CERVANTES - Jeremias Moreira



CERVANTES
Jeremias Moreira

Concentrado na troca das tábuas apodrecidas do mangueiro, Otaviano demorou a perceber a investida de Cervantes. Quando tentou escapar já era tarde. Foi atingido em cheio na lateral esquerda do dorso e arremessado a mais de doze metros. Teve o pulmão, perfurado e diversas costelas quebradas. De longe, Zé Antônio assistiu a cena. Aguardou um tempo, tratou de atrair o touro para outra remanga, fechou a porteira e foi olhar Otaviano. Estava morto! Em seguida ligou para o Dr. Adilson Nunes.

 —  Serviço feito!

O Dr. Adilson comunicou à polícia, aguardou o médico legista chegar de São José do Rio Preto e os levou até a fazenda. Não havia muito o quê fazer. Otaviano se descuidara! Cometera o erro fatal de não verificar se a porteira, que ligava a remanga à seringa, onde o touro se encontrava, estava trancada.

A polícia concluiu a investigação e classificou o caso como um acidente.

Se o assunto não ficava de todo resolvido, o principal obstáculo, sim!

Essa história começou dois anos antes com o suicídio de Armando Barreto, o Barretinho. Atolado em dívidas, com a fazenda hipotecada, Barretinho entrou na sede do Grêmio Esportivo Rui Barbosa disposto a se livrar em definitivo da agonia do endividamento. De um jeito ou de outro! Atravessou o salão e caminhou obcecado para os fundos, onde as apostas eram mais altas. A mesa era de pôquer, e Armando foi o oitavo jogador a sentar-se.

Se tivesse noção de estatística, ou se naquele momento conseguisse ponderar, perceberia que a probabilidade de ser bem sucedido era igual à zero. 

Ou será que Barretinho sabia, e sua intenção era mesmo deixar o caos instalado atrás de si? Ao final de onze partidas, perdeu tudo o que já não possuía inclusive a fazenda, que tecnicamente já pertencia ao banco.  Assinou as promissórias e a declaração de dívida, levantou-se com uma tranquilidade inacreditável e saiu do clube.

Eram duas horas e quarenta da madrugada de uma sexta-feira. A noite estava bonita, a temperatura agradável e a rua sossegada. Barretinho caminhou até o carro, entrou, acendeu um cigarro, ficou um tempo em silêncio e em seguida ligou o rádio. Juliano e Jardel cantavam Fim de Noite. Depois de algumas tragadas, apagou o cigarro no cinzeiro do carro e pegou o revólver no porta-luvas.  Alguns minutos depois, o pessoal do clube ouviu o estampido de um tiro. Na mesa de pôquer, todos se olharam tensos. Deduziram o que acabara de acontecer. 

Membro de uma família tradicional da região, o suicídio de Barretinho chocou a pequena cidade. Deixou a mulher viúva, cinco filhos órfãos e uma lista enorme de confusões jurídicas para serem resolvidas. Seu advogado era o Dr. Adilson Nunes.

Os credores também se abalaram, porém por outros motivos. Temiam uma longa batalha judicial e a eventualidade de não receberem nada. Por isso, quando o Dr. Adilson iniciou seu malabarismo de acertos e negociações, não encontrou muita resistência. Por um valor bem abaixo, ele mesmo conseguiu quitar as dívidas de Barretinho. Ao final de tudo, como um bom e astuto lobo em pele de cordeiro, deu algum dinheiro para a viúva e manipulou para que a fazenda Tapuia, que há tempos cobiçava, fosse vendida, muito abaixo do preço que valia, a um testa de ferro seu.

A ética do Dr. Adilson Nunes não ultrapassava o nível do lodo. Utilizava-se de qualquer meio para atingir seus objetivos. E sabia agir. Bom advogado, vencia a maioria dos casos em que se envolvia e por isso era bastante solicitado. Enriqueceu aproveitando-se de clientes incautos. Estava com cinquenta e seis anos, tinha três filhos e vivia às turras com a mulher, Dulcinda. Casou-se apenas interessado na fortuna do sogro. Em nenhum momento abandonou seu hábito de solteiro mulherengo. Continuou a frequentar bordéis, onde alternava mulheres como amantes exclusivas. Se fora um marido ausente, como pai não foi diferente. Sobretudo nos últimos três anos, quando conheceu Marlize, numa boate de luxo em São José do Rio Preto.

Marlize Spoletto tinha vinte e sete anos e fazia programas para sustentar os estudos. Ela pretendia ser advogada e cursava o quinto ano na faculdade de direito na cidade. Adilson se encantou pela garota como nunca acontecera por outra mulher. Instalou-a num apartamento e passou a mantê-la.

Dulcinda sempre soubera das escapadas do marido. A relação fria que mantinham não a incomodava. Pelo contrário, não gostava muito de sexo e sentia-se aliviada com o distanciamento entre eles. Mas, a mudança no comportamento de Adilson chamou sua atenção. Sua preocupação era mais com o patrimônio da família do que em perder o marido. Os filhos já estavam crescidos e desfazer o casamento, nesse momento, não causaria muitos danos. Começou a cobrar explicações e a ameaçá-lo com o divórcio. A eventualidade de uma separação foi um motivo a mais para Adilson fazer de Marlize a compradora da Fazenda Tapuia.

Há um ano ela havia concluído a faculdade e embora vivesse no bem bom que Adilson lhe proporcionava, tencionava trabalhar em algum escritório de advocacia. Ele era contra. Preferia tê-la à sua disposição. Por isso, mesmo sabendo da sua condição de laranja, ela se entusiasmou com a propriedade em seu nome. Levou a ideia a sério e manifestou seu desejo de se envolver nos assuntos agropecuários e, quem sabe, até mudar-se para a fazenda.

Quem não gostou nadinha dessa ideia foi Antônio José da Cunha, ou Zé Antônio, um mulato alto e forte, ex-peão de rodeio, de trinta e oito anos, e uma espécie de faz tudo para o Dr. Adilson Nunes.

Nascido e criado no campo, Zé Antônio estudou na Escola Técnica de Agricultura de Jaboticabal até o penúltimo ano, quando largou tudo para ser peão de rodeio profissional.  Impulsivo e imaturo, não soube conviver com o prestígio e a fama. Perdeu-se nas drogas e     envolvimento em brigas. Esteve implicado num caso nebuloso de espancamento e morte de um tropeiro, dono de uma companhia de rodeio. Foi o Dr. Adilson quem o defendeu e conseguiu sua absolvição. Mas as portas do mundo do rodeio se fecharam para ele. Seu pai era administrador de uma grande fazenda, evangélico e com valores morais extremamente rígidos.  Pai e filho trabalharam juntos quando Zé Antonio era adolescente, ocasião que foram bastante próximos. Entretanto, depois de abandonar os estudos e dar o rumo que deu à sua vida, o pai também o rejeitou.  Ressentido com o mundo, Zé Antônio se apegou ao trabalho oferecido pelo Dr. Adilson.  A grana era boa e, como já estava no atoleiro, um pouco mais de lama não faria diferença.

Adilson legalizou a transferência da Tapuia em nome de Marlize. Esperava que Zé Antônio a tornasse produtiva. Nos últimos anos, a decadência pessoal de Barretinho se estendeu à fazenda e andava tudo no mais completo abandono. Zé Antônio viu nessa empreitada a oportunidade de sua redenção. Entusiasmado, contratou um agrônomo e traçaram um plano de trabalho. O maior problema era a carência de água, o que, ao contrário, abundava nas terras de Otaviano Farias, o vizinho.  Um riacho cruzava suas terras e Otaviano permitira que Barretinho utilizasse uma passagem para seu gado chegar até a água.  Porém, quando ele se desfez do rebanho para pagar dívidas, Otaviano bloqueou o acesso.

Nessa ocasião, o único animal preservado por Barretinho foi Cervantes, um touro de mil e duzentos quilos, da raça marchigiana, que fora famoso por sua atuação em rodeios e que era pretendido por muitos criadores. Ele o comprara para ser reprodutor quando planejou criar touros de rodeio. Com sua vida em rota descendente, tudo foi por água abaixo.

Depois da fatalidade a Fazenda de Barretinho deveria ir a leilão. Muitos interessados queriam arrematá-la. Otaviano era um deles e não ficou nada contente quando viu a manipulação de Adilson a favor de tal Marlize Spoletto. Em nome dela, ele pagara todas as dívidas de Barretinho e a tornara a única credora, além do Banco do Brasil. Reivindicando preferência na aquisição da fazenda, Adilson conseguiu impedir o leilão. Fez um acerto com o banco, pagou uma importância para a viúva e apresentou Marlize Spoletto como a cliente em nome da qual agira.
Foi assim que Adilson fez da amante a nova proprietária da Fazenda Tapuia.

Otaviano conhecia as falcatruas do Dr. Adilson Nunes e logo entendeu sua jogada. Percebeu que Marlize não passava de uma testa de ferro. Contrariado, decidiu não dar passagem à água para a nova proprietária. Foi o que comunicou a Zé Antônio ao ser procurado por ele.

Além da fazenda, Otaviano Faria tinha uma empresa de construção, de reforma e de manutenção de cercas, estábulos e mangueiros. Esse era seu principal ganha pão.

Para abrandar os ânimos do vizinho, Adilson engendrou um plano de contratá-lo para reformar as cercas e o mangueiro da Tapuia. Talvez essa aproximação o fizesse mudar de ideia.  

Mais uma vez, Otaviano enxergou a jogada concebida por Adilson. Embora sua vontade fosse recusar, tinha como princípio não jogar dinheiro fora. Afinal, trabalho é trabalho. Apenas não cairia na lábia do advogado. Aceitaria a empreitada, ganharia seu dinheiro e não cederia na questão da água.

Após três semanas de trabalho, Otaviano concluiu o reparo das cercas e foi trabalhar no mangueiro. Lá, Adilson o abordou com o assunto do acesso ao riacho. O vizinho explicou que adquirira mais gado e precisava ocupar o máximo de área para pastagem. O corredor utilizado por Barretinho também virara pasto.

Enquanto conversavam, Cervantes estava no piquete ao lado. Ao vê-los, o touro se abestou todo. Investiu contra eles com ímpeto de derrubar a cerca. Otaviano, que conhecia histórias da ferocidade de Cervantes, comentou:

 Ainda bem que estamos separados por uma cerca alta de madeira. Se fosse de arame, o bicho levava tudo no peito!

Naquela noite, Aluízio encontrou a solução para o assunto da água. Acordou Zé Antônio ainda de madrugada, lhe passou o plano que arquitetara e foi para a cidade.

Quando Otaviano chegou pela manhã, encontrou Cervantes trancado na seringa. Ouviu do peão que o touro aguardava o veterinário. Ele tinha uma contusão na pata e o tratamento precisava ser feito no tronco.

Cervantes estava bastante irritado no espaço exíguo da seringa. Lugares apertados o deixavam estressado. Talvez o fizessem recordar os claustrofóbicos bretes dos rodeios.

Otaviano e o ajudante foram para a remanga do fundo onde trabalharam toda a manhã. Zé Antônio se manteve atento. Pouco antes do almoço, finalizaram aquela divisão e seguiram para a central, que se comunicava com a seringa e viram o touro bufar. Subiram na plataforma de trabalho e Otaviano contou algumas das façanhas de Cervantes, quando era considerado o terror das arenas de rodeio. Enquanto narrava tiveram amostras ao vivo, pois o monstro se arremeteu diversas vezes na direção deles. Parecia querer escalar a cerca.  

De onde se encontrava, Zé Antônio assistiu a cena e gostou que atiçassem a fúria do bicho!

Pouco depois, o ajudante saiu com a camionete e Otaviano retomou o trabalho. Era a oportunidade que Zé Antônio esperava. Aproximou-se sorrateiro da seringa e destravou a porteira.  Afastou-se e torceu para Cervantes fazer a sua parte.

Ele fez!

Aparentando consternação, Adilson prestou toda assistência à família de Otaviano. Sugeriu que a viúva mantivesse a equipe de cerqueiros para terminar o serviço iniciado pelo marido. Nos meses seguintes mostrou-se prestativo e ganhou a confiança da família. Quando sentiu que era o momento, sugeriu que vendessem as terras. Ele tinha um comprador e prometeu conseguir um preço vantajoso.

O comprador era a compradora Marlize Spoletto que anexou as terras de Otaviano Farias à Fazenda Tapuia.

Com livre acesso à água, agora podiam criar gado!

Adilson e Marlize estavam juntos há quatro anos. Ele se derretia de paixão. Ela nunca! Sempre encarou o amante como um provedor a quem prestava um serviço exclusivo. Um dia aquilo acabaria e ela tinha que se garantir. Sabia que ter a Fazenda em seu nome não significava nada. Precisava de alguma coisa concreta para o seu futuro. Pelo menos algo que garantisse uma boa aposentadoria. Voltou a acalentar a ideia de administrar a Fazenda. Nas suas idas para lá, demonstrava interesse no que Zé Antônio vinha fazendo e percebeu que ele era bom em assuntos técnicos, mas deixava a desejar nos administrativos. Então, passou a pesquisar sobre administração de fazendas e a frequentar seminários de agronegócio. Aos poucos, foi dando algumas sugestões que Zé Antônio recebia de má vontade. “Até pouco tempo essa garota não passava de uma puta de luxo e agora vem com mandamentos!”

Inconformado, decidiu que teria uma conversa franca com Adilson. Queria que ele colocasse limites na namorada. Matreiro, Adilson percebeu a irritação do peão e tomou a iniciativa. Disse o quanto apreciava seu trabalho e pediu paciência com Marlize:

-- No fundo acho bom o interesse dela. Mas ambos sabemos que é fogo de palha. Logo acaba. Não leva a sério, só ouça as sugestões e depois faça do seu jeito. Sabe Zé, às vezes, é preciso levar certas coisas em banho-maria.

Esperta, Marlize percebeu rápido o novo comportamento de capataz. Mas, ele não tinha a sutileza e a perfídia que ela e Adilson tinham. Zé Antonio era transparente e não conseguia dissimular seu descontentamento. Fez a leitura da situação e compreendeu que para obter o controle da fazenda deveria mudar a tática e talvez seduzir o peão. Ganhar a sua simpatia a qualquer custo. Material para isso ela tinha de sobra.  Bonita, sedutora e um corpo que enlouquecia os homens. Testaria a fidelidade de Zé Antônio ao chefe.

Nunca expusera sua vida ostentosa ao risco e sempre se manteve fiel a Adilson. Resistira com determinação à inúmeros assédios tentadores. No entanto talvez chegara a hora de dar uma virada nos acontecimentos.

Taxativa, impôs para o amante sua decisão de morar na fazenda. Vivendo o dia a dia poderia entender melhor as necessidades e ajudar nas soluções. Adilson tentou argumentar, falou do melindre de Zé Antônio. Não teve jeito, ela estava determinada a assumir a direção da Tapuia. Disse que ouviria o peão e faria tudo para trabalhar em conjunto com ele.

— Com o tempo ele vai perceber que minhas ideias são boas e acatá-las. Se não aceitar, pior para ele.

Hesitante, Adilson comunicou a Zé Antônio que Marlize passaria a morar na fazenda. Ele teria que se mudar para uma das casas de colono. A pronta aceitação do peão o surpreendeu e o fez supor que tudo ficaria bem. Porém, Zé Antônio só aceitou porque sabia que não adiantava nadar contra a corrente. Melhor se unir ao inimigo e dar corda para ele se enforcar.

Marlize instalou-se na casa na semana seguinte. Também ficou intrigada com a postura cordata do rapaz. Desconfiou, mas acreditava na sua perspicácia e que dobraria o peão.

Nos primeiros dias, ela verificou que Zé Antonio fizera mudanças notáveis. Elogiou. Ele recebeu com frieza.

À medida que os dias corriam, Marlize se deu conta de que gostava da proximidade do rapaz. Ele acatava ordens, mas não era subserviente. Pelo contrário, colocava seu ponto de vista sem vacilar. Tinham discussões frequentes que a perturbavam. Ela não conseguia identificar o porquê. Percebeu que, ao contrário de conquistá-lo, ela que estava se atraindo. Ele era um tipo de homem que, de certa forma, agrada as mulheres. Era alto, forte e, em certo sentido, bonito. Modos rudes, quase um selvagem. Sem se dar conta, o rapaz passou a povoar suas fantasias. Ele, ao contrário, parecia não notá-la. Não era isso que ela planejara.

A relação de Adilson com Dulcinda se deteriorara de vez e ele saíra de casa. Estavam se divorciando e ele mudou-se para um hotel em São José do Rio Preto.

Certa noite voltava de uma fazenda, onde fora visitar um cliente, por uma estrada de terra. Chovia muito e seu Honda Civic era inadequado para a situação. Derrapava a todo instante no barro escorregadiço. Terminou caindo numa valeta. Teve que caminhar alguns quilômetros para pedir ajuda. Permaneceu o tempo todo com a roupa encharcada e já era tarde quando chegou ao hotel. Sentia-se exausto, não desceu para jantar, tirou a roupa, enfiou-se na cama.

Dormiu um sono atribulado. O ar abafado, o calor insuportável, a umidade elevada, o sufocavam. Sentia sobre si um enorme peso que o imobilizava. De repente, centenas de cobras rastejavam pelo seu corpo. Sentia a textura gélida dos repteis roçarem sua pele. Ficou estarrecido. Queria gritar, mas a voz não saía. Desesperado, perscrutou o lugar e se fixou em duas cobras que se acasalavam. O macho era enorme e infligia à fêmea. Embora demonstrasse prazer, ela lhe suplicava ajuda. Adilson sentia-se impotente. Por mais esforço que fizesse, não conseguia se mover. Súbito, as demais cobras desapareceram e restaram apenas as duas que copulavam. A fêmea se extasiava com a violência do macho, porém continuava implorando sua intervenção. E, ele, incapaz de qualquer movimento. De repente as cobras se transformaram em Zé Antônio e Marlize. Num esforço supremo Adilson deu um grito lancinante. Acordou encharcado de suor, muita sede e febril!

A chuva violenta, os estrondos dos raios e a ansiedade não deixavam Marlize dormir. Não se acomodava na cama. Sentia calor e deu graças por Adilson estar na cidade. Levantou-se, vestiu um penhoar leve, pegou um copo d’água e saiu para a varanda.  Avistou a casa de Zé Antônio. Havia luz. Num impulso, caminhou sob a chuva até a casa e bateu na porta. Quando Zé Antônio abriu, a roupa molhada de Marlize deixava transparecer sua nudez. Ela entrou, postou-se na frente dele e deixou cair o penhoar. Quando ele a possuiu foi como ela imaginara. Tratou-a com a mesma brutalidade com que lidava com os animais.

Noite ainda, saciada com tanto sexo, voltou para casa. Estava exaurida, mas satisfeita. Pegou no sono assim que deitou.

Foi acordada por Adilson. Primeiro, assustou-se com a sua presença, depois pelo seu péssimo estado. Ele estava febril e delirava. Dizia coisas confusas sobre ela e Zé Antônio. Intrigou-se: “Como ele soube”?

Colocou-o na cama e deu-lhe um comprimido. Ele dormiu. Sono agitado. Transpirava muito e delirava. Ela mandou buscar Zé Antônio, que já estava no campo. Ela expôs o que conseguiu entender do que ouviu de Adilson. Não atinava como ele poderia saber. A explicação seria Adilson ter passado a noite vigiando. Nesse caso, porque não os pegou em flagrante?

Confusos, temiam Adilson. Ele era possessivo, egocêntrico, imprevisível e o pior, mau! Se de fato ele soubesse, jamais deixaria passar em branco. A vingança viria, mais cedo ou mais tarde. E a fazenda? O emprego de Zé Antônio? Havia muita coisa em jogo.

Adilson era esperto e poderoso demais. Os dois não eram páreo.  Decidiram negar até o fim. 

A febre de Adilson subiu muito e Marlize foi preparar compressas com água para resfriá-lo. Depois ligou para o médico.

Zé Antônio saiu pensativo. Atravessou a varanda. Sua cabeça fervia e sem perceber chegou ao mangueiro. Pensava em como fora tolo em por tudo a perder. Em, porque sucumbiu ao desejo. Na falta de sorte de acontecer bem no dia em que Adilson os vigiou. “Logo agora, quando a vida caminhava bem.”

Absorto nesses pensamentos avistou Cervantes no piquete ao lado. Como sempre o touro se inquietou com a sua aproximação. Olhou para as  fuças do touro e enxergou Adilson. “Cada um à sua maneira, são feitos da mesma crueldade!”

De repente, uma ideia aflorou em sua mente. Rápido, voltou para casa e explanou para Marlize o porquê Adilson não poderia sair dessa.

− Vai acabar com a gente!

Ela se lembrou do contrato em branco, que assinara. Pensou nos anos que investiu nesse relacionamento. Concordou que Adilson acabaria com eles!

De comum acordo, Zé Antônio tirou Adilson da cama e o levou cambaleante até o mangueiro. Abriu a porteira do piquete e o escorou até o centro da remanga. Quando Cervantes investiu, Zé Antônio saltou para a cerca e deixou Adilson se equilibrando nas próprias pernas.

O médico legista classificou o caso como mais um acidente. O segundo em dois anos. Duas vítimas fatais do touro Cervantes. Otaviano entrara no mangueiro sem tomar os devidos cuidados. Já Adilson, ninguém sabia explicar o que fora fazer lá. Enquanto Marlize fora ligar para o médico, é possível que, delirando, ele tenha se levantado e caminhado a esmo. Deu o azar de topar com Cervantes, concluiu a polícia!

Sanguinário, afastado das arenas, Cervantes continuava satânico como sempre!

O delegado sugeriu sacrificá-lo. Provavelmente o promotor entraria com uma representação exigindo isso. Marlize respondeu que ponderaria a respeito. Talvez fosse a melhor alternativa. Ela não queria mais vítimas do animal.

Finalizada a perícia os policiais se despediram. Marlize os acompanhou até as viaturas.  Passaram por Zé Antonio empoleirado nas tábuas do mangueiro. Ele observou o grupo se distanciar. Achou que ela representava bem o papel da mulher consternada.

Voltou-se para Cervantes que estava na remanga logo atrás. Era um touro malvado e trazia isso estampado nas fuças! Em compensação, era imponente e belo. Uma beleza feroz. “O que acontecera para ele ser tão brutal? Porque detestava tanto os humanos?”

Divagou sobre a sua própria vida. Provavelmente fosse do mesmo temperamento do touro.

Virou-se para o grupo. Os policiais haviam partido e Marlize, em meio a uma nuvem de poeira, acenava para os carros distantes. 

Em seguida, ela deu meia volta e caminhou em sua direção. Zé Antonio acompanhou sua aproximação. Ela usava botas e calça jeans que realçavam seu corpo e seu andar sensual. Era linda! Estonteantemente linda!

Tinha os cabelos esvoaçados pelo vento e levou a mão para acomodá-los. Quando levantou o rosto, ele viu, nos lábios perfeitos, surgiu um sorriso matreiro.

Um arrepio agourento percorreu sua espinha. Concluiu que não sacrificaria Cervantes.

Ele ainda poderia ser útil!

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