Almeida Junior
O
IMPRESSIONISMO INDICOU O CAMINHO!
Jeremias
Moreira
Foi
na casa da Maria Amélia que topei com a edição francesa do livro Les impressionnistes. Pertencia
à coleção de sua mãe. Grã-fina e preconceituosa
com os simples mortais, não aprovava o relacionamento que a filha
mantinha comigo. Para ela eu era um joão-ninguém que sofria de apatia
intelectual. Isso, sem saber o que acontecia em sua casa, nos finais de semana em
que acompanhava o marido à fazenda. Não que não tivesse um pouco de razão, pois
nessa época estava para completar dezenove anos e vivia nu com a mão no bolso. Andava
meio sem rumo e levava a vida na flauta. Jogava futebol e via nisso o meu
futuro. Até que, ao folhear o livro, um mundo de perspectivas se
vislumbrou.
A irreverência daquelas pinturas com seus
borrões, a luminosidade, os gestos marcantes das pinceladas, o uso das cores
puras e vibrantes, enfim, foi uma descoberta que me impactou.
Na medíocre vida estudantil que tive, o
desenho foi uma exceção. Era um dom natural que nunca imaginei desenvolver.
Mas, acesa pelo que descobri naquele livro, uma chama despertou dentro
de mim.
A Escola Industrial mantinha um curso de
pintura. Consegui me inscrever como ouvinte. Era um curso rudimentar onde
a orientadora sugeria quadros de artistas consagrados para que os alunos fizessem
cópias. E, eu as fiz ! Entre outras, dos quadros Almoço na Relva e Olympia,
do Manet e Impressão, nascer do sol, do
Monet. Aliás, esse quadro troquei por um relógio Orient, com uma vizinha.
Naquele final de ano, acredito que
pressionada por sua mãe, ou quem sabe por
percepção própria, Maria Amélia rompeu comigo. Foi um duro golpe na minha auto-estima.
Compensei me
dedicando mais à pintura, até entender que ali, naquela cidade do interior,
não havia perspectiva de um razoável aprendizado.
Iniciava-se o ano de 1964 e me mandei para
São Paulo. Fui aceito na Escola de Belas Artes, que funcionava no prédio da
Pinacoteca. E, foi aí, na Pinacoteca, onde conheci Almeida Junior e, pela
segunda vez, fui arrebatado pela pintura. Diante da força daqueles caipiras,
retratados na mais pura espontaneidade,
vigor e altivez, eu pirei. As pinturas de Almeida Junior atingiram em cheio
meus instintos atávicos. Talvez tenha sido o instante em que me descobri
caipira.
Mas, se por um lado me sentia estasiado,
dois meses de aula de pintura me sinalizaram que eu não seria nada além de um
pintor inexpressivo.
Voltava a me sentir como um cão despencado de um caminhão
de mudança.
Dias depois, como todas as manhãs, desci do ônibus “Vila Mariana/Largo Gal. Osório” no ponto próximo à Estação Júlio
Prestes, tomei o rumo da Escola de Belas Artes, onde, obrigatoriamente, passava
na frente do DOPS.
Mas,
nesse dia, uma inquietação me apossou. O trajeto estava apinhado de soldados do
exército fortemente armados e o prédio, que logo depois viria a se tornar um
dos símbolos da repressão do regime militar, isolado por barricadas e cercas de
arame farpado.
Passada
a apreensão, vi-me atraído pela estética sinistra daquelas manobras em meio à
neblina, que criava uma ambientação de cena de filme europeu.
Sem
me dar conta de eventuais perigos foi ficando por ali. Fascinado e alheio aos
gritos e advertências dos soldados, meus olhos, como lentes de uma câmera,
registravam os acontecimentos. Minha cabeça funcionava a mil e passou a
executar uma edição instantânea: do plano geral daquela movimentação de guerra,
tendo como fundo a Estação da Luz, um corte para as lagartas do tanque que
passou veloz. Depois para a postura sisuda do soldado que segurava
acintosamente um fuzil. Registrei a expressão resignada do catador de papel
impedido de seguir com seu carrinho entulhado de sucata, tendo ao lado o seu
cão fiel que olhava assustado aquela balburdia que quebrava a rotina do dia. Em
seguida, os gestos prepotentes do sargento que obrigava as pessoas a contornar
a praça. Na esquina, o olhar perdido do trabalhador que pitava seu palheiro e
espiava, sem nada entender. O gesto assustado da dona de casa, que deixou
apressada a padaria rumo a casa, com o pão e o leite para o café da manhã.
Enfim,
estava excitado e atento a tudo o que fosse possível registrar.
Não
fui à aula naquele dia, como não mais iria. Permaneci no centro de São Paulo e
perambulei diversas vezes entre as praças da República e a da Sé, em busca de
notícias e acontecimentos.
Essa
experiência e o desejo de estar registrando – na memória – esses fatos
históricos me trouxeram uma luz. Percebi que, como os pintores, eu queria ser
um contador de histórias, mas minha linguagem era outra, não a pintura. Entendi
que o meu jeito de contar histórias imprescindia do movimento e da dramaturgia.
Descobri que o meu meio de expressão era o cinema.
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