Boneca Triste
Carlos
Drummond de Andrade
Galeria
Stvdivs, em Laranjeiras. Hora quase sem movimento. Entra um senhor de cabelos
grisalhos e percorre lentamente a exposição de bonecas do século XIX. Para mais
tempo diante da peça n.º 14, examinando-a com atenção. Fala sozinho:
—
Deve ser essa.
Faz
um gesto de carinho no ar, como se tivesse a boneca no colo, e repete:
—
Tenho quase certeza de que é essa.
Passeia
os olhos em redor, à procura de alguém. Aproxima-se uma jovem, que pergunta:
—
O senhor deseja alguma coisa?
—
Desejo sim. Pode me informar se essa boneca anda?
—
Pois não. Embora não tenha pernas articuladas, ela anda. E tem choro.
—
Choro? Tem certeza que ela chora, em vez de rir?
—
Olhe, cavalheiro, nunca vi boneca dando risada. E está não é a única chorona da
coleção, veja bem. A de n.º 7, do fabricante alemão Handwerk, também tem choro,
se o senhor puxar o fio.
—
A vida é dura também para as bonecas, eu sei. Pois olhe, estava quase jurando
que esta ria. Não estrondosamente, é claro, mas ria. É tão parecida, se não for
a mesma.
—
Parecida com qual?
—
Com outra do mesmo tipo, mesmos cabelos, que comprei há muitos anos numa loja
de antiguidades da Rua Chile. A loja do Marques dos Santos, lembra-se?
—
Acho que não sou desse tempo… O Professor Marques dos Santos, é?
—
Ele mesmo. Uma boneca francesa como essa aí, com assinatura incompleta.
—
Essa também tem assinatura incompleta: Paris 501.
—
Então é a mesma!
—
Perdão, esta pertence a D. Sylvie Renault, e veio diretamente da Europa.
—
A senhorita garante que veio diretamente?
—
É o que está na ficha. Não há razão para duvidar.
—
Não estou duvidando. Estou procurando me esclarecer.
—
Desculpe, mas que interesse tem o senhor nisso?
—
A senhorita vai zombar de mim se eu lhe disser.
—
Absolutamente. Pode falar à vontade.
—
A senhorita acredita… na alma das bonecas?
—
Hem?
—
Eu não disse que ia zombar? Estou vendo pelo seu sorriso.
—
Bem, achei a pergunta engraçada, mas não tive a intenção de zombaria.
—
Todos acham a pergunta engraçada. Por isso mesmo eu não a faço mais a ninguém.
Agora, no meio de tantas bonecas, e vendo o seu interesse em me ser útil, eu me
animei… Desculpe, estamos conversados.
—
Não. Continue. Fale na alma.
—
Das bonecas? Aquela a que me refiro tinha alma, uma alma especial, própria de
boneca, isso tinha.
—
O senhor a comprou para sua filha, ou era colecionador?
—
Nunca tive filha e nunca fui colecionador de nada.
—
E então?
—
Então, comprei a boneca exatamente porque não tinha filha nem filho. E também
porque ela me pediu que a levasse.
—
A boneca? Pediu de que maneira?
—
Senti que ela me pedia, menos pelos olhos, que se moviam docemente, sem parecer
mecânicos, do que pelo ar, entende? Ar muito especial, de esperança, de desejo
triste. Acha que estou mentindo?
—
Eu não disse nada.
—
Não disse, mas está achando. É natural. Todos acham. Mas senti que a boneca
precisava de mim, como eu, de repente, comecei a precisar dela. Levei-a para
casa, minha mulher achou ridículo, fez uma cena.
—
Por tão pouco.
—
A partir daí, não nos entendemos mais, eu e minha mulher. Tentei convencê-la de
que a boneca deveria nos aproximar, em vez de nos dividir. Que era uma espécie
de filha, representando a que não tivemos. E como filha a tratei sempre, o que
mas irritava minha mulher, incapaz de nos compreender, a mim e à boneca.
—
Estou imaginando as consequências.
—
Bem, acabou em separação e desquite.
—
O senhor ficou com a boneca.
—
Eu tinha que ficar com ela, não havia outra solução. Passou a ser para mim um
resumo da filha que não nasceu, da mulher que foi embora, das mulheres em
geral. Sentia amor e respeito, amor e devoção. E a pobrezinha chorava.
—
Mas isso não é comum nas bonecas?
—
Nela era diferente. Era choro humano, e chorava por mim. O choro me
impressionava, me doía. Eu não a fizera feliz. Comecei a reeducá-la. Levei-a a
passeio, viajei, viajamos. Queria ensiná-la a sorrir. Custou, mas consegui.
Esse dia foi uma festa, pulei e cantei de felicidade. Daí por diante, ela
parecia outra. Sorria, ria, não estou mentindo não, que interesse tenho em
mentir? Vivemos felizes algumas semanas, as mais belas de minha vida. Até que
um dia…
—
Um dia…?
—
Ela também foi embora. Com seus próprios pés, com suas pernas desarticuladas.
—
Furtada talvez.
—
Não houve furto. Nenhum sinal de ladrão. O apartamento, rigorosamente fechado.
Fugiu. Tenho certeza que fugiu, talvez porque só ficara alegre para me
contentar, e era uma boneca que não fora feita, melhor, não nascera para ser
alegre.
Fez
uma pausa. Olhou uma última vez para a boneca n.º 14:
—
Procurei-a por toda parte. Como ia achar uma boneca fugida no Rio de Janeiro?
Hoje, lendo a notícia desta exposição, vim aqui espiar, reparar. Pensei que
fosse aquela. Não é. Muito obrigado, senhorita. Nunca se encontra uma boneca
fugida, cuja natureza tentamos modificar.
(Carlos
Drummond de Andrade)
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