O ROMANCE DESMONTÁVEL: VIDAS SECAS
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Estudos Literários
Depois que Graciliano Ramos foi libertado da
prisão a 13 de Janeiro de 1937, no Rio de Janeiro, hospedou-se por um breve
período na casa de José Lins do Rego. No momento em que pode, transferiu-se
para um modesto quarto de pensão no bairro do Catete. Pois foi nesse quarto de
pensão que ele iniciou o conto que seria o embrião de Vidas Secas,
conforme carta à esposa (13 de maio de 1937) Heloisa de Medeiro Ramos que
permanecera em Alagoas:
“Escrevi
um conto sobre a morte de uma cachorra, um troço difícil como você vê: procurei
adivinhar o que se passa na alma de uma cachorra. Será que há mesmo alma em
cachorro? Não me importo. O meu bicho morre desejando acordar num mundo cheio
de preás. Exatamente o que todos nos desejamos. [...] É a quarta história feita
aqui na pensão. Nenhuma delas tem movimento, há indivíduos parados tento saber
o que eles têm por dentro. [...]; mas estudar o interior de uma cachorra é
realmente uma dificuldade tão grande como sondar o espírito de um literato
alagoano. [...] Enfim parece que o conto está bom, você há de vê-lo qualquer
dia no jornal. [...]”(RAMOS, Graciliano; Cartas, 1980; Record).
A idéia inicial de
Graciliano era produzir um romance. No entanto, levaria certo tempo, e a conta
da pensão não podia esperar. Então, a solução foi escrever episódios (contos)
para cada capítulo. Pois, assim, atenderia a solicitação de um amigo argentino,
Benjamim de Garay, que lhe encomendara umas histórias do Nordeste,
coisas regionais, ou um conto regional. Esses episódios, vendidos a Garay,
foram publicados no mais importante jornal argentino: La Prensa.
As mesmas narrativas são também vendidas a
vários jornais e revistas como: O Jornal, do Rio de Janeiro; a Folha de Minas,
o Diário de Notícias, a revista O Cruzeiro, para citar só esses. Mas, para que
essas vendas se efetuassem, Graciliano usou de uma manha: usou
títulos diferentes para cada órgão de comunicação.
“Em
1937 escrevi algumas linhas sobre a morte de uma cachorra [...]. Dediquei em
seguida várias páginas aos donos do animal. Essas coisas foram vendidas em
retalhos, a jornais e revistas. E como José Olímpio me pedisse um livro para o
começo do ano passado, arranjei outras narrações, que tanto podem ser contos
como capítulos de romance. Assim nasceram Fabiano, a mulher, os dois filhos e a
cachorra Baleia [...]” (RAMOS, Graciliano; Linhas Tortas; 1962).
E foi assim, conto por
conto, que Graciliano montou seu romance,Vidas Secas, que a princípio
tinha o título de O Mundo Coberto de Penas. Não seria sem razão
dizer que se Vidas Secas foi montado conto por conto, é, portanto, um romance
desmontável. Massaud Moisés, em aCriação Literária (s.d.) escreveu:
"Em nossa literatura encontramos alguns romances que, na verdade, não são
romances e sim contos interligados e totalmente desmontáveis. É o caso de Vidas
Secas (Graciliano Ramos); alguns romances de Bernardo Guimarães e de Machado de
Assis, mestre nessa arte".
O próprio Graciliano confirma, ser Vida Secas um
romance desmontável, ao contar, em depoimento a João Condé, de O Cruzeiro
(1944), como estruturou a narrativa:
“[...].
A narrativa foi composta sem ordem. Comecei pelo nono capítulo. Depois chegaram
o quarto, o terceiro, etc. Aqui ficam as datas em que foram arrumados:
“Mudança”, 16 de julho 1937; “Fabiano”, 22 agosto; “Cadeia”, 21 junho; “Sinhá
Vitória”, 18 junho; “O menino mais novo”, 26 junho; “Inverno”, 14 julho;
“Festa”, 22 julho; “Baleia”, 4 maio; “Contas”, 29 julho; “O soldado amarelo”, 6
de setembro; “O mundo coberto de penas”, 27 de agosto; “Fuga”, 6 outubro.”
Se Graciliano montasse o
romance pela ordem em que foi composto, isto é, a ordem das datas, os 13
capítulos ou contos ficariam assim: Baleia; Sinhá Vitória; Cadeia; O Menino
mais novo; Inverno; Mudança; Festa; Contas; Fabiano; O mundo coberto de penas;
O soldado amarelo; Fuga.
Bem diferente da ordem
publicada: Mudança; Fabiano; Cadeia; Sinhá Vitória; O menino mais novo;
Inverno; Festa; Baleia; Contas; O soldado amarelo; O mundo coberto de penas;
Fuga.
No mesmo depoimento a João Condé, Graciliano nos
dá conta das personagens de Vidas Secas:
“No
começo de 1937 utilizei num conto a lembrança de um cachorro sacrificado na
Maniçoba, interior de Pernambuco, há muitos anos. Transformei o velho Pedro
Ferro, meu avô, no vaqueiro Fabiano; minha avó tomou a figura de sinhá Vitória;
meus tios pequenos, machos e fêmeas reduziram-se a dois meninos. [...]”
A primeira edição de
Vidas Secas não obteve o êxito esperado, apesar de Graciliano já desfrutar de
alguma fama. Os mil exemplares publicados levaram dez anos para se esgotar.
A Festa, Ivan Ângelo; Memórias
Póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba, Machado de Assis; O
Processo, Kafka, alguns romances de Bernardo Guimarães e Autran Dourado,
são também romances desmontáveis.
(origem: Recanto das Letras)
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