio ver o meu achado.
̶ Menina, isso deve ter alguma importância.
Precisamos encaminhar ao pessoal do museu. É o que tem que ser feito. Não vale
dinheiro, mas tem valor histórico.
Bem, eu já suspeitava disso. Combinamos que, no dia seguinte, a caminho
de São Paulo, levaríamos o precioso papel a Ouro Preto. Lá o nosso achado fez o
maior sucesso. De fato, estava escrito em tupi e ainda demoraria para os especialistas
conseguirem decifrar o texto.
Em agosto, eu retomei a minha vidinha de sempre. Escola de manhã, estudo,
inglês e treino de vôlei. Ligava para Rosa, mas ela não tinha noticias do
pessoal do museu. Eu não falei nada na escola sobre o meu achado. Estava
esperando decifrarem o código para depois contar tudo. No final de setembro a
Rosa me ligou com a notícia.
̶ Enfim sabemos o que está lá escrito. Os nomes
de bichos de fato são códigos dos participantes da conjuração. Tiradentes era
jacaré e o Aires Gomes era Poti, que quer dizer camarão. O texto indica vários
esconderijos e depósitos de armas dos insurgentes. É um documento muito
importante e vai ser exposto no museu de Ouro Preto com agradecimentos, a você,
a mim e a D. Inácia. Fomos convidadas para participar da abertura da exibição.
No museu o nosso manuscrito em língua tupi parecia agora mais importante,
iluminado e envidraçado ao lado da tradução e dos códigos decifrados, e um
cartão explicando aonde e como foi encontrado. Em destaque, o meu nome ao lado
da historiadora Rosália Ribeiro, o que me encheu de orgulho.
Filmamos tudo e eu apresentei o filme na escola com o maior sucesso. A
Rosa ficou muito emocionada e disse que eu já tinha alma e jeito de
historiadora antes mesmo de entrar na faculdade.
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