Sophia - Angela Barros

        
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Sophia
Angela Barros    
       

Marcos Pereira um homem de cinquenta e cinco anos, escritor, divorciado, bonitão ainda, mas sem nenhum relacionamento fixo no momento, estava dando um tempo na sua vida amorosa. Seu caso com a Claudia não tinha acabado bem e não queria ficar de quatro como ficou por ela, para depois escutar que seria trocado por outro.

        Pode-se dizer, estava num momento tranquilo da vida. Sem dívidas,  apartamento próprio, contrato fechado para mais dois livros, a única coisa que precisava se preocupar era com o pé de meia necessário para enfrentar a velhice sem precisar de ninguém.

        Porém, o primeiro livro que ele já deveria ter entregue para revisão estava empacado. Há duas semanas estava em crise de abstinência criativa, a mente estava oca, como se ele estivesse entrado num túnel  escuro e vagasse sem rumo ao nada.

        Estava absorto em seus pensamentos quando o telefone toca. Era  Jorge, também escritor, querendo saber notícias do novo livro. Marcos conta sobre o bloqueio que o afetou, e o colega do outro lado da linha explica que esses lapsos de criatividade já tinham ocorrido com ele.

        - A solução, é isolamento, você precisa mudar de ares, vá para uma praia, saia da rotina dessa cidade. Lembra do Antonio, o romancista nobre e pobre? Ele tem uma casa de praia que herdou da família e está sempre a procura de alguém para alugar. Como vive sem dinheiro costuma cobrar um preço bem camarada.

        Marcos decide aceitar o conselho.

        Tudo acertado com o dono da casa para um final de semana prolongado, às quatorze horas de uma quinta-feira, sai de casa rumo a praia do Portinho da Arrábida, que fica dentro do Parque Nacional da Serra da Arrábida, com suas areias brancas e água do mar em tons de azul turquesa, rodeada por uma vegetação verdejante, cenário ideal para um escritor a procura de sossego.

        Já está escurecendo quando chega ao vilarejo próximo a casa. Como foi orientado se dirige ao Restaurante Ribeirinha do Sado, lugar simples, onde poderá pegar as chaves da casa, comprar mantimentos e fazer as refeições, se assim desejar. É atendido por Dona Laura, dona e cozinheira do pequeno estabelecimento.

        Enquanto atende o cliente, Dona Laura, senhora na casa dos oitenta anos, um metro e cinquenta mais ou menos, toda vestida de preto, lenço na cabeça, rosto enrugado, de pálpebras tão caídas que mal dava para ver os agitados olhinhos pretos, adverte o moço a ficar hospedado na Estalagem Quinta das Torres, lá com certeza ele dormirá bem melhor, nada de mal vai lhe acontecer.

        Por quê? Pergunta o escritor. Você não sabe? A última família que se hospedou naquela casa desapareceu, não sobrou ninguém para contar a história. A polícia local investigou durante semanas o sumiço da família. Na verdade, era um casal. Não conseguiram desvendar o mistério. Deste aquele dia, nem mesmo os donos apareceram por estas redondezas. Todo o vilarejo sabe que aquela casa é amaldiçoada. Por favor moço, não vá para lá.

        Pereira agradeceu os alertas da velha senhora e seguiu rumo a casa que de longe se avistava no alto de um penhasco. Percorreu na semi-escuridão, uma estradinha costeira, de onde podia-se escutar o lamento das ondas batendo na encosta.

        Depois de cerca de meia hora, finalmente estava de frente a um portão de ferro enferrujado, trancado por um cadeado no mesmo estado. Procurou no molho de chaves a que deveria abri-lo, logo na primeira tentativa o cadeado abriu. Pela frente ainda teria alguns metros para a entrada do casarão.

        Estacionou o carro, acendeu a lanterna do celular para enxergar a fechadura da porta, que ao ser aberta, rangeu na escuridão e um forte odor de mofo entrou pelas suas narinas deixando-o zonzo. Entrou, tateou a parede a procura de um interruptor para acender as luzes, nada. Como a bateria do celular estava quase no fim, tratou de achar alguma vela. Por sorte, logo encontrou um pacote de velas e uma caixa de fósforo. Subiu os degraus que levava até os quartos, percebeu que a cama estava arrumada, o banheiro limpo, graças a Deus, suspirou aliviado. Retirou da mala o pijama, jogou-se na cama exausto e dormiu.

        No meio da noite, como naqueles pesadelos que a gente não sabe se esta dormindo, sonhando ou acordado, escutou passos dentro do quarto, teve a sensação de que alguém o observava, num pulo sai da cama e pergunta, quem está aí? Não obteve resposta. Tenta enxergar algo na escuridão mas, não consegue ver nada. Nisso uma lufada de vento gelado abre as janelas do quarto. Ele corre e fecha as pesadas venezianas. Depois de algum tempo acordado, agitado volta a dormir um sono cheio de pesadelos.

        Desperta pela manhã com barulhos no andar de baixo da casa. Desce devagar os degraus, pega um castiçal que encontra numa mesa e vai em direção ao que parece ser a cozinha, abre a porta bem devagar, pronto para atacar o invasor. Quando já está preste a dar o golpe, ouve um grito de mulher que sai correndo para a outra extremidade do ambiente. Meu Deus, que é isso? O senhor está louco? Não lhe avisaram que eu viria aqui todos os dias para preparar suas refeições e limpar a casa? Meu nome é Gertrudes. Marcos pede desculpas para a senhora. Não, não avisaram que a senhora estaria aqui.

        Gertrudes explica que infelizmente não conseguira ir no dia anterior para preparar toda a casa, apenas o quarto e o banheiro  porque nunca ia ali sozinha e o marido não pôde acompanhá-la. Hoje deixarei tudo em ordem, inclusive vou ligar o painel da eletricidade que esqueci ontem, desculpe, deixei o senhor no escuro. Espero que tenha encontrado o pacote de velas que sempre deixo para emergências.

        Desculpas aceitas e aliviado o escritor saboreia o excelente desjejum preparado por Gertrudes.  Depois de mais uma xícara de café, pergunta sobre o sumiço da última família que tinha se hospedado no local e se por um acaso tem mais alguém trabalhando na casa.
        - Uma desgraça senhor, mas não era uma família e sim um casal muito estranho, ele muito mais velho,  parecia avô da menina. Coitada, o velho a tratava muito mal, apesar da garota fazer tudo para agradá-lo.

        Eu estava aqui servindo o café quando sem querer a Sophia, era esse o nome dela, deixou cair café quente na mão do velho. Ele levantou o braço e deu uma bofetada no rosto da menina, arremessando-a longe, coitada! Ela pedia mil desculpas, mas o crápula não queria saber, só falava que ela era uma desajeitada, não sabia fazer nada direito, só prestava mesmo é para abrir as pernas. Presenciei cenas do casal como essa várias vezes.

        Até que um  dia, encontrei a menina na cozinha já com tudo pronto para o café da manhã. Falou que eu não precisaria ficar na casa, ela faria tudo sozinha, queria agradar seu marido. E fui embora.

        Quando cheguei aqui no dia seguinte, encontrei o velho morto no chão. Sophia, estava sentada ao lado do corpo em estado catatônico. Acredite senhor, o desgraçado merecia morrer. Corri e chamei meu marido para ver a cena. Olhamos em volta e achamos um vidro com veneno de rato vazio. Concluímos que cansada dos maus tratos a menina resolveu dar cabo da vida do homem que a infernizava.

        Como diz o ditado popular senhor: “Deus escreve certo por linhas tortas”. Eu e meu marido não fomos abençoados com um filho, por isso, vendo aquela jovem tão frágil caída no chão daquele jeito, meu coração ficou apertado, despertou dentro de mim um amor até então desconhecido, o amor de mãe. Abracei Sophia com carinho, ela se aninhou nos meus braços soluçando. Meu marido quando entrou viu aquela cena, entendeu tudo, sem falar uma palavra, retirou o corpo sem vida caído no chão, limpou o local e disse: tire a menina daqui, fique com ela até escurecer, volto mais tarde para buscá-las, não deixe ninguém saber o que está acontecendo aqui.

        Depois disso, retiramos da casa tudo que pertencia ao velho e destruímos. Sophia, traumatizada pelo que tinha feito permanece até hoje alheia a tudo, sua mente apagou completamente aquele dia fatídico. Desde então o destino nos encheu de felicidade, nos deu uma filha.
        Porém, Sophia precisa viver escondida de todos. O senhor notou alguma coisa estranha durante a noite? Apesar dos meus esforços para controlar todos os seus passos, ela costuma ter insônia e sai da nossa casa durante a noite para perambular por aí. Vou pedir para ela não aborrecer o senhor.

        - Tudo bem Gertrudes, não se preocupe. Por favor, peça para alguém verificar as janelas do meu quarto, ontem em plena madrugada elas abriram deixando o ambiente gelado.

        Marcos fica intrigado com toda aquela história. Decidi que naquela noite ficará atento ao aparecimento do “fantasma" que passeia pelo seu quarto.

        A noite chega. Por mais que tente manter os olhos abertos não consegue e cai no sono. De repente, acorda e vê uma jovem sentada no chão olhando-o fixamente. Mesmo na escuridão do quarto vê lágrimas brotando de que parece dois oceanos de um infinito azul turquesa. Quando  ela percebe que foi descoberta, tentar fugir mas tropeça e cai torcendo o tornozelo.

        Marcos corre para socorrê-la que ensandecida distribui socos e pontapés. Lentamente ele consegue acalmar Sophia que se mantém  distante, acuada num canto do dormitório. Acende a luz e espantado vê as condições lastimáveis da moça. Ela veste um vestido sujo e surrado. Uma  cabeleira tipo rastafari percorre suas costas, mais para ninho de passarinho do que cabelo humano. Manchas roxas como pulseiras rodeiam os tornozelos. Meus Deus! O que é isso? Com calma tentar descobrir o que aconteceu.

        - Não tenha medo, pode confiar em mim, fala o escritor. Por favor, conte o que está acontecendo aqui. Vou fazer tudo para ajudar você.

        Sophia, soluçando e desconfiada aos poucos conta que um dia, não sabe quando, chegou ali com o marido para passar uma semana na casa. Seria mais uma das muitas tentativas de conciliação do casal. O marido morria de ciúmes dela tornando sua vida um verdadeiro inferno. Mas a paz durou pouco. Chega na cidade um sobrinho de Gertrudes para visitá-la. Sophia com a melhor das intenções, convida o rapaz para jantar, já que a empregada trabalhando o dia todo na casa, não teria como das atenção ao rapaz.

        Rafael, era esse seu nome, foi tratado amigavelmente o tempo todo pelo marido de Sophia. Gertrudes fez um bacalhau especial para a noite regada a vinho, para a sobremesa, pasteis de Santa Clara, deliciosos. Enfim, o jantar estava num clima cordial, alegre até.

        Como eu estava enganada! Assim que subimos para o quarto meu marido num empurrão me jogou de quatro no chão e começou a me espancar. Sua vagabunda, não tem vergonha de ficar dando bola para aquele homem? Você não presta mesmo. E assim, transtornado me batia sem piedade. Só parou quando a exaustão tomou conta do corpo dele. Eu jazia ensanguentada no chão quando ouvi o ranger da porta se abrindo, era a empregada que veio no meu socorro e carinhosamente me banhou e tratou os meus ferimentos. Santa mulher!

        Na manhã seguinte quando acordei meu marido não estava. Tinha ido embora, falou Dona Gertrudes. Não se preocupe minha filha, aproveite para passear um pouco, vá até a praia, aproveite a vida! Passei momentos maravilhosos, levava vida de princesa. Os dias foram passando e o casal perguntou se eu queria morar com eles. Aceitei, claro, nunca tinha sido tão bem tratada. Finalmente tinha uma família.

        Com o tempo as gentilezas do Sr. Antonio, marido da Gertrudes foram mudando de carinhosas para abusadas, seus olhares maliciosos até mesmo na frente da mulher, me faziam tremer. E assim, outra vez minha vida foi virando um inferno. Desconfiada a mulher do safado mudou seu  tratamento
comigo, ficando cada dia mais ríspida. Desde então, passei a ser uma Cinderela e a carinhosa mãe se transformou numa madrasta.

        Acordei uma manhã assustada com os berros da Gertrudes, penetrando meu cérebro com todo tipo de insultos. Sua desgraçada, é assim que agradece o que fiz? Por você dei sumiço naquele seu marido imprestável. Você foi a filha que nunca tive e é assim que me agradece. Querendo roubar meu marido! 

        Tentei levantar. foi quando percebi, eu estava acorrentada na cama. Meu Deus, a senhora precisa acreditar, agradeço tudo que fez, nunca quis absolutamente nada com seu marido, juro por tudo que é sagrado!

        Nada fez a mulher mudar de ideia. Desde aquele dia, vivo aqui trancafiada num quarto como um animal, desejando com todas as forças do meu ser que a morte me abraça com seu manto negro. Não aguentava mais.

        Moço, foi com a chegada de alguém na casa depois de tanto tempo que criei coragem para tentar fugir desse inferno que tenho vivido. Estou sagrando, olhe, mas consegui me libertar das correntes. Ontem, tarde da noite estive aqui no seu quarto, ouvi ruídos na casa e fugi. Resolvi voltar hoje decidida a pedir sua ajuda. Por favor, tenha piedade, preciso ir embora, caso contrário quando descobrirem que estou solta eles irão dar cabo de mim.

        Sophia aos prantos continua contando suas desventuras. A mente do escritor fervilha de ideias, vislumbra no ocorrido um roteiro perfeito para seu livro. Decidiu sair imediatamente daquele lugar levando a sofrida moça com ele.

        E assim, o tempo passa, Marcos escreve seu primeiro bestseller, um romance como nunca escreveu, contando a história de Sophia.


        No dia do lançamento do livro, próxima a mesa onde Marcos dará os autógrafos para uma multidão que aguarda na fila de uma das maiores livrarias da cidade, está uma linda mulher. Seu olhar é apaixonado. Seu nome,  Sophia.

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