O REVÓLVER DO VASCONCELOS
Oswaldo U. Lopes
Falar sobre a importância das mãos
na história da humanidade seria chover no molhado. Há quem diga que a pequena
modificação no calcanhar que nos fez ficar eretos e a oponência do polegar que
nos fez capazes de segurar e empunhar coisas explicam toda a evolução dessa
espécie no mínimo curiosa, o homo sapiens.
Na medicina as mãos sempre foram
muito prestigiadas. No código de Hamurabi talvez o código de leis mais antigo
que se conhece, o mau uso da lanceta pelo médico previa que se lhe cortassem as
mãos. Hoje com o desenvolvimento de micro técnicas e sistema óticos capazes de
propiciar ampla visão com mínima penetração a figura heráldica do cirurgião
ficou um pouco velada, mas ainda não desapareceu.
Quando me formei em 1961, os
cirurgiões eram semideuses, para não falar deuses completos. A sala de cirurgia
era um templo onde se praticavam os ritos mais solenes da arte médica, os
gestos absolutamente litúrgicos, as roupas impecáveis, o silencio maior do que
nas grandes igrejas, enfim tudo em torno dessa figura maior: o cirurgião.
Doutorei-me cedo, em 1964 quando
ainda no terceiro ano de residência. Não era habitual, mas eu realizara um
trabalho experimental sobre choque hemorrágico e isso me permitira ser,
digamos, precoce.
O hábito eram as teses versarem
sobre levantamentos clínicos, seguimentos de casos e condutas. O campo da
medicina experimental ainda era novo. Minha defesa foi bem sucedida e alcancei
a nota máxima. Na banca havia um professor, Gil Soares Bairão, chefe do serviço
de anestesia que me conhecia bem e que havia feito também uma tese sobre choque
experimental.
Nesse momento, um famoso e austero
professor, um dos monstros sagrados da Faculdade de Medicina, estava escrevendo
uma extraordinária revisão sobre choque hemorrágico, e o Prof. Bairão havia lhe
mostrado meu trabalho que ele incluíra na revisão. Por sugestão, riquíssima desse mesmo Prof. Bairão eu
deveria levar um exemplar da tese na casa do outro famoso professor.
Foi dessa maneira que eu fui
introduzido no mundo do Prof. Benedito Montenegro.
Benedicto Augusto de Freitas
Montenegro nasceu em Jaú em 1888, na Fazenda Rio Pardo. Seu pai era espanhol da
Galícia e sempre o incentivou a estudar. Concluiu seus estudos básicos no
Colégio Mackenzie já famosa escola na cidade de São Paulo. Em 1909, com apenas
21 anos, graduou-se em medicina pela Universidade da Pensilvânia. Foi sem
dúvida o maior cirurgião de estomago do país. Contam que ele teria feito mais
de três mil gastrectomias, a cirurgia que se usava no tratamento da ulceras
estomacais ou duodenais.
Pessoalmente devo ter feito umas
vinte. Era o tratamento da época e dava resultado, havia às vezes complicações,
mas inegavelmente a vida dos doentes melhorava. Costumo dizer que no caso das
ulceras de duodeno ou de estomago, nós os cirurgiões fomos substituídos por um
comprimido duas vezes ao dia.
Ninguém poderia imaginar que uma
bactéria conseguisse viver e se reproduzir num meio tão ácido quanto o
estomago. Não fosse por dois cientistas australianos, nem saberíamos da
existência da bactéria Helicobacter pylori nem que era ela que causava as
temidas ulceras. Barry Marchall e Robin Warren em 1982 não só identificaram a
bactéria, como o mais difícil, cumpriram os famosos quatro postulados de Koch
(premio Nobel de Medicina 1905) que sacramentava a relação causa-efeito de uma
doença produzida por um microrganismo. Marchall chegou mesmo a inocular-se com
a Helicobacter, ingerindo-a por boca, documentou a lesão que ela causava,
recuperou a bactéria de seu próprio estomago e curou-se tomando antibióticos.
Tal façanha valeu aos dois o Premio
Nobel de Medicina 2005.
Voltemos, porém ao ano de 1965,
nossa conversa fluía maravilhosamente com várias intervenções de D. Nesinha
(Inesinha de Carvalho Montenegro) esposa do Prof. Montenegro. O bate-papo
evoluiu e acabou surgindo a figura do Prof. Vasconcelos. Eu sabia que este
havia sido chefe da clínica particular do Prof. Montenegro que operava no
Hospital Santa Catarina. Como era possível naquele tempo, Vasconcelos tornou-se
catedrático da Faculdade de Medicina com apenas trinta anos de idade. D. Nesinha
contava que Vasconcelos era habitue de sua casa comendo muitas vezes com eles.
Tendo se tornado também um
catedrático da Faculdade, Montenegro resolveu explicar a Vasconcelos que agora
devia tocar seu próprio barco e sua própria clínica. Coisa mais fácil de falar
do que de fazer. Quem tinha clínica e nomeada era ele, Montenegro. Isso gerou
certo grau de inimizade entre ambos. Não havia em São Paulo, cirurgião com o
prestigio de Montenegro. O Prof. Alípio Correa Netto começava a despontar, mas
ainda iria se firmar. Curioso, ambos serviram ao exercito brasileiro.
Montenegro na Primeira Guerra Mundial (1914-1918) juntou-se a Força do Brasil
como médico e a patente de Tenente-coronel. Alípio juntou-se a FEB durante a
segunda Guerra Mundial (1940-1945), com a patente de Major. Ambos prestaram
serviços relevantes como médicos militares.
Montenegro foi Diretor da Faculdade
de Medicina (1941-1947) e presidiu o Conselho Diretor do Hospital das Clinicas.
Foi numa reunião desse conselho que se
desenvolveu o episódio do revólver. Vasconcelos que também participava do
referido Conselho, exaltado puxou de um revólver em plena reunião. Passado o
momento, Montenegro o alertou para que não fizesse de novo sob pena de tomar-lhe
a arma. Tendo Vasconcelos repetido o gesto, Montenegro tomou-lhe a arma.
Olhando, agora para mim, com notável
simplicidade me disse:
─ Você quer vê-la?
Ante minha resposta positiva, saiu
da sala retornando com um revolver niquelado que me pareceu de calibre32. Não
sou especialista em armas, mal fiz o Centro Preparatório de Oficiais da Reserva
(CPOR), mas confesso que fiquei um pouco deslumbrado contemplando um pedaço da
história da Faculdade. Ali se desfez a lenda e a história virou fato!
Tive mais uns poucos contatos com o
Prof. Montenegro que veio a falecer em 1979, com 91 anos de idade e sempre
lúcido. Aquela noite, parece-me vê-la, sempre como se fora ontem. Que história!
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