Tralhas e
Muquifos
Suzana
da Cunha Lima
Eu só estava
observando meu companheiro entrar com o carrinho cheio de tralhas, restos
mortais de sua extinta firma. Eram
pastas, pranchetas, isopor, pilhas de prospectos, e um monte de miudezas que a
gente nem sabe se um dia vai precisar. E
com isso, o quarto de empregada virou depósito, e o de hóspedes, inabitável para um ser humano.
Foi quando surgiu,
sabe-se lá de onde, minha amiga de longa data,
Jussara. Sentou-se ao meu lado,
olhou aquela azáfama e perguntou baixinho:
— Está revivendo os velhos tempos, amiga?
Aí meu pensamento
voou para longe, para os primeiros anos do casamento. Meu marido era o Rei das Tralhas. “Quem
tem um, não tem nenhum” dizia – dizia. E era um tal de comprar coisas em
duplicatas e triplicatas e encafuar no pequeno apartamento que alugamos logo
que casamos. Onde? Ele não se apertava.
Num minuto, entrava
no cômodo e seu olhar de engenheiro media mentalmente a parede, calculando
quantas prateleiras comportaria. E assim pensado, melhor feito. Quando me dei conta,, o teto do corredor foi
rebaixado e ele montou uma pequena
oficina eletrônica no nosso quarto de dormir, e entupiu de prateleiras, fios e
gambiarras. Não tive chance nem clima para estrear meus lindos jogos bordados,
nem tampouco montar uma cena erótica com meus belos negligeés. Onde colocaria o abajur
lilás e o gato de louça?
Por pouco não avançou
no quarto dos meninos, que a tempo salvei das famigeradas prateleiras que, em
segundos, se encheriam de tantas coisas inúteis, “que a gente podia precisar algum dia”.
Mas, santa inocência!
Ele, habilidoso como era, acabou fazendo uma gambiarra do quarto/oficina para a
sala, para aumentar o volume da vitrola recém-adquirida. E de gambiarra em gambiarra, vi-me recebendo
visitas e fazendo as refeições num emaranhado de fios e aparelhinhos que
continham os controles dos diversos eletrônicos que foram se espalhando pelo apartamento. Muito antes de surgir o controle de Tv
portátil, ele já havia inventado o seu, que controlava o volume e mudava de
canal.
Quando mudamos para
uma casa maior, nossa mudança era motivo de surpresa para as transportadoras.:
Afinal, isto é uma mudança de uma família ou de uma fábrica?
Na casa foi mais
fácil reservar um espaço para seus inúmeros hobbies, com fronteiras bem
definidas, que eu defendia ferozmente contra a mínima invasão. Pois, ao ver
espaço, surgiam outras necessidades:
montou uma oficina eletrônica,
uma mecânica (com torno e tudo) uma de marcenaria e caldeiraria, além de
estúdio para revelar fotos. E em quase
todas as paredes havia prateleiras, nenhuma vazia ou subutilizada. Tudo com
material de primeira, e bem organizadas.
Porém, não contente com isso, vislumbrou um espaço
entre nossa casa e o muro do vizinho. Um metro e meio, talvez. Encheu de prateleira e aquilo virou um
muquifo. Depósito dos inservíveis, e mais tarde, local ideal para proliferar
baratas e ratos. Um horror!
— Calculo que ali foram enterradas muitas
viagens ao exterior e uma casa própria, pelo menos – comentou Jussara que a
tudo tinha acompanhado.
— Com certeza! – disse contrafeita – Mas, naquele tempo, eu achava que isso era a
coisa mais importante. O chefe da casa, o grande provedor, que trabalhava duro
o dia inteiro, engolindo sapos e batráquios, o grande guerreiro devia chegar ao
seu castelo e ser tratado como rei.
— Ah, isso ele era mesmo – concordou minha amiga – A casa girava em volta dos desejos dele e ponto final.
Voltei-me para ela,
pensativa:
— Era a coisa mais natural para mim, desde que
eu tivesse meu lugarzinho também. Eu não tinha todos aqueles interesses dele,
bastava um lugarzinho para colocar a máquina de escrever, sempre gostei muito
de escrever.
— Porém, mais tarde, você aprendeu a filmar e
editar, até chegar seu computador e o
equipamento de edição – completou Jussara - Você arrumava tudo num lugar
que chamava de escritório e fez belos trabalhos de edição, todos aqueles Natais
e aniversários, tudo registrado.
— Sabe amiga, refletindo sobre aqueles tempos,
que nem tão distantes são, fico pensando o que faz uma pessoa estar sempre
acumulando coisas. Medo que falte? E que falte numa hora, num domingo ou feriado com o comércio
fechado? Não sei não.
— Acho que podemos fazer uma analogia com
coisas mal resolvidas ou problemas que não sabemos resolver. Vamos deixando nas prateleiras da cabeça,
abarrotando o cérebro de pensamentos que, no final, não levam a nada. A vida é dinâmica, as pessoas também,
tudo está sempre mudando, se reagrupando, se desfazendo, se reconstruindo, não
é? Concluiu Jussara:
— Então é besteira acumular. Sempre é. O problema que parece insolúvel naquele
momento, daqui a algum tempo se resolve por si ou passa a não ter mais
importância.
Olhei meu companheiro
que acabara de tomar banho e estava todo garboso e cheiroso, pronto para
sairmos para um restaurante.
— Não se preocupe não, meu bem, 90% deste material vai para a caçamba amanhã. E
agora vamos saborear aquela truta com amêndoas que você gosta tanto. Você estava
falando com alguém?
Pisquei cúmplice
parta Jussara, minha amiga imaginária de tantos anos.
— Estava resmungando, preocupada com estas
tralhas. Que bom que já deu um destino para elas.
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